UNIVERISDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
LABORATÓRIO DE ESTUDOS DO TEMPO PRESENTE/TEMPO
GRUPO DE ESTUDOS SOBRE VIOLÊNCIA URBANA/
FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO
SEGURANÇA & CIDADANIA: reflexões sobre a guerra oculta brasileira.
“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”
Joaquim Nabuco
Para Alba Zaluar.
Sob impacto direto da mais cruel Pandemia já vivida pelo Mundo, e gerida de forma cruel e perversa no Brasil – e agora sabemos de forma a atender interesses de bandos rivais de predadores do Estado – somos obrigados pensar com urgência a chamada “Questão Segurança e Cidadania”, indo além das antinomias comumente postas e sua relevância na ascensão da novas Direitas, inclusive os novos fascismos.
Sob impacto direto da mais cruel Pandemia e sua gestão, no Brasil – e agora sabemos de forma a atender interesses de bandos rivais de predadores do Estado – bem como os massacres e brutais e crimes ocorridos em 2022, somos obrigados pensar com urgência a chamada “Questão Segurança e Cidadania” no país, buscando ir além das antinomias comumente colocadas [Direitos Humanos versus Segurança Pública, Bem-Estar Social versus Criminalidade, Meios e Equipamentos e versus Abandono do Setor de Segurança Pública] e, buscando escapar dos lugares comuns e armadilhas postos pelos pretensos diagnósticos da Direita , agora, acentuando pela ascensão do fascismo no Brasil, produzir uma agenda proativa, cidadã e garantista de Segurança Pública para o Brasil[1].
Muitas vezes temos sucumbido, rotineiramente, a assertiva que o tema “Segurança” é um apanágio das “Direitas” políticas ou mesmo uma forma de amedrontar e calar os partidos, associações, e entidades da sociedade civil, quase sempre de perfil progressista, preocupados com as tremendas questões diuturnas de violação dos Direitos Humanos na nossa sociedade. De fato, as temáticas em torno da “Segurança Pública” (ou cidadã, institucional) foram capturadas, ante a inércia e espanto das forças progressistas, pela Direita e hoje transformadas em tema eleitoral pela Extrema-Direita, quase sem resposta. Historicamente, tanto em 1922 na Itália e, 1933, na Alemanha, os fascismos históricos recorreram a mesma temática da violência criminal e do medo ao banditismo para amedrontar as classes médias e oferecer “segurança e ordem”, em especial na Itália onde os fascistas levaram à frente uma furiosa luta contra a máfia[2].
Neste sentido, devemos ter claro dois pontos: (i.) as camadas subalternas da sociedade brasileira, e latino-americana, sofrem, elas muito mais que quaisquer outros setores sociais, diuturnamente com a violência decorrente de assaltos, roubos, assassinatos, e variadas formas de agressão de alteridade de gênero, religião e etnia, sem qualquer forma de proteção do Estado, a violência de grupos à margem da lei; (ii) não existe de forma clara, direta e eficaz recursos disponíveis de apoio para a maioria da população para a superação dos maus-tratos e malfeitos que a população subalterna e periférica sofre no seu dia a dia. Daí, a emergência de “poderes paralelos” – e não, atenção para esse ponto, de um “Estado Paralelo” – para reprimir tais malfeitos, expulsando o Estado de Direito Democrático de amplas áreas do território nacional, negando condições básicas de serviços do Estado – em especial na Segurança, mas também na Educação, Saúde, Limpeza Pública – que passam às mãos de “milícias” com a atuação de justiceiros e seus “tribunais do crime”.
Vemos, assim, uma “Condição de Emergência” na formulação e execução de um novo encontro entre o Estado de Direito Democrático e as populações subalternas e periféricas brasileiras em torno de garantias substantivas de Direitos Básicos de Segurança à Vida, à Inviolabilidade do Lar e do Direito de Ir e Vir que se estende, inclusive, ao Direito ao livre exercício do Voto – impedido e involucrado em grande parte por organizações milicianas.
Estes são elementos básicos que na periferia da maioria das grandes cidades brasileiras hoje não são minimente garantidos em face da presença de milícias que substituem, na forma de “Poder Paralelo”, o Estado de Direito Democrático[3].
Tal situação caracteriza o Estado de Direito no Brasil hoje como uma “Democracia feia”, que não foi capaz de realizar plenamente a transição da ditadura para uma democracia funcional. Caracterizamos como uma “democracia feia” um regime constitucional de tão má qualidade que a maioria da população não se identifica com seus valores e não se engaja na sua defesa. Coube a Anthony Pereira, um pesquisador e historiador bastante conhecido do King ‘s College, na Inglaterra, em trabalho recente e muito perspicaz, a denominar a democracia da Nova República, depois de 1988, como uma “democracia feia”, “ugly democracy“. Ora, exatamente porque vivemos em uma “democracia feia”? Basta constatarmos dois pontos: em primeiro lugar, embora a Constituição de 1988 tenha colocado uma importante declaração de Direitos Civis como primeiro capítulo da Constituição, tal declaração é apenas isso, uma declaração – e o que faz com que ela seja não vivida pela maioria do povo brasileiro? O Brasil ostenta índices de homicídio superiores a maior parte das guerras travadas hoje no planeta – Congo, Ucrânia, Iêmen – , algo em torno de 44.000 mortes em 2021 e 40.800 assassinatos em 2022, 40., variando na última década em torno de mais de 55 mil mortes violentas por ano, conforme o “Monitor da Violência no Brasil” – e sublinhe-se a maioria das mortes são de pessoas pretas e pardas, confirmando a estrutura social, étnica e de gênero historicamente desigual no Brasil. Devemos destacar, ainda, que o número de policiais mortos em serviço, quase duzentos no último ano com dados disponíveis completos ( 196, em 2020 ) também avançava, A política armamentista do Governo Bolsonaro – cerca de 400 autorizações por dia ameaça duramente paz social e a segurança institucional – chegando ao ponto de ameaçar a própria ordem constitucional, como ocorreu em 8 de janeiro de 2023 – , além do trabalho das próprias polícias. Tudo isso caracteriza o que denominamos a ”Guerra civil oculta brasileira”; em segundo lugar, qual é a validade da Constituição e dos institutos muito importantes que temos nela, e pelos quais nós temos que lutar para serem implementados, se a maioria da população, em especial as vastas camadas subalternas da população, não tem acesso aos direitos fundamentais, como alimentação, moradia, transporte e trabalho? Hoje, 33 milhões pessoas passam fome no Brasil, a terceira potência agrícola do planeta.
A existência de direitos cívicos na Constituição de 1988 esgotam em si a cidadania? Essa é a questão fundamental colocada e que, para nós, caracteriza exatamente essa “democracia feia” em funcionamento hoje – e que, contudo, temos que defender ao mesmo tempo que criticar.
A questão que se coloca hoje é a expansão da democracia no Brasil ampliando o “demos” da democracia.
A maior parte dos especialistas em Direito e Cidadania repete a Declaração de Direitos, mas não atenta ao fato de que um trabalhador que fica até tres horas, em ida e volta, em um ônibus ou trem, que vive com salários miseráveis, que mora em condições indignas no país, é imune às declarações grandiloquentes que estão na Constituição. Ainda agora, na situação de pandemia e pós-pandemia – mesmo antes, bastava observar o PIB oferecido à nação pelo primeiro ano de governo Bolsonaro – e o modo miserável como foi enfrentada, as condições sociais vão ao desastre total, com a ressurgência em massa da fome. O caminho aberto por Josué de Castro, ao lado de Maria Yedda Linhares, na pesquisa das crises de fome e de abastecimento no Brasil revelam uma estrutura cíclica da fome no Brasil. Vemos, com tristeza, o retorno da fome, que abarca 19 milhões de brasileiros em 2019, e salta, hoje, em 2022, para 33 milhões pessoas.
A transição política, a então chamada “Abertura”, foi, em primeiro lugar, a transição mais longa da história; ela foi anunciada no governo Geisel entre 1974 e 1979, foi balizada em 1979 pelo decreto da Anistia, e a Constituição foi promulgada em 1988. Além de ter sido a mais longa, a transição foi balizada exatamente pelos homens da ditadura, do antigo regime, Figueiredo e Sarney, saídos da ditadura militar, responsáveis por essa transição pactuada e, sabemos agora, falhada na garantia de bem-estar e de segurança cidadã para a maioria da população.
Não houve “Transição” ou “Abertura” em importantes instituições como as polícias, que permaneceram com suas estruturas dos tempos da ditadura civil-militar intactas. E, mais ainda, com sua “cultura” no trato com a população, em especial com as camadas subalternas da população brasileira, em especial quando essa população é pobre, preta e/ou parda.
A mais importante interface do Estado Democrático de Direito e as populações subalternas se dá através de agente público e seu contato com a população, principalmente nas áreas de Segurança, Educação, Saúde. O Policial, o professor, o médico do Posto Público/UPP são a face do Estado brasileiro perante os setores subalternos da população brasileira. No caso da Segurança é sempre uma cadeia de agentes formada pelo policial militar, civil, escrivão, delegado que devem garantir a integridade do cidadão, do seu Lar e de seus bens. Se, esse agente é brutal, violento e corrupto, ameaça sua integridade física e viola sua moradia, o Estado se mostrará à população como brutal, violento e corrupto desacreditado perante a cidadania a própria noção de cidadania.
Inúmeros serviços básicos hoje – dos correios, Internet até a entrega do gás e a garantia a livre propaganda eleitoral e, consequentemente a qualidade da Democracia – estão restritos ou mesmo impedidos em vastas áreas de regiões periféricas de grandes cidades pela ausência de garantias mínimas de segurança em territórios sob controle do crime organizado e de milícias. Tais serviços são apropriados pelas milícias e se transformam em “rolos” lucrativos, capazes de sustentar redes criminosas que expulsam as empresas de territórios populosos e, em seguida, expulsam as autoridades públicas, ou exigem acordos de cooperação/autorização, por exemplo, com correios, gás, limpeza urbana. Outros setores simplesmente se ausentam, como a Saúde Pública.
No quadro geral, entidades públicas, estatais e paraestatais, há um claro processo repressivo no interior no qual se constrói o “outro conveniente”, o diferente útil, a perfeita escolha do “bandido”, etnicamente diferenciado. Escolas, academias e cursos, constituídos por policiais e afins, onde predomina uma visão racista, como prática de ensino/reprodução de práticas num espaço institucional da própria República, confirma a exclusão de vastas camadas sociais da cidadania republicana.
Tal situação não impede, contudo, encontros violentos entre policiais e narcotraficantes/milicianos, induzidos por redivisões de territórios e pagamentos de mesadas, no decurso de operações sob ordens/ou não da Justiça e, sobretudo, da promiscuidade quase obrigatória existente entre forças do Estado e o crime organizado resultando em chacinas envolvendo a população civil. Tais “encontros fatais” possuem um perfil perverso de classe, etnia e gênero, que acompanha as condições de moradia, escolaridade e trabalho gerando eventos como a chacina de Vigário Geral de 1999, o massacre de Jacarezinho, de 2021, ou da Penha, em 2022, ambos no Rio de Janeiro.
A formação fascistizada em tais escolas e cursos, por sua vez, permite, como vemos, os eventos o brutais do assassinato de Genivaldo Jesus dos Santos, em Sergipe, ainda em 2022, onde a caracterização do preto/pardo pobre é fenotipado como o não-cidadão, o bandido natural, o sem-direitos próprios para o extermínio numa versão tropical da ação nazista de tipo AT4. Pobre, preto, em condição excepcional de saúde, é tratado com métodos que nada devem às mais brutais setores dos estados fascistas. Talvez com a diferença que o Terceiro Reich tinha o pudor de criar um encobrimento e uma nomenclatura evasiva de seus crimes.
A publicação, organizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, destaca que a população negra/parda foi a maior vítima de violência policial — correspondem a 78,9% das 6.416 pessoas mortas por policiais e registradas no ano passado: “o número de mortos por agentes de segurança aumentou em 18 das 27 unidades da federação, revelando um espraiamento da violência policial em todas as regiões do país… “[4]
Um reconhecimento elementar decorre da constatação de que no Governo Bolsonaro, entre Janeiro e Março de 2021, 453 pessoas morreram em ações policiais no Estado do Rio de Janeiro, 4% a mais do que as 435 vítimas no mesmo período do ano anterior, quando ainda não estava em vigor a determinação do STF (Supremo Tribunal Federal) que restringiu as operações em favelas fluminenses – sem qualquer efetividade – e que em São Paulo o número de policiais mortos em conflitos aumentou 44% – mesmo com a redução brutal das atividades devido a quarentena da covid-19 – explicitam o extremo padrão da violência na sociedade brasileira[5]. A ampliação do número de armas de fogo na sociedade brasileira é, por outro lado, um claro risco para os policiais brasileiros, que, como vimos, também são vítimas da violência massiva e cotidiana. Ainda devemos destacar, depois dos eventos de 7 de setembro de 2021 – a ameaça de golpe de Estado – se tal distribuição e facilitação de armas por amplos setores da sociedade, quebrando um dos preceitos básicos do Estado Moderno, conforme posto por Max Weber, a saber o império do monopólio legal da violência por parte do Estado, não atenderia a outros interesses revelados, por exemplo, no 8 de janeiro[6].
Devemos destacar ainda que, apesar de serem 56,3% da população brasileira, os negros são vítimas de 78,9% das mortes cometidas por policiais no país: “… em sentido oposto, os brancos —que totalizam 42,7% da população — foram vítimas de 20,9% das mortes”[7].
Fonte: Revista Piauí, 26/08/2019.
Devemos, pois, destacar o caráter estrutural da violência no Brasil, permanente, constitutivo da própria história da Nação, cuja marca central foi a escravidão dos índios/genocídio e a escravidão das pessoas negras. É importante destacar, e entender, o sentido de “estrutural”, o estruturante, o que significa um base organizacional sem a qual a sociedade e a economia – o escravismo de tipo colonial man tido através do tripé latifúndio, mercado externo e trabalho compulsório – primeiro utilizou-se do índio, e após sua quase extinção juntos dos primeiros núcleos colonais, já em torno de 1620/1640, implicou a conquista de feitorias, enclaves e a subsequente ocupação do litoral africano – Guiné, Angola, Moçambique e postos em São Tomé e Príncipe, para manutenção de um fluxo constante de pessoas escravizadas, embora os primeiros escravizados africanos tenham chegado ao Brasil já em 1530. Calculamos hoje que cerca de 4,8/4,9 milhões de pessoas escravizadas provenientes da África chegaram nos “tumbeiros” aos portos da Colônia brasileira, de um total de 11/12 milhões de africanos capturados[8].
A importância do “negócio” que se transformou o tráfico transatlântico de pessoas foi tamanha que alguns historiadores da importância de Fernando Novais, da USP, afirmam que o “tráfico” criou a Escravidão e não o inverso[9].
Após a cessação do tráfico transatlântico de pessoas, em 1850, em razão da Lei Eusébio de Queiroz, com o aumento vertiginoso do preço dos escravizados – em grande parte em razão do avanço da cultura cafeeira no Sudeste – as Províncias do Nordeste começaram o tráfico interno, vendendo seus escravos para o “sul”.
A presença da Escravidão – o trabalho como uma imposição violenta de relações sociais entre mestre e escravizados -, de 1580 até 1888, generalizando-se entre 1620 e 1640, é um elemento estruturador da sociedade brasileira. Neste sentido, o Racismo se alimenta das relações sociais baseadas na subordinação real e legal de uma parcela da população, majoritária, que deveria trabalhar sem remuneração, garantias sociais, nem mesmo a garantia básica sobre a integridade de sua família e onde o crescimento familiar era uma expectativa de bons negócios do Senhor. A Polícia e a Justiça eram concentradas nas mãos do mesmo Senhor que literalmente “possui” o trabalhador, considerado um “res vocale” no Direito vigente[10].
A associação “negro”+escravo+trabalhador+descalço, já explicitado por Gilberto Freire, em contraste ao Senhor, branco de mãos e pés finos e calçados, antinomia registrada pelo modernismo em Portinari nos seus quadros e murais onde trabalhadores são representados com mãos e pés imensos e calejados, indicação de uma vida voltada para o trabalho, e que o poeta Cassiano Ricardo, descreve om sua poesia “rude/rústica”, como lavradores de mãos gigantescas que lavram a terra[11].
Assim, devemos insistir que a escravização de homens, mulheres e crianças e seu trabalho compulsório é base sobre a qual se molda e conforma o Brasil, sua cultura, riqueza e mentalidade. A escravidão forma o Brasil, inclusive o racismo, que dela resulta, em especial pelo trabalhador/a serem negros africanos. Não é o racismo que molda o Brasil. É a escravidão comercial e sua empresa africana – o tráfico – que moldam o racismo.
O Lavrador de Café, Cândido Portinari, 1934.
Violência herança histórica:
Tais elementos são uma herança, uma dívida, histórica que, para além de atingir os grupos fragilizados – sob risco imediato, como indígenas, populações Sem-teto, população carcerária, população periférica sem qualquer assistência – instituem a violência como regra cotidiana no conjunto da Nação atingindo cidadãos em qualquer situação nas suas relações interpessoais: no trabalho, nas escolas, no transporte, nas ruas.
Todos os brasileiros já se encontraram em situações de ameaça a sua integridade física e/ou ameaça ao seu lar ou a sua propriedade ou numa situação de agressão pessoal onde a ameaça de resolução pela força de uma pequena contenda poderia escalar para a agressão violenta. Em caso de ser uma pessoa preta/parda, a intervenção policial pode fortemente redundar em violência ou desconhecimento dos fatos, mesmo sendo ofensa/injúria de natureza racial. Somente 40% da população brasileira se sente segura para andar em nossas cidades à noite, contra uma média de 67% em países da OCDE e cerca de 8% relatam casos de assaltos, injúrias e maltratos. As polícias – civis e militares – são consideradas ou corruptas ou inadequadamente preparadas para suas funções, mesmo que em sua maioria sejam constituídas de pessoal preto ou pardo, agem contra pretos e pardos, na maioria das vezes, de forma brutal. Só um poeta consegue descrever com clareza, e uma certa dor, a natureza de tais relações sócio raciais, no Brasil:
“Quando você for convidado pra subir no adro da fundação
Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados…”
(Caetano Veloso/Gilberto Gil, Haiti)
No conjunto da população há o sentimento reducionista, simplista, de “mais é melhor”, muitas vezes apoiado e por forças políticas como bolsofascismo, como se a saturação das ruas de policiais – ou talvez Fuzileiros Navais, Paraquedistas, armados para a guerra em plena Avenida Atlântica ou na Avenida Paulista ou na Avenida dos Navegantes! – e armas liberadas para todos fosse resolver a questão da segurança. Tal visão “armamentista” da Segurança terá sua expressão máxima no Governo Bolsonaro quando foram publicados ao menos 15 decretos e 30 Atos Normativos que alteraram o “Estatuto do Desarmamento”, sem passar pelo Congresso Nacional, usurpando direitos básicos da representação popular (a maioria encontra-se sub judice no STF). Hoje há no país aproximadamente 01 (uma) arma para cada 100 (cem) brasileiros. Podemos adiantar, como fizemos acima, que essa farta distribuição de armas, longe do poder normativo das Forças Armadas – também revogado no Governo Bolsonaro -, para além de atender seus eleitores vise – numa repetição dos eventos de 7 de setembro de 2021 ou do 8 de janeiro de 2023 – num levante/sedição contra a Ordem Constitucional.
Somente muito tardiamente, na segunda metade de 2021, o Supremo Tribunal Federal/STF começou a apreciação da legislação armamentista do Governo Bolsonaro, a possível ofensa ao “Estatuto do Desarmamento” e ao Direito Constitucional à Segurança Cidadã. E agora, o Ministro da Justiça do Governo Lula da Silva anuncia uma revisão restgritiva dos atos armamentistas do governo anterior.
É nesse sentido que a chamada “Questão da Segurança Pública” é capturada como pauta “da Direita”, desmoralizando o “Debate sobre os Direitos Humanos” e permite o surgimento espúrio de versões de uso desclassificatório do debate através da intervenção de neologias duvidosas como “Direitos Humanos das Vítimas” ou mesmo o velho bordão “Bandido bom é Bandido Morto!”. Por outro lado, várias vezes, o campo progressista reduz a questão da segurança ao debate dos Direitos Humanos e a melhoria das condições sociais dos grupos subalternos, o que faz com que amplas camadas sociais, em especial as camadas médias da sociedade, claramente atingidas pela violência cotidiana considerem os partidos progressista como “protetores de bandidos”.
A ausência de respostas imediatas, de efeitos de pronta resposta, não só deixam de atender os setores subalternos vítimas da violência criminal, do fogo cruzado e da violência policial, e do sentimento de “abandono” das camadas médias, convencidas que a agenda centrada nos Direitos Humanos não corresponde aos seus interesses e se coloca ao lado “dos bandidos”.
Milícias e Negócios.
Devemos ainda destacar que as áreas ocupados pelas Milícias desenvolveram uma relação simbiótica com os “ocupantes” e a visão de “vítima-malfeitores” não são, de todo, verdadeira. Enquanto a população trabalhadora sofria/sofre as consequências da “ocupação”, em amplas áreas “ocupadas” do Rio de Janeiro desenvolveu-se uma relação simbiótica entre as Milícias e um “lumpen-capitalismo” de “pequenos empreendedores” (para além do narcotráfico). Assim, construtores, imobiliárias, lojas de material de construção, venda de gás, incorporadores, restauração/bares, hotéis/motéis, mecânicas/retíficas de automóveis, locadoras etc. todos tinham laços de financiamento e participação das milicias. Todo um universo desse “lumpen-capitalismo”, fora da capacidade de fiscalização e da legalidade do Estado de Direito, floresce sob a proteção miliciana, muitas vezes resultando, na área da construção civil, em desastres com grande número de vítimas, além da destruição de áreas de reserva ambiental[12].
A construção de uma Política Cidadã de Segurança Pública e Institucional, em conjunto com as populações-alvo, ouvidos os grupos-alvo, seja através dos entes existentes ou através da criação de entes que possam organizar e dar voz aos grupos hoje mudos perante o Estado ou capturados por milícias e pelo narcotráfico, é fundamental para a ampliação do “demos” – da parte politicamente ativa da população. É de suma urgência a tomada de consciência, e ação, de decisões fundamentais, para um governo de perfil democrático e popular. Sem um “demos” ampliado não podemos falar em Segurança Cidadã. Neste processo devemos levar em conta o seguinte:
(i) Direitos Humanos são uma pauta geral de todas as agendas de um Governo Democrático, de forma transversal e de forma mandatória, sendo inscritos em cada ação governamental, seja qual for sua natureza;
(ii) Não cabe, de forma alguma, circunscrever a agenda de Direitos Humanos a uma “Questão de Segurança” e, tão pouco a Segurança Cidadã a uma Questão de Direitos Humanos de uma secretaria/ministério específica;
(iii) Mas, é fundante a construção de uma nova agenda de Segurança e Cidadania que garanta à População que o Estado retorne e retome suas funções básicas em face ao cidadão e ao conjunto do território nacional.
A urgência da discussão da “Questão da Segurança”, que se quer cidadã, nas suas diversas dimensões, para além do conceito autoritário de “Segurança Nacional”, vigente durante o período da Guerra Fria e da Ditadura Civil-Militar, e mesmo depois, na maioria dos países da América Latina, tornou-se central, e mesmo definidora, para o relacionamento entre o conjunto da população, em especial os vastos grupos subalternos e desatendidos e os entes públicos dotadas, por lei, do monopólio legal da violência[13].
Quem precisa de “Segurança” são os indivíduos e não o Estado. Neste sentido, devemos ter claro que o Estado Democrático de Direito buscará a reforma e utilização plena de seus mecanismos institucionais de gerir e administrar os institutos de segurança via a cidadania:
I. Assim o Instituto de GLO – Garantia de Lei e da Ordem, como previsto na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 142, e pela Lei Complementar de 1999, e pelo Decreto 3897, de 2001, que concedem provisoriamente aos militares a faculdade de atuar com poder de polícia até o restabelecimento da normalidade em áreas e setores pré-estabelecidos conforme solicitado previamente pelo Ministro da Justiça e autorizado pelo Presidente da República e só em tais condições, NÃO devem mais fazer parte do arsenal banalizado pela autoridade pública em função do combate à criminalidade e ao crime organizado no país;
NOTA: destacamos aqui que, ao contrário do que se proclama, à Esquerda e à Direita do espectro político. não há possibilidade constitucional das Forças Armadas evocarem o Artigo 142 da Constituição – ou mesmo o Presidente – para realizar um “Golpe Militar Constitucional”. A Legislação complementar em vigor, que vem aperfeiçoar a redação e o sentido do mesmo instituto, acima citada, corrige e complementa o mesmo instituto da Constituição, impedindo sua evocação direta pelo Ministro da Defesa, e a fortiori qualquer comandante militar, e/ou qualquer um dos comandantes militares das Três Forças.
II. Completa revisão do GSI e da sua composição.
III. E, claramente, definir como incompatíveis os domínios de DEFESA e os domínios de SEGURANÇA, deixando de vez o envolvimento das Forças Armadas nos assuntos de segurança cidadã e abandonado a chamada “Síndrome do Haiti”, experiência que não serviu ao esperado “State Building” naquele país e redundou em amplo fracasso e vexame no caso do Afeganistão e mesmo no Haiti, e, no entanto, criou uma mítica de “controle de multidões” e de eficácia militar que não corresponde à realidade, em especial entre vários generais brasileiros. No entanto, continua pautando os cursos superiores nas Escolas Militares e academias brasileiras como um caso de sucesso. A ideia de “State Building” deve sofrer uma revisão severa enquanto função e ensinamento das FFAA, como a realidade do Haiti e o Afeganistão demonstram[14];
IV. Definir o papel urgente de uma “Força de Terceiro Tipo”, civil, permanente, provida de meios de rápido deslocamento – helicópteros, carros, meios de fedesa não-letais e letais sempre disponíveis e com aquartelamento próprio e digno para seus membros. A atual “Força Nacional” é um arranjo temporário, feito a partir de tropas das PMs estaduais e já contaminadas com a “ideologia do bandido morte”. A composição e alistamento da “Força de Terceiro Tipo” – menos poder que as FFAAs e mais meios e capacidades que as policiais estaduais, civil e militar, deveria ser feita junto aos jovens, homens e mulheres, que completem seu serviço militar – de forma idêntica ao processo hoje em curso na Alemanha – com uma bom/ótimo aproveitamento, com conhecimento de táticas de enfrentamento que possam ser utilizadas no combate ao crime organizado nacional/internacional. Tal força deve ficar sob o controle do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, que por razões técnicas de Direito e de Institucionalidade, não deve ser desmembrado;
V. E por fim, o PL 1595/19, de proposição do Deputado Victor Hugo (PL-GO) de uma nova “Lei Antiterrorista”, deve ser rejeitado, pois embora de natureza estrita, viria se juntar a panóplia legal na repressão à cidadania e não às garantias de segurança pública e exercício da livre manifestação das ideias e dos sentimentos políticos, constituindo-se em um instrumento de repressão e espionagem de cidadãos e partidos políticos não necessários neste momento, complicando o cenário de combate ao crime organizado. Na verdade o PL 1595/19 deveria ser revisto à luz da legislação da “Home Security” americana como instrumento de combate aos fluxos financeiros ilegais e aos crimes cibernéticos, o que em muito ajudaria no combate ao narcotráfico, verdadeiro arcabouço da violência no Brasil.
Abertura e inclusão de amplos setores populares na vida pública – o que chamamos de ampliação do “demos” – mesmo que ainda NÃO seja, de fato, uma “democratização” plena do Estado – implica na necessária diminuição, redução, reversão dos brutais índices de homicídios registrados no país que, ainda, variam, nos anos de 2015 -2019 entre 40 até 60 mil mortos/ano ( houve 43.892 assassinatos em 2020, o que significa 2.162 mortes a mais que em 2019.), a maioria homens, jovens, pretos ou pardos ao lado da urgente melhoria das condições sociais do país, a reversão da chamada “democracia feia”.
As flutuações anuais não devem, de forma alguma, enganar os administradores públicos sobre o grau de violência presentes na sociedade[15].
Variações não alteram as causas estruturais da violência.
Barbárie e Violência:
Devemos destacar a barbárie que atinge os grupos vulneráveis e subalternos, mesmo que majoritários em seus números, são minoritários em suas condições de empoderamento e emancipação social, daí continuarem estruturalmente subalternos, como negros, pardos ou mulheres “trans”, e todo o Grupo LGBTQI+ , como ainda, crianças e, sempre, mulheres. Neste caso, o feminicídio é vertical, demonstrando que a violência no Brasil soma no seu percurso uma trajetória de classe, etnia e gênero, muitas vezes invisibilizado, como nos mostra Hebe Castro em “Das Cores do Silêncio”, de 1995[16].
A Questão central reside nos limites, ao mesmo tempo, estrutural e institucional, e na resistência, da ampliação por via do voto do “demos”. Nos Estados Unidos, entre 1954 e 1968, a luta contra o “apartheid”, na África do Sul, até 1990, no Brasil o processo de democratização – o mais longo da história, como assinalamos – entre 1977 e 1988 – apresentaram limites, recuos e mesmo falhas. No caso do Brasil, é notável que os aparelhos de repressão, tanto na transição de 1945/1946 – a temível “Polícia Especial” – e na Transição da Ditadura Militar – não tenham sido tocados. As polícias, civil e militar, órgãos especiais – tais como os Deops/Dops, não foram alvos de exame e as anistias, desde 1946 até 1979, cobriram as ações de torturadores, sequestradores, ocultadores de cadáveres, incendiários etc. [17]
O grande conflito se dá em torno da ampliação aos novos grupos em ascensão tais como negros, mulheres, em especial mulheres negras, camponesas, operárias, índios e outros. Tais conflitos podem resultar na própria crise do “demos” pactuado através da Constituição de 1988. Neste sentido, a relação “política” entre as altas taxas de homicídios de pessoas dos grupos subalternos/minoritários e a resistência na ampliação do “demos”, direta e imediata, é o fulcro das tensões republicanas atuais. Tal relação compreende uma pressão “selvagem” em manter o status quo ou mesmo num brutal recuo e destruição das conquistas democráticas. A abundância brutal de mortes na sociedade brasileira é a face mais explícita da manutenção da estrutura social de privilégios e de exclusão. O jornal “O DIA”, citando um relatório da polícia do Rio de Janeiro, noticiava no dia 26/11/2021: “Polícia prende mil milicianos em um ano” [18]. Trata-se sem dúvida de uma notícia banal de uma guerra em curso. Daí a noção de “Guerra Civil Oculta” do Brasil.
Os números absurdos de homicídios e desaparecimentos – certa de 100 mil por ano em seu conjunto – com sua composição classista, transversal, de negros, pardos, jovens do sexo masculino e com um componente de feminicídio que transpassa a sociedade de forma vertical – explicita a persistência das características patriarcais, misóginas e falocratas que compõem historicamente a sociedade brasileira, tendo como base formativa a escravidão.
O “mapa’ de mortes no Brasil não se constitui numa relação prostituída ou casual da baixa política local do Rio de Janeiro ou do Pará ou da “Arco do Fogo” do desmatamento amazônico do crime organizado. Na verdade, constitui-se uma forma contumaz e histórico – Genocídio, Escravidão, Canudos, Contestado, Ditaduras[19] – e rotineira na história do Brasil em contenção e configuração das relações sociais, desmentindo a chamada tese da “ternura brasileira”, mas, de certa forma, confirmando a noção mais dura da “cordialidade brasileira”, confirmando o país descrito por Sergio Buarque de Holanda.
Os homicídios em massa são parte de uma vasto processo de manutenção da dominação, de classe/gênero/etnia, de velhos contra jovens, no Brasil. O debate sobre o caráter da dominação de classe que se explicita em formas de segregação étnica e transversalmente de gênero e minoriza maiorias – negros, pardos, mulheres – pelo processo de negação de direitos e remunerações é bastante evidente e sua expressão sob a forma de violência privada e pública se torna cada vez mais visível. Tal visibilidade tornou-se mais frequente – como no “Caso Carrefour” (2020), na Chacina de Acari (1990), da Candelária (1993), de Vigário Geral (1993) ou Varginha e Jacarezinho (2021) e Vila Cruzeiro (2022) – seja pela tomada de consciência e existência de ongs – que inclusive precificam os danos materiais e o valor da vida – seja pela existência e difusão de telefones capazes de filmar ou pela massificação do número de vítimas e sua repetição e a participação de tropas do Estado[20]. E que agora, para espanto e choque, se configura no retorno do fenômeno da fome em massa que atinge multidões da terceira potência agrícola do planeta.
A fome é uma forma de controle social[21].
Por fim, o debate, ainda restrito, sobre o peso estrutural da relação escravidão-racismo-resistência à mudanças remete claramente ao debate historiográfico sobre a natureza do fascismo/nazismo no Terceiro Reich entre os historiadores defensores do “Funcionalismo” (não confundir com os funcionalistas de Bronislaw Malinowski e Talcott Parsons) e “Intencionalistas”, durante a “Historikerstreit” (a “Querela dos Historiadores”) na Alemanha, com considerações que a violência é uma “estrutura” da sociedade brasileira, autônoma e auto estruturante, independente da ação dos indivíduos, levados de roldão pela força de uma história que não muda (“um passado que não quer passar…”) e de um passado que não passa[22].
O Brasil é um país que o passado sequestrou o futuro.
Violência no Brasil: classe/etnia/gênero/idade.
Esse processo de dominação, de longa duração, estruturante da sociedade brasileira, uma hipoteca sobre o futuro, que tanto enfeia a democracia, é claramente um processo de classe, grupo e frações de classe, envolvendo uma visão social, uma mentalidade – em seu sentido mais amplo de mentalité -. traz a experiência da escravização das pessoas pretas, a seleção de gênero (uma razão masculina mais elevada), que se une a uma tradição ibérica de “limpeza de sangue”, estabelecida desde a Colônia quando se exigia provas de “sangue limpo” ( sem contágio negro, mouro ou judeu). Ainda avançado o século XIX, em 1820, os “tribunais de limpeza de sangue” funcionavam no Brasil para estabelecer “….a quem faltar a pureza de sangue com raça de judeu mouro, e de mulato, por igual modo que qualquer outra infame de fato e de direito”[23]. Evidentemente, “negro’ ou “preto” não é sequer nomeado no alvará por absurdo que seria a pretensão de algum negro/pardo se aventura a ser “homem bom”[24].
Muitos cientistas sociais no Brasil hoje, mesmo sem saber, acabam assumindo uma postura “funcionalista”, por analogia ao “Historkerstreit” alemão e ao debate sobre a natureza do Terceiro Reich, onde a força de tais estruturas, sempre se reproduzindo autonomamente, moldando a história, explicam, o presente e ameaçam o futuro – daí o “passado que não passa”, tudo “funciona” como uma gigantesca máquina anônima, automáticas e cega.
A escravidão no Brasil é o passado que não passa e vive no nosso presente.
Assim, os homens e suas ações, e sua responsabilidade, e a noção de “Intencionalistas”, não possuem qualquer papel na história, perante forças tão poderosas, na contramão da história de historiadores como François Bédarida e de Hans Mommsen, centrados na “intenção” e responsabilidade dos atores, quando analisam os fascismos.
O alto grau de violência na sociedade brasileira e da sua desigualdade estrutural como fator genético não são, contudo, componentes de uma “máquina do destino”. Cabe reconhecer um “estado de guerra larval e contínuo” no qual vastos grupos sociais são explorados e oprimidos em favor de uma minoria.
Os níveis de homicídios – acompanhados de altos níveis de mortes violentas e de envolvimento/mortes/perpetração por parte agentes policiais, em especial de policiais militares em tais crimes – supera em muito o número dos conflitos internacionais em curso no momento, como na Síria – 500 mil mortes entre 2011 e 2020 -, Líbano, Nigéria ou mesmo Afeganistão, constituindo-se numa verdadeira “guerra civil oculta” travada, por vezes, nas grandes cidades do Brasil. Os números de homicídios no país, como vimos, entre 2017 e 2022, flutuam entre 63.880 em 2019, 43.892 em 2020, 43 mil em 2021 e 40.800, em 2020[25]. É isso que denominas de “Guerra Civil Oculta!”
A Guerra Civil do Brasil.
É comum, para a explicação dessa “guerra civil oculta”, trazer a questão do tráfico de drogas para o centro da violência no Brasil. O domínio de narcotraficantes, historicamente no Rio de Janeiro e algumas áreas periféricas de São Paulo e grupos de assaltantes no Paraná, Goiás e Minas Gerais denominados de forma claramente racista e preconceituosa como o “novo cangaço”, bem como em amplíssimas áreas da Amazônia, foi erguido como elemento a justificar os conflitos entre policiais e “criminosos”, dos quais decorriam “balas perdidas” que encontrariam corpos entrepostos ao conflito. No entanto, os homicídios não são apenas de “balas perdidas”. Ao lado do narcotráfico emergem um sem número de organizações criminosas: do jogo do bicho, a tradicional organização criminosa urbana ao crime ambiental de destruição da floresta, de contrabando de madeiras, armas, ouro, pedras preciosas, animais silvestres, de crianças, de órgãos humanos, e todo tipo de ilícitos que transbordam sobre um território que o Estado não controla permitindo, in loco, a convergência criminosa de todo tipo.
Um número crescente de atos de selvageria e barbárie – em crescimento no Brasil – mostram, ainda, outras causas da violência estrutural no Brasil, para além das (1) guerras entre gangues para o controle de tais fluxos de ilícitos ou (2) conflitos entre policiais e criminosos na participação em tais fluxos ilícitos.
A violência conservadora no Brasil
Entre janeiro e junho de 2021, 80 (oitenta) pessoas “trans” foram mortas no Brasil, segunda a associação ANTRA[26] (sendo que em 2020 foram mortas 175 pessoas nas mesmas condições, transformando o Brasil o país que mais mata “pessoas trans” em todo o mundo; da mesma forma, desde o início da pandemia ocorreram 4 (quatro) feminicídios por dia no Brasil, com um aumento brutal do número de mulheres mortas, chegando a um total 1.338 um mulheres até o momento[27].
As crianças são outro grande alvo da violência, incluindo a violência doméstica, de todo tipo, como a agressão sexual, descuido, abandono e formas variadas de assédio violento e negligência. A máxima da educação “antiga” – “… não fale com estranhos!” – é ineficaz no Brasil: a maior parte das agressões contra menores é cometida por conhecidos e familiares!
O fechamento das escolas e as atuais tentativas de reabertura intermitente são outra forma de agressão: durante os quase 18 meses de recesso escolar nada foi feito para preparar, de forma segura, a escola para receber as crianças e adolescentes, que estão, assim como professores e todos os demais profissionais de ensino, expostos, antes/depois da vacinação efetiva e garantida de 70% da população, às variantes e novas/diversas cepas de covid-19.
O “Caso dos Meninos de Belford Roxo” – Lucas da Silva, de 9 anos, Alexandre da Silva e Fernando Henrique Soares, de 11 anos, os meninos do passarinho -, desaparecidos desde 27/12/2020, é parte desse imenso descaso e brutal violência contra as crianças do Brasil, ora nas mãos do Estado, ora na mãos de traficantes.
Embora haja de fato um número assombroso de vítimas decorrentes da “guerra de bandos narcotraficantes”, com ou sem a interveniência das policias, devemos ter claro, que há uma violência brutal, estrutural, contra grupos sociais diversos – como o “Caso Roberta”, – a mulher “trans” queimada viva em Pernambuco, como os meninos passarinheiros de Belford Roxo e contra as mulheres em geral por companheiros, que não merecem nenhuma ou quase nenhuma atenção por parte da administração policial, sem inquéritos efetivos e sem que resultem em punições efetivas que inibam sua repetição. Em verdade o chamado “Indicador Nacional” que aponta 44% de resolução de casos/inquéritos criminais, o que deixa o Brasil abaixo da média mundial, na resolução, é de cerca de 63%, segundo dados reunidos em 72 países[28].
Soma-se, desta forma, à violência estrutural presente na sociedade brasileira onde grupos sociais colonizam instituições do Estado como “privi-legios” naturais de classe, uma postura institucional de descaso e descuido que, em verdade, revela a face racista e sua origem classista, da violência institucional. Ambas as formas de violência – estrutural e institucional – se unem para perpetuar um habitus de impunidade presente na sociedade brasileira.
Nesse ponto diferenciam-se duas formas de violência e da sua organização:
(i) A violência estrutural, organizativa e parte fundante da sociedade brasileira, de caráter classista, étnica, resultando num racismo persistente, que é invisibilizada no habitus;
(ii) A violência que organizada através de cartéis e novos meios empresariais do narcotráfico, com largos ramos e enlaces internacionais financeiros voltados para sua diversidade, como armas, finanças, meios de transporte, cambio etc.
Na sua prática diária ambas as formas recorrem à métodos brutais e perversos, reafirmam as práticas de diferenças de classe, gênero e etnia, corrompem menores e atuam na prostituição, contudo seus objetivos, forma de organização e método de agir são bastante distintos e, principalmente, sua ação na putrefação do Estado de Direito Democrático e na promoção da “libertação de territórios” possuem interesses diversos. Neste sentido, o combate contra ambas as formas, deve ser claramente distinto e acima de tudo assumindo que uma política ativa e autônoma de Direitos Hiumanos não é tarefa de um ou outro ministeriuo, mas uma imperiosidade transversal para tdoso os entes do Estado brasileiro. Os Dirietos Humanos são uma postura militante para todo cidadão brasileiro, e não apenas restrito a eventos chocantes envovloendo nomes conhecidos da cultura e dos esportes, mas uma dívida civilizacional com a maioria da popualaçoa brasileira.
A nova face da “Guerra do Tráfico”:
Após a queda das redes do tráfico configuradas com as Farc e os seus nexos no Rio e São Paulo, deu-se uma reorganização das rotas de fornecimento, via a chamada “Rota do Solimões”, transferindo para a Amazônia a violenta luta entre os carteis. Para o seu pleno funcionamento buscou-se o controle das penitenciarias de Manaus, Fortaleza e Natal, de onde se arregimentava o “pessoal” – soldados”, “aviões” e demais serviços – e mesmo a organização de um novo comando, “A Família do Norte”, que deveria fazer a intermediação com os “comandos” do Sul. A ‘guerra” nos presídios, com as cenas bárbaras de morte por decapitação, foram parte da guerra pelo controle da “Rota do Solimões” e daí as penitenciárias e os aeroportos de Natal e Fortaleza para a Europa.
– Natal e Fortaleza – na junção das “duas violências” tornaram-se as capitais federais mais violentas do país, enquanto o Rio de Janeiro não aparece na mesma lista em situação de destaque e entre os municípios mais violentos temos: Altamira (PA), Lauro de Freitas (BA) e Nossa Senhora do Socorro (SE)[29].
A “Rota do Solimões”: a necessidade de revisão do papel do Comando Militar da Amazônia. O controle de aeroportos, de equipamento moderno de voo, de monitoramento e de “C4” está disponível em setores militares e deve ser passado para civis e constituir-se numa área de Inteligência autônoma. Área de controle do 8º. Batalhão de Infantaria de Selva (com um destacamento de Batalhão de Engenharia e um excelente Hospital, com obstetrícia).
Devemos ter claro um debate conceitual: de qual segurança e garantias estamos falando? Segurança para quem? Garantia de Direitos de quem ? Qual a extensão de tais Direitos?
Aqui importa desenvolver duas vertentes fundamentais para um futuro e eficaz conceito de Segurança, que deixe de ser uma “Segurança Nacional”, de Estado ou de uma elite que se identifique com o Estado. A “Segurança” deve ser voltada para a maioria que precisa de proteção contra grupos que agem à margem do Estado de Direito Democrático, inclusive sobre proteção do Estado e de poderes paralelos que desviem de suas funções precípuas “de Estado”. Neste sentido, como já afirmamos, não há um “Estado Paralelo” – e não devemos usar tal expressão – mas, tão somente, homens, funções, parcelas e entes criminosos que se apropriam “de funções de Estado”, por vezes em exercícios de microfascismos, para em proveito próprio, de grupo e de decorrência de putrefação do Estado de Direito, usurpar as funções, principalmente da violência legal do Estado[30].
Assim, toda Segurança deve ser Cidadã e Institucional, o que tem sido ignorado, na sua formulação e na sua implementação, tanto por segmentos progressistas, quanto pelas chamadas “Forças da Ordem”, visando as garantias da INTEGRIDADE FÍSICA DOS GRUPOS SUBALTERNOS, SUA POSTUALAÇÃO DE DIREITOS PERANTE AS AUTORIADES E SEU DIRTEITO DE INTIMIDADE E PRIVACIDADE NO INTERIOR DO SEU LAR.
Cabe rejeitar:
(i) a brutalidade, no imenso número de casos de alto teor racistas, na repressão dos ilícitos, sempre junto às comunidades e grupos subalternos, como parte constante das ações da REPRESSÃO HISTÓRICA DO PROCESSO SOCIAL BRASILEIRO;
(ii) A CULPABILIZAÇÃO EM, MASSA DAPOPULAÇÃO, hoje já inscrita em apps eletrônicos e instrumentos de reconhecimento facial, sem trabalhos prévios de Inteligência, Comando, Controle e Comunicação por parte do Estado, optando pelo uso da força bruta, e o fuzil, deixando uma rastro de vítimas inocentes – as chacinas, massacres e no imprevisões como a “câmara de gás de Aracaju” o “Caso da Bicicleta Elétrica” do Leblon, no Rio de Janeiro – , onde e quando um biotipo é sempre identificado previamente como criminoso;
(iii) E, de forma reincidente na PRÓPRIA PRÁTICA DA JUSTIÇA como na EXPEDIÇÃO DE MANDADOS COLETIVOS DE BUSCA ABRAGENDO RUAS E MESMOS BAIRROS INTEIROS em comunidades, sem discriminação de endereços ou nomeando indivíduos, o que criminaliza toda a comunidade como “perigosa” ou “suspeita” pela simples razão das condições precárias de moradia.
Embora a “fala” , e muitas vezes a preparação de ações concretas sejam sempre bélicas – “Guerra ao Tráfico”, “Guerra ao Crime Organizado”, “Guerra às Drogas”, etc… , os meios utilizados no combate ao narcotráfico são primários, não só mantidos num patamar do senso comum, de alta precariedade e alta emoção “na tropa”, como ainda, travados como “troca de tiros com bandidos”. Em várias ocasiões vemos que após “operações” mal planejadas ou “selvagens” – sem preparo ou autorização judicial – por parte dos corpos policiais, ocorrem baixas no enfrentamento com o narcotráfico, resultado e então incursões “punitivas” – “vinganças” – contra a população envolvente, resultando em tragédias brutais entra civis – como no caso da Vila Cruzeiro, em 2022. Escolas, blocos habitacionais, áreas de recreação e moradias são usadas como escudos ou ignoradas por ambas as partes, muitas vezes a partir de critérios de construção de perfis racistas/coletivistas. Não há nenhuma preparação prévia para a realização de tais “operações”, na maioria das vezes trata-se de “cumprir” mandados de “busca” e “apreensão”, com base em informações/inteligência humanas precárias e sem qualquer confirmação, resultando em invasões, violência física e brutalidade.
A combinação/organização de modernos meios de Inteligência Humana, Técnica e Cibernética e o “Trabalho Interagências” é raro ou mesmo ignorado. Fala-se em “C2” – “Comando e Controle”, algumas vezes em “C3”, ou seja em empregar-se-ia meios de “Comando, Controle e Comunicação” como forma de desorganização das redes do narcotráfico, sem perceber as novas e avançadas tecnologias já disponíveis para uso em nível muito mais complexo como C4ISTAR /Command, Control, Communications, Computer, Intelligence, Surveillance, Target Acquisition, Reconnaissance. Tais meios, são ainda ignorados, – em especial a correta e específica definição de “Target Acquisition” – embora sejam a forma mais completa de acompanhamento de redes complexas, como o tráfico, terrorismo, contrabando e demais formas de crime transfronteiriço. Toda uma moderna tecnologia que poderia identificar as redes de fluxo financeiro e computacionais capaz de “secar” as rotas que irrigam o tráfico são deixadas de lado em favor do confronto físico, tiros ao léu e invasões coletivas de áreas residenciais, com ou sem mandados, resultando em matanças como no Jacarezinho, Rio de Janeiro, em 06/05/2021, em vez de minimizar os efeitos do uso do fuzil contra as comunidades periféricas[31].
Assim, é urgente uma reformulação total de todo o tratamento da Questão de Segurança Cidadã, e consequentemente sua dimensão Institucional, a saber:
1. O reconhecimento que a Questão dos Direitos Humanos é uma Questão Nacional e não está tão somente contida na Questão de Segurança Cidadã e seu desdobramento Institucional, perpassando todas as ações do Estado;
2. A Questão do Racismo Estrutural permeia toda a Questão de Segurança. No entanto, a urgência da contenção da violência brutal no país praticada não só pelas polícias, como também por elementos civis – como contra a população “trans”, contra mulheres e crianças necessitam de uma abordagem de conjunto por parte do Estado;
3. Estabelecer as Organizações Narcotraficantes como alvos da ação repressora – “Target Acqusition” – e não os pequenos e eventuais traficantes, “aviões” , “olheiros”, “fogueteiros”, etc… retirando do embate físico – as chamadas operações;
4. A prioridade imediata para redução de operações “selvagens”, visando a diminuição imediata de vítimas de “balas perdidas” e de “baixas colaterais”;
5. Aplicar os meios de Guerra Cibernéticas – C4I – para o desmantelamento das organizações narcotraficantes, buscando atingir sua organização e não – apenas – os indivíduos na ponta da operação;
6. Sendo um crime “transfronteiriço” nacional e internacional, e pontos de uso de múltiplo acesso como aeroportos, portos, penitenciarias federais (por vezes “escritórios do crime”), o combate ao narcotráfico deve, necessariamente federalizar o combate contra tais redes, criando uma agência civil com meios cibernéticos de combate e de ação interagências (hoje essa agência se encontra no âmbito do Exército, que deve ser um partner e não um agente em tal tarefa);
7. Devemos reconhecer o caráter internacional do tráfico e a necessidade da cooperação internacional no seu combate via acordos internacionais, concentrando as polícias estaduais nas garantias de cidadania cotidiana;
8. A reeducação permanente das polícias, em especial da polícia militar, num sentido antirracista e popular e dos Direitos Humanos, para reconstruir o perfil do traficante e do que é o “ilícito” e do tipo de ilícito que realmente ofende o Bem Comum através da cooperação com secretarias especializadas e do mundo acadêmico, sem buscar criar ou substituir os entes já existentes e capazes na sua função precípua;
9. Estabelecer protocolos rígidos para o uso de armas de fogo, para operações em áreas de risco e a proibição de “blitz” selvagens, tendo claro que o “fogo real” não é justificável em áreas abertas e em situação de risco da população civil;
10. Suprimir a demanda de “mandatos coletivos de busca de casa em casa” e não nomeados como ameaça aos Direitos Civis;
11. A obrigatoriedade do uso de câmaras em viaturas e nos uniformes em todos os casos de operações policiais sob controle externo;
12. Garantir o acesso da população a juizados de denúncias sobre violências praticadas por agentes do Estado e eliminar os julgamentos intra-corpore.
Trata-se de formular um Programa Emergencial capaz de impactar, de imediato, as relações do “demo” ampliado com o Estado buscando a confiança e o diálogo com as populações das comunidades e restabelecendo, o que é fundamental, os laços de entendimento e do que é possível de esperar do Estado.
No entanto, apenas a presença do Estado, a longo prazo, como provedor das necessidades básicas das populações historicamente abandonadas, em grande parte “adotadas” pelo próprio narcotráfico, pelas milícias, como paródia de Estado, como um poder paralelo, jamais um Estado paralelo, poderá criar condições de restabelecer as condições republicanas de segurança cidadã e seus desdobramentos institucionais.
Francisco Carlos Teixeira da Silva
Professor Titular de História Moderna e Contemporânea/UFRJ
Professor Titular de Teoria Social/UFJF.
Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior/Eceme
Prêmio Jabuti, 2014
Prêmio Abert, 2002.
[1] Aqui nos referimos desde os lugares comuns de “bandido bom é bandido morto” até uma certa conformidade existente nas Esquerdas quer o tema de “Segurança” foi definitivamente capturado pela Direita e Extrema-Direita e a confusão clássica entre um programa de segurança e a obrigatoriedade em respeitar e promover os Direitos Humanos. Trabalhamos aqui com as noções de “Direita” e “Esquerda” conforme uma topológica, como foi proposto por Norberto Bobbio, em “Esquerda e Direita, razões e significados de uma distinção política”. Petrópolis, Paz e Terra, 1994 e como procuramos estabelecer em “Dicionário Crítico do Pensamento de Direita” ( Teixeira da Silva, Francisco Carlos et alii, Rio de Janeiro, Mauad, 2000).
[2] Ver Tannenbaum, Edward. La Experiencia Fascista. Madrid, Alianza Editorial, 1975, p. 159 e ss.
[3] Destacamos aqui a noção de “Poder Paralelo” em oposição a “Estado Paralelo” no sentido de que não há quaisquer legitimidade democrática, legal ou doutrinal no(s) poder(es) erguidos pelas milícias, em especialmente no Rio de Janeiro, impossibilitando assim, falar em “Estado”, guardando tal noção exclusivamente para o Estado Nacional, emanação legal e democrática da Nação brasileira.
[4] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/07/15/letalidade-policial-e-a-mais-alta-da-historia-negros-sao-78-dos-mortos.htm, 15/07/2021, consultado em 20/08/2021.
[5] CNN BRASIL. Entre Janeiro e Marco deste ano, 453 pessoas morreram em ações policiais no Estado do Rio de Janeiro, 4% a mais do que as 435 vítimas no mesmo período do ano passado, quando ainda não estava em vigor a determinação do STF (Supremo Tribunal Federal) que restringiu as operações em favelas fluminenses. IN: https://www.google.com/search?q=n%C3%BAmero+de+vitimas+em+confrontos+com+policiais+no+ano+de+2021%3F&rlz=1C1SQJL_pt-BRBR920BR920&oq=n%C3%BAmero+de+vitimas+em+confrontos+com+policiais+no+ano+de+2021%3F&aqs=chrome..69i57.18923j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8.
[6] D´Orsi, Angelo. La Polizia. Milão, Feltrinelli, 1976.
[7] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/07/15/letalidade-policial-e-a-mais-alta-da-historia-negros-sao-78-dos-mortos.htm, 18/07/2021, consultado em 10/07/2021.
[8] FERREIRA, Romualdo. África durante o comércio negreiro. In.: SCHWARCZ, Lilia Moritz e GOMES, Flávio (org..). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 55.
[9] Novais, Fernando Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial. São Paulo, Hucitec, 1995.
[10] Novais, Fernando, Op. Cit,, p. 19 e ss. Ver para o debate sobre racismo: Poliakov, Leon. O Mito Ariano. São Perspectiva, 1971.
[11] Linhares, Maria Yedda e Teixeira da Silva, Francisco C. Terra Prometida. São Paulo, Expressão Popular, 2021.
[12] G1. Prédios desabam na Muzema, Rio. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/ao-vivo/predios-desabam-na-muzema-rio.ghtml, 13/04/2021. Consultado, 21/08/2021.
[13] Schurster, Karl e Teixeira da Silva, Francisco C. Militares e bolsonarismo: um caso da transição falhada e democracia inacabada. In: Revista Relaciones Internacionales https://revistas.unlp.edu.ar/RRII-IRI Vol 30 – nº 60/202, file:///C:/Users/55219/Downloads/12155-Texto%20del%20art%C3%ADculo-41773-1-10-20210713.pdf.
[14] Ver Vianna, Natalia. Dano Colateral. Rio de Janeiro, Objetiva, 2021.
[15]https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2021/02/12/brasil-tem-aumento-de-5percent-nos-assassinatos-em-2020-ano-marcado-pela-pandemia-do-novo-coronavirus-alta-e-puxada-pela-regiao-nordeste.ghtml, 12/02/2021.
[16] Castro, Hebe. Das Cores do Silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista (Brasil, séc. XIX), Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995.
[17] Assis, Denise. Claudio Guerra: Matar, queimar. Rio de Janeiro, Kotter, 2020.
[18] O Dia, 26/11/2021.
[19] Ver Carneiro, Glauco. História das Revoluções Brasileiras. Rio de Janeiro, Editora “O Cruzeiro”, 1963.
[20]Muitas vezes o que mais preocupa é a possibilidade que a precificação da violência de racial e de gênero haja no sentido contrário ao endurecimento da legislação existente.
[21] Linhares, Maria Yedda e Teixeira da Silva, Francisco C. História Política do Abastecimento. Brasília. Binagri, 1984.
[22] Buchheim, Hans et ali. Anatomie des SS-Staates. Munique, Deutscher Taschenbuchverlag, 1999.
[23]http://historialuso.arquivonacional.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4950:pureza-de-sangue&catid=196&Itemid=215
[24] Rodrigues, Aldair Carlos. Honra e estatutos de limpeza de sangue no Brasil colonial. In: file:///C:/Users/55219/Downloads/31841-124109-1-PB%20(1).pdf. Consultado em 12/07/2021.
[25] https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/07/07/80-pessoas-transexuais-foram-mortas-no-brasil-no-1o-semestre-deste-ano-aponta-associacao.ghtml..
[26] https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/07/07/80-pessoas-transexuais-foram-mortas-no-brasil-no-1o-semestre-deste-ano-aponta-associacao.ghtml.
[27] https://pt.org.br/brasil-registra-mortes-de-1-338-mulheres-por-violencia-na-pandemia/
[28]https://www.google.com/search?q=inqueritos+n%C3%A3o+resolvidos+no+brasil&oq=inqueritos+n%C3%A3o+resolvidos+no+brasil&aqs=chrome..69i57.15565j0j4&sourceid=chrome&ie=UTF-8
[29] Fórum Brasileiro de Segurança Pública/IPEA, 2015/2015. In: https://exame.abril.com.br/brasil/as-30-cidades-mais-violentas-do-brasil-segundo-o-ipea/ e https://exame.abril.com.br/brasil/capitais-mais-violentas-do-brasil/
[30] Souza Alves, José Claudio. Dos Barões Ao Extermínio Uma História Da Violência Na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro, Editora Consequência, 2021.
[31] Rovner, Joshua. WARFIGHTING IN CYBERSPACE. IN: HTTPS://WARONTHEROCKS.COM/2021/03/WARFIGHTING-IN-CYBERSPACE/, 2021.
O Pênis e a Lei: alguns apontamentos sobre as relações quotidianas entre Cultura e Inconsciente.
Francisco Teixeira[1].
Atoum se manifesta en tant que masturbateur dans la ville de Heliopólis. Il saisit son membre et y suscita la jouissance.
Texto das Pirâmides, §1248, Antigo Império, 4500 a.C.
Uma sociedade minimamente civilizada deveria ter, mesmo entre nós e mesmo no atual momento de profunda crise econômica e política – bem como de crise dos saberes e do agir coletivo -, condições de construir mediações sociais, para além da indesejável instituição manicomial, dotadas de fala e ação,
numa forma de amparo, para o sofrimento psíquico que servisse, minimente, de anteparo social para indivíduos duramente atingidos por forte sentimento de des-pertencimento, anomia, que viesse a tornar-se sofrimento emocional. Nos deparamos hoje, na experiência quotidiana, com uma comum incompreensão sobre o tipo de mal-estar que o indivíduo na condição contemporânea enfrenta na sociedade (pós)moderna, não conseguindo distinguir minimamente o que se trata de um Problema, e portanto experimentado na esfera da vivência exclusiva do próprio Individuo nas suas relações com o Outro – o “Mitwelt”, que pode muitas das vezes parecer desde difícil até aterrador, ao limite do pânico, daquilo que poderíamos chamar de uma Questão, que mesmo sendo vivida, experenciada, por um Individuo, é comum a um vasto conjunto de entes, caracterizando-se por um mal-estar coletivo, no qual o “Eigenwelt”, o próprio do Indivíduo, na sua condição ontológica, assume um claro aspecto ôntico, referindo-se ao conjunto de dificuldades, medos e recusas, das relações coletivas do ente com o “Umwelt”, o conjunto do seu mundo vivenciado[2].
É sabido, mesmo que de forma muito impressionista e empírica, que a crise, que já atinge profundamente as condições emocionais, o ânimo, de milhares de pessoas – e não é só uma crise “nacional” como podemos ver nas expressões vivenciadas em sociedades como a americana ou a alemã -, na sua expressão de mal-estar se expressa em metonímias e metáforas de variadas intensidades em variadas condições. Entre nós apresenta uma face inteiramente nova: a exteriorização sob a forma de ódio de classe, de gênero, de raça, credo e orientação política de um difuso sentimento de perda, uma falta de alguma coisa não sabida, que se queria existente num outro tempo e não existe mais. Sentimento lacunar de perda incomunicável, uma coisa que existiria em um “lá” – “o da” fora e para além do “sein”, uma falta na possibilidade de um momento à frente, que passa por isso mesmo a ser temido como um futuro assustador e incompleto. Esse futuro não sabido e oculto é, contudo, já ocupado, no mais das vezes somente enquanto possibilidade, por um Outro, tornado por isso mesmo inimigo, estrangeiro ao Eu, de quem subtrai uma parcela da sua própria possibilidade futura de existência, roubada em algum tempo do não-sabido no passado. No espaço do quotidiano esse Outro é identificado como o migrante, o negro, o pobre ascendente, a mulher emancipada, o gay, ou o tudo-isso-junto transformado no Outro, ao mesmo tempo necessário, conveniente e temido, posto que o sentimento lacunar precisa de um Outro, ou ver-se-ia perante o Nada. Em alguns desses casos o delírio neurótico, claramente defensivo, embora de extrema agressividade, acaba por constituir a totalidade da narrativa possível perante o “estar-aí”, o mundo “lá-fora” – o “Umgebung”, hostil e incompreensível, onde o Indivíduo é lançado – “Geworfenheit” -, como puro projeto em branco. Ao escapar enquanto fala neurótica instrumentalizada, o ódio enquanto narrativa contemporânea, atende assim a realização do sintoma do sofrimento como realização de uma (com)pulsão primeva, antiga e aterradora. É o espaço da “falta-lá” comprimido num passado que se recusa a passar – esse é o seu significado, sintoma de um trauma -, inalcançável ao sujeito, lacunar e, de forma aterradora, repetitivo. Em outros casos/momentos pode assumir, no seu limite, um agir prático, tornando a narrativa em ato, uma fuga à frente em busca de dotar de um sentido um “estar-aí” esvaziado de uma existência, incapaz do passo à frente, do “pode-ser” em direção à transcendência. No entanto a transcendência será sempre uma transcendência metafisica presa à palavra, impossível de realização prática posto que descolada de qualqyer de projeto de vida.
A multiplicação dos casos de depressão e a ocorrência de suicídios, ao lado da xenofobia, da exaltação do racismo e das fobias e o cultivo carinhoso do ódio, são todos a ponta, ainda imprescrutada, da crise geral de uma sociedade de massas, modernizada enquanto técnica e paralisada enquanto projeto humanista.
O outro conveniente: Escolha aleatória e padronizada.
pós-modernidade quando do insucesso da oferta globalista depois de 2008. A outra ponta, é a sucessão de atos de agressão, inclusive homicidas, contra aqueles apontados como o Outro conveniente. A aparente escolha aleatória desse Outro, guarda em si um padrão informada pelo racismo estrutural e institucional, que inventa e reinventa permanentemente a mesma pergunta: quem é o nosso judeu?
É uma escolha aleatória no sentido que o investimento de todo a energia pode ser direcionado a qualquer indivíduo, parte da humanidade comum. Possui um padrão estrutural e institucional, entanto, no sentido que o investimento do discurso do ódio, e seu agir, se dá em direção àquela aparcela da humanidade que, em meio à crise, decidiu-se por um projeto de transcendência material em face ao “estar-aí”, recusando a repetição – a mimesis como projeto de futuro – e buscando um novo topos nas hierarquias existentes e tomando o passado como diegesis.
Ao negar o “estar-aí”, propondo-se, lançando-se em direção a um “poder-ser” que realizar-se-á ou não numa “Existenz” autêntica, preenche as lacunas narrativas de perda – de uma subtração de alguma coisa que não é dita – daqueles que vivem o sofrimento. Assim, as mulheres – essas primeiras e principais ameaças a opacidade de um mundo assentado no “estar-aí” imóvel e imutável –, os grupos que exigem acesso pleno à cidadania, tais como negros e outros etnias submetidas em outras condições sociais ao risco do extermínio ( como os rojingas, só para ampliar a margem de submissões opressivas ou as minorias chinesas durante a pandemia de covid-19 ), os homossexuais na transgressão do corpo em busca do gozo, são apontados como o Outro conveniente – um inimigo que objetivamente carrega a culpa pelo fantasma que ronda muralhas do Castelo de Elsinore e, como a peste, apodrece os fundamentos do Reino da Dinamarca. A exterminação desse Outro, um ritual propiciatório de derramamento de sangue para a manutenção da velha ordem, as muralhas protetoras do Ego, é o preço para garantir a paz sem transcendência formal – que se dá na metafísica, através da repeticação de velhas formulas mágicas, que acalmam e mantem o mundo em seus gonzos[3].
Eis aí a matéria-prima dos fascismos.
Trata-se de uma forma revolucionária, violenta, de conservação do mundo, na qual a palavra, apostrofada, emergindo de um trauma, desempenha o papel central no ordenamento do mundo. Não se trata da palavra decifrada, na chave do desvelamento, mas na palavra tomada como realidade do mundo.
Muitas vezes, ao nos debruçarmos com algum cuidado sobre a narrativa dos atores em presença – os odiadores e suas vítimas – , ou mesmo na fala construída sob a forma de “posts” em redes sociais, onde podemos perceber o ódio como tônica da expressão coletiva atual, emerge uma narrativa desconexa e repetitiva – a novilígua sob a forma de fala apostrofada – contudo costurada num corpus discursivo retalhado, fragmentado, e novamente costurado por alusões persecutórias delirantes através de um liame comum de exclusão do Outro, numa linguagem dual do “nós contra “eles”, onde a ação dialógica, comunicativa, é substituído pelo insulto.. Tal presença falsamente dual – a fala fragmentada e a costura do ódio são, em realidade, falas perempetórias – explicitam um deslocamento profundo do ser-no-mundo, na sua capacidade de entender a si mesmo e de dar sentido a sua existência-no-mundo, que passa a ser ameaçada pela existência do Outro, vista como pura ameaça – ameaça que ele mesmo não consegue definir ou entender para além do próprio existir negativado, invertido, em especial em um existir-que-se-faz-Outro. Ou seja, o Eu-sendo só existe enquanto versão negativizada do gozo do Outro, esse diferente, e que de alguma forma expressa o gozo interditado, mesmo que seja um gozo imaginário ou apenas antevisto e auto-negado[4].
O Outro que ousa gozar ali onde eu sou impotência/vicío/nojo é votado à exclusão e, se possível, ao extermínio. É assim que mulheres, homossexuais, pretos são os fantasmas a rondar as muralhas de um Eu que não consegue parar de falar em buruco/cú/rosca e, por outro lado mimetizar próteses corporais de exytensões penininas.
A narrativa fragmentada, desconexa, costurada por repetições delirantes de ódio – a novilíngua apostrofada – , volta-se para um passado utópico, imóvel e onde só o experenciado – a utopia imaginária na ditadura que não houve, na tortura que não aconteceu, ou os desaparecidos que não desaprecerem – possui valor: nada de valoroso existe para aquém do passado, cada vez mais mítico, um tempo comprimido e interrompido por um trauma, que pode ele também ser real ou mítico, erigido à posição de evento fundante e, por isso, presentificado. O passado interrompido pela “canalha” esquerdista/comunista/petista/bolivariana deve ser revivido/retornado/retomado num esforço constante como se a história fosse um exercício masturbátório de um gozo interrompido que pode ser retomado bastanto para isso rever as imagens gozosas que estimulam o prazer: a ordem do mundo perdido.
O presente-agora, “Jetztzeit”, por tanto, é estreito, um tempo de decepções e de perdas, posto que esse tempo presente não possui mais o passado vivenciado, que foi perdido em brumas distanciando-se do hoje, e torna-se um tempo de corropções onde o inimigo, o Outro é o dominante, portanto, incapaz de acessar qualquer impulso vindo do passado gozado para construir o futuro. No presente, o Indivíduo para-o-sofrimento só vive o passado enquanto repetição/mimesis – sintoma de um sentimento de onipotência, posto que na repetição compulsiva/masturbação da história buscar reconstruir no presente o passado mítico – no entanto resulta sempre em repetição empobrecida a qual ele não alcança a fruição total, não possui acesso, tornando impossível qualquer gozo no presente ou projeto para o futuro, condenando-se, numa onipotência impotente, a uma repetição sucessiva e dolorosa de um ato que não mais controla. Não há futuro possível, apenas a possibilidade de gozar numa imagem que já-foi.
Assim o que era utopia regressiva, banzo, se aprofunda em desprazer e se expressa em mal-estar, em “. algo[que] me aconteceu, não posso continuar duvidando. Veio como uma doença, não como uma certeza ordinária nem como uma evidência. Instalou- se pouco a pouco, eu me senti estranho, algo incomodado, nada mais [itálico nosso]. E agora cresce.[5]” Mas, ao contrário do personagem na biblioteca (até por que nossos personagens não freuqnetam bibliotecas) o homem estranhado da sociedade de massas brasileiro – que existe TV aberta, programas do “Ratinho”, Sílvio Santos, em grande parte frequente uma igreja evangélica e não possui o hábito da leitura – quer atribuir a um Outro o sentimento que o invade e sequer sabe que o invade.
Seja como náusea, “la nausée” de Sartre, seja o “Verfremdung”, a alienação, do primeiro Marx, em especial nos “Manuscritos Econômico-Filosóficos”, de 1844, seja o “Unbehagung”, o Mal-Estar, de Freud, em o “Mal-Estar na Civilização”, há na sociedade industrial de massas, atomizada, anomica, em meio a uma grave crise, um sentimento difuso de perda e vazio no “estar-aí”, um caminhar sempre em frente em busca de um “falta-lá”, a possibilidade do “pode ser”, num vazio escuro. Esse homem ve-se na obrigação de dotá-lo de sentido sem sequer saber o que significa “der Sinn der Geschichte” – essa busca de sentido na História, esse mal que atinge milhares de indivíduos, causando forte angustia[6]. Mesmo assim, os atinge. Mas, de forma diferenciada, não exatamente como massa uniforme, o que já foi dito, mas conforme a ontologia de cada um, ou conforme o próprio Freud afirma são os fatores predisponentes – aqueles de tipo constitutivos e por isso uma ontogênese -, que torna o sofrimento de cada um, uma experiência vivencial única – uma necessidade singular de dotar a vida de sentido quando não se vê sentido algum em estar-no-mundo. Franz Neumann, o historiador, diria, que a forma como cada um é atingido e responde pelo mal-estar é a forma como se faz a História[7].
No entanto, esse mesmo fenômeno, o sofrimento solitário único numa sociedade desprovida de sentido e cada vez mais massiva é, por paradoxo, cada vez mais coletivo, e, portanto, histórico. Daí proliferam razões fundadas em irrazões na qual os sujeitos, por regressão, abandonam o doloroso processo de dotar o Ego de um projeto de sentido, a transcendência, pela simples e menos dolorosa adoção do projeto de sentido do Outro, de um ente/individuo ou instituição poderoso e salvacionista: as religiões messiânicas, o homem-mito, o consumismo, a intoxicação química ou não. Muitos, no entanto, com um Superego muito mais severo, não se deixarão enganar tão facilmente. Estes sofrerão[8].
Procuramos nestes primeiros apontamentos, a partir de um caso, estabelecer as possibilidades, e os limites, do diálogo entre o método das ciências sociais, em especial do paradigma indiciário conforme proposto por Carlo Ginzburg, e a Psicanálise, conforme classicamente foi formulada no método por Freud e seus seguidores, em torno da aparecência do mal-estar no tempo presente [9].
Entre a situação calamitosa do sistema penitenciário – no Brasil há uma terrível penalização na condição prisional, para além da “pena de privação da liberdade” envolvendo hoje mais de 711 mil indivíduos, inscrita nas condições sub-humanas dos presídios, resultando em chacinas frequentes, muito próximas de uma condição de “crime de Estado”[10]. Tal situação, uma premissa externa a estes apontamentos, é de conhecimento geral, sendo objeto constante de reportagens e tema de filmes e mesmo de novelas de televisão, e com certeza informou desde sempre o ator principal do nosso caso em pauta[11].
É contra este quadro de fundo que queremos refletir, em termos precários, sobre a vulnerabilidade da cidadania e da dignidade do outro, a propósito de um caso especifico: o chamado “Estuprador do Ônibus”, corrido no final de agosto de 2017 em São Paulo. A própria denominação do caso – o “Estuprador do Ônibus” – gerou, desde o final de agosto de 2017, uma intensa, e por vez bastante virulenta, polêmica pública em especial nas chamadas “Redes Sociais”[12]. Desde o primeiro momento a expressão “ejacular” ou “masturbar-se” utilizadas pela mídia, e reproduzida nas Redes Sociais, foi fortemente criticada por movimentos feministas, com a participação de Juristas esgrimindo a Lei como elemento definidor do “ato” que fora de fato praticado, para caracterizar o cometido em pleno transporte público na Avenida Paulista – note-se a mais movimentada da maior cidade da América do Sul – e, enfim, tipifica-lo como “estupro”. Mesmo não havendo o clássico intercurso sexual, acompanhado de um gesto de força levando a submissão de sua vítima, os diversos movimentos feministas, bem como expoentes dos Direitos Humanos, exigiram do delegado que efetuou o registro da queixa, a imposição do instituto de “estupro”. A resistência “técnica” do titular da 78ª. DP (bairro dos Jardins), apoiada na letra da Lei – posto não ter havido “coação” da vítima -, causou espanto e fúria entre militantes em defesa da dignidade e da integridade psíquica e mental da vítima. No seu conjunto, a opinião pública, ficou inteirada de meandros da “letra” da Lei e passou a opinar fortemente sobre o tema e da polemica sobre a natureza do crime de estupro.
Para além da necessária historicização do ato, da prisão e do registro policial do perpetrador da ofensa – doravante Diego F.N., paulista, solteiro, “ajudante de serviços gerais”, de 27 anos-, a tematização da resistência policial em fazer o registro da ofensa (ao final feito o registro como injuria sexual, pela inexistência do delito estupro, mas, note bene, somente neste momento) é parte fundamental da discussão que se segue.
Sabemos, de bastante tempo, da negativa conservadora e sistemática da Polícia brasileira, acompanhada pela ação da Justiça, em registrar os casos de racismo e/ou injuria racial como tais, quase sempre descaracterizando o fato para simples “injúria” ou outras formas de ofensa – como foi de fato na condição de “Ultraje Público ao Pudor”[13]. Da mesma forma, mesmo na existência da Lei 13.104, do Feminicídio e da Lei Maria da Penha, há ainda, entre várias instancias policiais a resistência clara – de cunho machista e falocrata – em realizar o devido registro de crimes contra mulheres, invertendo, por vezes, a situação de vítima da mulher. Assim, a pronta ação da militância feminista foi, e continua sendo, fundamental para que a legislação existente, produto de amplas lutas sociais, seja empregada[14].
Neste caso, devemos sublinhar a diversidade e a dificuldade nos dois primeiros dias do evento – 29 e 30 de agosto de 2017 – da mídia nomear o evento ocorrido no interior do ônibus: desde um anódino “assédio”, passando pela descrição do ato – masturbação, ejaculação: termos que a grande mídia reservou, de início, para o interior do texto noticioso, negando-se a titular a matéria com a clareza do evento – até estupro, este, infelizmente, comum no noticiário e, portanto, passível de titulação fácil. Somente após um amplo debate de cunho jurídico a nomeação “estupro” irá se impor no caso de Diego, continuando os demais eventos a serem descritos como “masturbação” e na sequência da multiplicação dos atos, posto que ação de Diego no dia 29 de agosto de 2017, abre uma verdadeira “epidemia” de masturbadores públicos, torna-se comum a titulação “ejaculação”.
Assim Diego passa de “masturbador do ônibus”, de forma concreta ao descrever que tipo de “assédio” havia ocorrido, a “estuprador do ônibus”. Este processo de renomeação do ato e do seu perpetrador é de extrema relevância para a análise em questão, em particular por ser um ato repetitivo contra, na maioria das vezes, mulheres trabalhadoras obrigadas a utilizar ônibus, trens e metrô em horários do chamado “rush”[15]. Desde então vão se multiplicar as denúncias de casos similares, culminando na ocorrência de “ejaculação” de um indivíduo sobre uma passageira de avião numa linha doméstica.[16]
A disputa pela “nomeação” do evento – assédio, “importunação ofensiva ao pudor”, ultraje ao pudor, ejaculação, masturbação, estupro – é, assim, simultaneamente parte fundamental do próprio evento e das lutas e resistência das mulheres contra o machismo e a falocracia estruturais da nossa sociedade e entendido, por esta via, a estrutura constitutiva central da própria predisposição personológica de Diego F.N., tornando-se assim base constitutiva do próprio evento[17]. Freud, num texto famoso sobre a questão, afirma que a masturbação não sendo nada definitivo – em ambas as fases do desenvolvimento da personalidade de um indivíduo descritas no texto – afirma mais não ser que [a masturbação] um “nome”, não um agente real, que recobre um amplo leque de atividades sexuais caracterizadas, num traço unificante, por sua limitação[18].
Todo o caso de Diego é marcado por um viés de repetição, uma limitação. Após sua prisão e identificação policial na 78ª. DP se sabe, inicialmente, que o perpetrador já tinha outras cinco passagens pela polícia sob a mesma acusação. Os eventos anteriores compunham, com mais esta prisão, um quadro comum, envolvendo as mulheres vítimas, o transporte coletivo e as condições de transporte vigentes no país: longas viagens, sono, proximidade física forçada. Nos casos em que Diego foi pego, e houve queixa policial – e sabemos que em alguns casos isso não aconteceu multiplicando os eventos repetitivos – foram considerados “leves”, enquadrados como “importunação ofensiva” ou “ultraje ao pudor”, uma contravenção penal. Ou seja, não houve crime, mesmo havendo a repetição do evento. O estupro – Artigo 213 do Código Penal – implicaria em constrangimento violento e impossibilidade de reação por parte da vítima. No caso – como em outros em transportes coletivos em várias cidades do país – a vítima estava dormindo, desapercebida, não havendo necessidade da violência constrangedora, componente bastante do instituto “legal” do estupro[19].
Importunação versus constrangimento e violência/submissão por um lado e dignidade da mulher, choque e sentimento de humilhação, por outro, entram em disputa de narrativas sobre o nome e de condições para a imputação de Diego. No entanto, a disputa narrativista se detém perante o nome e não rompe a carapaça do punitivismo, não indo além do sintoma para buscar as estruturas constitutivas de um fenômeno personológico que corre o risco de caracterizar uma epidemia social desapercebida.
O Delegado de Polícia, bem como do Juiz de Custódia, este último claramente vagando entre o despreparo para tal caso ou, no mínimo, displicente perante o histórico do agressor e de forma transparente cego às condições de assédio e de agressão das mulheres no Brasil, não dão qualquer importância ao elemento comum no conjunto dos eventos narrados – e que podem ser extrapolados de uma condição singular para o nível de um fenômeno social -, voluntariamente confessado, por Diego: a repetição[20].
Não se trata aqui de discutir as tecnicidades do Direito e de suas operações pelos agentes do sistema de Justiça – aliás, de grande rigor hoje no país, conforme as cortes de primeira instância e o próprio STF, quando se fala da defesa de patrimônio, seja público ou privado, ao contrário das ações em defesa da vida e dignidade humana – tais como Racismo, Feminicídio, Homofobia, tortura, trabalho escravo por exemplo -, marcadas pela flexibilidade e a dificuldade de enquadramento por parte da Justiça. E, muitas vezes, por total descaso por parte da ação executiva, ou seja, a execução da pena. Também não se trata de defender a penalização e a maior intensidade do “punitivismo” que avança entre nós – em especial entre as classes médias bastante amedrontadas pela insegurança pública e acossada pela crise econômica[21] – ao lado de ideologias extremistas, que defendem o aprisionamento de todo e qualquer comportamento dito delituoso, abarrotando prisões já abarrotadas, transformadas em depósitos “sub-humanos” – sem maiores protestos de grande parte da sociedade[22].
Por isso, falamos, desde as primeiras linhas, em espaços, ações e atos de mediações e amparo. Somente o Juiz que deveria julgar a “ofensa” – nomeada então “ultraje público ao pudor”, cometida por Diego, via o TJ-SP e o MP-SP, perceberam o caráter social do ato repetitivo do perpetrador. Assim, o TJ-SP liberta Diego com o seguinte assento nos autos: …segundo o juiz, ele necessita de “tratamento psiquiátrico e psicológico para evitar a reiteração de condutas, que violam gravemente a dignidade sexual das mulheres, mas, que, penalmente, configuram apenas contravenção penal”[23].
Entretanto, nenhuma providencia ou iniciativa na área de saúde (e saúde mental)
seria tomada e Diego, inevitavelmente, repetiria o evento mais uma vez.
É neste sentido que podemos, mesmo de longe, perceber que o agressor estava em sofrimento psíquico grave, estava pedindo ajuda – a repetição ritualizada do ato de ejaculação pública sobre mulheres (o “Wiederholung”), é/era um pedido inconsciente de punição – uma repetição obsessiva, pública e sequencial de um ato que valeria, de uma forma qualquer, quando praticado em público, uma punição[24]. A repetição emerge “…naturalmente sem saber que o [o lacunar, o que não satisfaz] está repetindo”[25]. Aí residiria um núcleo de culpa já identificado por Freud na masturbação e merecedor de um largo debate entre 1910 e 1912, registrado ora, como a ausência de satisfação decorrente do ato [o lacunar, o “Falta-lá”, o impossível de satisfazer], daí impondo sua repetição compulsiva na busca do preenchimento impossível do “falta-lá”, ora por fatores sociais cuja a etiologia está ligada a economia do Superego, inclusive a própria agressão punitiva contra o Ego e claro, contra o ego de suas vítimas[26].
De qualquer forma Freud destaca a existência de um “pequeno fragmento de excitação não descarregada” que impulsiona a repetição enquanto forma aceitável de conciliação, de qualquer forma precária[27].
Há, destaquemos, no ato praticado de forma repetitiva por Diego, um componente diferenciador, a masturbação, a qual vincula-se o fenômeno do exibicionismo, com a exposição do pênis em local público, em meio a dezenas de pessoas e sem maior cuidado de ocultação. Mesmo sabendo, ainda com Freud, que os sintomas de diversas neuroses possam se mesclar e sobrepor num mesmo indivíduo, ocorrendo até mesmo em personalidades ditas com vida “sadia”[28], devemos sublinhar qual o traço marcante, definidor, do ato singular perpetrado por Diego e, simultaneamente, quais as motivações e a etiologia de seu imbricamento com uma outra ação, neste caso, o exibicionismo. A masturbação, enquanto a realização de uma/várias fantasia(s) centrada num eixo comum marcado pela condição lacunar, assume em Diego o papel central estruturante da personalidade, explicitando uma regressão a um estágio infantil pré-edipiano. No entanto, a masturbação conserva sua característica de atividade transitorial – uma transitoriedade que expressa uma conciliação própria do ato masturbatório entendido nas regras vigentes e, portanto, “…uma atividade sexual sujeita a certas condições limitantes”[29]. Tais limitações operam uma conciliação precária, e dolorosa em razão do caráter negativo e “infantil” atribuído a masturbação, entre o Princípio do Prazer, permitindo através da fantasia auto-erótica, regressiva de tipo sádico-anal, o escoamento de uma energia recalcada – causa de sofrimento – e o Princípio de Realidade, castrador da possibilidade da realização plena do gozo[30]. Mesmo enquanto conciliação trata-se ainda de uma supressão insuficiente da pulsão, precária e instável, logo geradora de ansiedade[31]. Em Diego tais limitações regidas pelo que Freud denominou de “regras vigentes” constitutivas de uma Superego severo e punitivo entraram em colapso.[32]
A questão seguinte que se coloca é a clássica escolha da neurose: quais as condições para a irrupção de uma síndrome de espectro neurótico em Diego? Neste sentido, duas séries de fatores devem estar presentes e imbricados. De um lado, as chamadas causas predisponentes ou constitucionais, inatas ao indivíduo e que pertencem a sua existência, o “Eigenwelt” – e inato aqui abriga desde condições fisiológicas até suas experiências na infância – e, de outro lado, as causas precipitantes ou acidentais, derivadas do ambiente que o envolvem, o “Umwelt”, do indivíduo ou nas palavras originais “…os determinantes patogênicos que estão envolvidos nas neuroses […] aqueles que uma pessoa traz consigo, para sua vida, e aquele que a vida lhe traz”[33], e que resultam na capacidade de desenvolver uma teia de relacionamentos com o Outro, o “Mitwelt” – neste caso um Outro que pode ser assustador, amedrontador, o inferno, quando somos obrigados a estar perante a uma relação comunicativa e não possuímos os códigos – Jaspers diria “as cifras” de tal comunicação, transformando o Outro num muro invencível[34]. Ou ainda forçados a um compartilhamento indesejado vemos no Outro o nada, um vazio sem reflexo, talvez disponível para acalmia de um sintoma muito além dos limites Lei.
Para Freud os fatores constitutivos dominantes no processo de organização patogênica, mesmo reconhecendo a imbricação de ambos os fatores, de forma dinâmica e intercambiante, não pode ser descartada, podendo se constituir num “registro bilíngue” revelando uma natureza composta da neurose[35]. Para a psicanálise existencial, por sua vez, é no “Mitwelt”, o entendimento do conjunto das relações humanas onde estão realmente sendo vividas e que cabe tão somente a ele mesmo a decisão de dar sentido a própria existência – Dasein, enquanto método de superação.
Ora, o exibicionismo – a mostra pública do pênis em público – aparece, além da razoabilidade instrumental para a realização do ato de ejaculação sobre o objeto de investimento – um complemento personológico direto do sentimento de “Falta-lá”, de incompletude, de impossibilidade de cessação da ausência presente no ato, que assola o exibicionista, obrigando-o a uma reiteração afirmativa pública e constante da integridade do próprio pênis enquanto integridade do Eu, afastando o fantasma da castração decorrente da insatisfação da pulsão primária, incapaz de escoar toda a energia pulsional, reafirmando a precariedade da conciliação regida pelo Superego [36].
Devemos, ainda, afastar a possibilidade – aventada pela leitura leiga imediatista das testemunhas e de parte da mídia que classificam Diego como “tarado”, “maníaco” e “doente”, no sentido que daríamos a “perverse” – de um caso dominante de perversão. Na verdade, Diego não nega a natureza do ato (masturbação seguida de ejaculação sobre a vítima), não apresentando uma narrativa de denegação típica de uma condição resposta perversa, mesmo que de feitio protetivo[37]. Ao contrário, parece disposto, ou mais, disponível, para a confissão do(s) ato(s). Na verdade, dá-se a confissão dos diversos atos, da repetição encarada como culpa, um jorro narrativo estruturado em forma de uma história razoável e plausível, e autocomplacente, no qual os pais acreditam e, no primeiro momento, as autoridades policiais também dão crédito. O discurso do neurótico é parte do sintoma sob a forma de um delírio que por sua vez é deslocamento libidinal realizado em possibilidade de gozo substituo.
Neste emaranhado de falas o aspecto de exibicionismo que compõe parte visível e a mais comumente punível do ato permanece desapercebido tanto pela confissão espontânea do perpetrador quanto do registro da autoridade judicial, sublimada em fala. Ou seja, a ejaculação pela sua nobreza falocrata oculta o exibicionismo e atrai sobre si todas as atenções, que solicitam do perpetrador a repetição oral detalhada do ato, realizando na economia pulsional de Diego um “mais-prazer” do falar, ele mesmo exibicionismo gratificante. O detalhamento para a “Lei” e seu escrutínio, seguidamente, não é estranho, por sua vez, ao gozo passivo dos agentes do Estado em sua vontade de saber-mais, em detalhar, medir e registrar o gozo de Diego. Mesmo na confissão há um traço agressivo, violentador, repetitivo que atrai para si a admiração dos “agentes” da Lei no registro crescentes dos atos ejaculadores de Diego, expressando, ainda que preso, uma vontade de poder[38].
Toda essa narrativa do gozo do maníaco, do “tarado que ejacula em público sobre mulheres”, rompida a carapaça moral inicial da mídia, será transformado em mercadoria consumida vorazmente nas redes sociais, que a reproduziriam – incluindo retratos de Diego. Os “posts” multiplicam-se aos milhares, inclusive em linguagem chula, que a grande mídia se poupou, com as mais diversas sugestões do que se deveria fazer com Diego, todas propostas centradas na díade ejaculação-sobre-alguém = a castigo, o clímax de um vídeo pornô, permitindo a liberação de parcelas pulsionais coletivas perversas atribuídas ao próprio Diego e claramente invejosas da ejaculação do auxiliar de serviços gerais[39].
Então, a presença do medo da castração e a compulsão de “provar” a integridade e potência do pênis são menosprezados, acalmados, enquanto registro personológico, sublimados em fala, ante a ação disruptiva da regra maior, a ejaculação pública sobre a vítima, revivida novamente enquanto discurso, alivio momentâneo para Diego, mercadoria sob a forma de gozo alheio para outros[40].
Mas, devemos sublinhar, de forma simétrica, para Diego também não há nenhuma gratificação especial em demonstrar sua potência e capacidade ejaculatória à vítima – explicitando a ausência do clássico “mostro o meu e você mostra o seu!” componente da expectativa fantasista do exibicionista – posto que parte das vítimas, aleatoriamente, podem estar dormindo nos ônibus ou metrô ou, de forma variada, desapercebidas da ação. Não se estabelece uma relação clássica de poder/submissão contida na pulsão sádica onde o “outro” deve estar consciente de sua submissão, como nos descreve Deleuze. No caso, o traço exibicionista faz o seu registro de forma complementar à neurose obsessiva, quando esta procura descarregar em um jorro o sofrimento e, com este, a culpa centrada na prática masturbatória. A falta e a incompletude permanecem nessa “falta-lá” fonte imperiosa da repetição.
No registro composto, bilingual, emerge no perpetrador, durante todo o processo de aplicação da Lei quando da sua prisão, uma postura passiva perante todos aqueles que representam autoridade: os homens que o detém no ônibus, os policiais, o delegado e o juiz, e que nos remete, mais uma vez, ao “bilinguismo” da escolha da neurose, com tal aspecto centrado numa fase anterior ao investimento genital, fixado num momento sádico-anal, predominante embora possivelmente não único, mas presente, composto. Ao exibicionismo, seu não-elaborado sentimento de incompletude, soma-se a fixação da culpa masturbatória num registro de dupla linguagem reforçada num momento para além da fase sádico-anal, mas dominada por esta. O único traço restante do componente exibicionista é a confissão, que de resto se realiza enquanto possibilidade passiva da repetição e, simultaneamente, condensa em si, o resquício sádico pré-edipiano, reduzindo as vítimas ao nada.
Em face do sofrimento o perpetrador deseja a punição e almeja para isso a confissão, prazer bilingual, que é feita, no caso de Diego, sem nenhuma pressão, incluindo os detalhes e cronologia dos atos anteriores, gozo das autoridades. Diego – que conhece práticas médicas derivadas do seu internamento por acidente de trânsito – almeja mais do que tudo a confissão – um ato de poder – que permitirá, enfim, no seu imaginário, a cessação da culpa. Ou – aí reside um nível que não podemos chegar com o material disponível e que apenas apontamos como possibilidade – a realização da punição na condição de preso por “estupro”. Na direção da maioria dos neuróticos, Diego desloca durante a confissão para o sintoma – plenamente identificado nos atos agressivos contra suas vítimas – a origem do seu sofrimento, desviando, numa prática discursiva funcional e racional, do núcleo original da neurose e, assim, protegendo o “segredo” neurótico[41]. Para a Lei – expressa nos seus aparelhos formais do Sistema Público de Justiça, as Polícias, os Tribunais e Presídios – a confissão de Diego, centrada narrativa fluente e razoável dos seus sintomas, é o bastante e a verdade, encerrando o caso, mantendo-se na absurda superfície do delírio neurótico tomado enquanto ersatz, o substituto apaziguador, da verdade de validade jurídica[42].
Para o perpetrador, de qualquer forma, mesmo sabendo que seu ato é passível de punição e de alto risco – na ocasião da prisão de Diego na Avenida Paulista levantaram-se vozes populares pedindo o linchamento do perpetrador da ofensa – a repetição é incontornável, impossível de controlar, invade seu cotidiano e já define sua rotina, chegando a impedi-lo de uma vida produtiva. Por isso insistimos em diferir tal masturbação pública de outras formas de exibicionismo falocrata (presente em nossa sociedade e que são ubíquos socialmente e mesmo incentivadas), e dotá-la de um conteúdo mais profundo: algo para além do prazer [43] .
Dá-se sob a forma de uma necessidade imperiosa, uma compulsão, capaz de reduzir a ansiedade/estado de sofrimento que se descarrega provisoriamente na ejaculação pública sobre Outro e, contudo, não consegue preencher aquilo que “Falta-lá”, e que reside na origem do próprio sofrimento, obrigando-o a uma repetição constante, e traz em si, necessariamente, a possibilidade da punição como realização, bem além do gozo masturbatório imediato. Ou seja, na sua repetição incansável, perigosa, e que já dirige a vida útil de Diego, a masturbação pública não busca a realização do gozo e sim da punição, anunciada por um Superego que se identifica com a Lei.
Diego repete a ação três dias após a sua libertação: há agora no ato de se masturbar publicamente até a ejaculação um novo conteúdo[44].
O ato de Diego sintetiza uma busca continua por uma punição para além do gozo. Sabendo-se o risco de linchamento e, em outra hipótese, o destino de estupradores nas prisões brasileiras, o ato repetitivo de Diego traduz-se ao fim como pulsão de morte. Em Diego o ser-em-si abandona qualquer possibilidade de futuro, desiste de um projeto – Entwurf – posto que o presente não é transito possível para o futuro tornando-se apenas a repetição lacunar do passado, nega a realização de ser-para-si antevendo-se somente enquanto um ser-para-morte [45].
A masturbação masculina, embora universal, merece no processo educativo um imenso investimento repressivo e uma grande gama de punições, imaginárias ou não, impostas de fora e interiorizadas ao longo das fases de socialização do indivíduo, sob a forma de culpa, compondo parte central do processo de “educação” dos meninos (e claro, também no caso das meninas), desde tenra infância[46]. Freud protestou perante a tentativa médica de etiquetar sob o rótulo de masturbação somente o universo de experiências e ensaios praticados durante o período da puberdade, preferindo ampliar e projetar formas diferenciadas de masturbação para um universo muito mais amplo de sensações e experiências gratificantes da criança desde seus primeiros meses de vida, o que nos dá a chave de compreensão da fixação de Diego.[47]
Na sua recepção social concordamos que a masturbação é algo que, malgrado a universalidade, e, mesmo, a continuidade na vida adulta, sempre negada em etapas avançadas da maturidade masculina (e a partir da puberdade, via uma interiorização onde ora a abstinência mostra-se prova de masculinidade, ora as relações sexuais duais são entendidas como as únicas verdadeiramente “valorosas”) “…continua sendo algo profundamente privado”, muito especialmente para mulheres[48]. Tornou-se comum na fala cotidiana brasileira, por exemplo, denominar trabalhos e ações insatisfatórios, de baixa gratificação e/ou de escasso retorno de investimento ao Ego, e sempre repetitivas, ou mesmo queixas contínuas sobre um mesmo assunto, sob a rubrica generalizante de “punheta” – masturbação. Assim, no universo comum e popular a masturbação, embora universal, é plenamente desvalorizada, sendo claramente considerada um prazer “menor”, expediente desprezível e, identificado como uma pratica “infantil”[49].
Mesmo tendo sido valorizada politicamente pelo feminismo nos anos de 1960 em diante enquanto forma emancipatória, no universo masculino, onde paradoxalmente é uma prática muito mais ubíqua – seja na forma solitária, seja na forma “à dois” hetero- ou homossexual – a masturbação é motivo de chacota, de piadas e fonte de embraço quase sempre ligadas a um tempo “de moleque”, portanto descartada como pouco honrosa por um homem adulto[50].
Ser portador de pênis na nossa sociedade é um bônus, mas há um processo claro de domesticação punitiva do mesmo, de controle da agressividade masculina, em prol de uma convivência considerada minimamente civilizada, o que acarreta formas variadas punições – educacionais, médicas, sociais, simbólicas – caso o jovem macho não seja capaz de administrador o uso masturbatório do seu próprio pênis. Incluindo aí as formas simbólicas altamente agressivas. Na pesquisa acima citada – realizada na cidade de Brasília em 2017 – cerca de 39% dos entrevistados – na maioria homens, heterossexuais com menos de 30 anos – admitiram, anonimamente, ter se masturbado ao menos uma vez no último ano em um lugar público. Contudo, na explicitação desse “lugar público” surgiam banheiros públicos, vestiários, piscinas públicas e salas de aula (em plena aula!)[51]. Mas, todos os entrevistados afirmavam cuidados para não serem pegos e punidos[52]. Uma outra pesquisa, ainda nos Estados Unidos, envolvendo um universo de 15 mil pessoas de ambos os sexos, entre 18 e 60 anos de idade, nos mostra que homens com relações estáveis, e felizes, ainda assim se masturbam, pelo menos uma vez a cada duas semanas. Ou seja, a masturbação cumpre uma diversidade muito maior de papéis na vida sexual “comum” do indivíduo, não apenas de “sexo substituto” – embora na pesquisa homens que se digam infelizes em relacionamentos se masturbem mais – como ainda desempenha o papel de atividade sexual paralela e complementar na vida daqueles que se declaram felizes na vida sexual com um parceiro fixo, inclusive casados, voltada para um universo de fantasias e de onipotência, necessária para uma descompressão do cotidiano[53].
O Caso do Masturbador do Ônibus é original – mas, só na aparência, posto que nos meses seguintes teríamos uma verdadeira “epidemia” de casos semelhantes de masturbadores públicos nos grandes centros urbanos do Brasil – exatamente pelo fato do perpetrador não ter nenhum cuidado em ser pego e preso (o que não é o traço marcante dos demais casos, onde há uma clara negação da autoria da ofensa sexual com a busca de descaracterizar do ato)[54]. Não se tratava, no caso, de uma ausência psicótica de culpa ou uma denegação, explicitante de síndrome perversa. Ele reconheceu o caráter negativo, ofensivo e afrontoso do ato, expondo em detalhes sua narrativa alucinante. Só não desenvolveu quaisquer mecanismos de autoproteção, bem ao contrário, e colocou-se de forma positiva imediata perante à autoridade do Estado e experimentou prazer na fala repetitiva dos atos e em ter alguém, representativo de autoridade, para ouvi-lo, gozando a sua própria narrativa “como uma forma de dar a si mesmo um valor” [55].
Diego F.N., o “estuprador do ônibus”, confessa que entre os 15 e os 16 anos de idade, passou por um estranho processo em que “desaprendeu” a administração do seu pênis e do seu uso masturbatório, aventando um distúrbio derivado do acidente de transito que sofreu, incluindo um coma daí derivado[56]. Mais uma vez cabe um importante alerta interpretativo sobre a realidade do discurso do neurótico e do histérico, fato já advertido por Freud e Breuer, em especial no referente ao discurso fantasista das crianças sobre abusos e assédio como fonte do sofrimento.
Diego, em sua história, oferecia à Lei os seus sintomas como o todo de seu psiquismo, a própria história de vida que Diego havia construído para si enquanto estratégia narrativa – com o acidente e o coma seria o “ano zero” da “doença”, do seu ato culposo. E simultaneamente uma narrativa de uma façanha, uma história de poder. A narrativa emerge plenamente costurada na realidade, funcional, e aderente aos sintomas, embora fundada em um delírio neurótico. Após investigações, pode-se estabelecer que Diego já havia cometido ao menos 17 atos de assédio sexual com registro policial – alguns podendo ser qualificados de estupro, posto haver contato indesejado e forçoso com a vítima. Tais atos estendiam-se ao longo de 8 anos, ou seja, depois do acidente e do coma narrado como “gatilho’ por Diego. Vemos, assim, uma razoabilidade excelente, capazes de convencer numa narrativa funcional, na qual o próprio individuo inseriu seus atos e explicou ao Outro, o “Mitwelt”, e para si mesmo, um ato repetitivo que ele mesmo considerava odioso, e, contudo, merecedor de manchetes e de atenção geral, lembrando a afirmação freudiana de que “(im)pulsão se satisfaz essencialmente da alucinação[57]”.
Com a limitação do material ao nosso dispor – jornais e depoimentos judiciais do réu e a dificuldade daí decorrente para lidar com o método psicanalítico e o material típico da metodologia dos “indícios” da Micro-História– temos que capitular perante o esforço de uma psicologia profunda do caso em pauta para além dos pontos já assinalados[58]. Cabem, no entanto, duas respostas simples para a questão central colocada sobre as relações entre a Psicanálise e as Ciências Sociais que talvez possamos avançar: o que do comportamento de Diego faz parte de um problema ontológico do indivíduo, o “Eigenwelt”, ou seja, estão no âmbito dos fatores predisponentes ou causais e o que, por outro lado, faz parte de fatores sociais, ou seja, são fatores incidentais, “Umwelt”, comum a outros indivíduos e portanto de cunho filogenético, estão presentes no Caso Diego?
Coloca-se então: o que Diego fez, foi feito porque podia e sabia que seria prazeroso e não seria punido por isso; ou, bem ao contrário, o fez porque sabia que era um coisa ruim e, assim mesmo, ou por isso mesmo, o fez repetidamente até que a busca por uma punição garantisse a cessação do ato considerado indigno?
A repetição compulsiva, pública, em espaços onde não poderia esperar nenhuma “fuga” da cena – na contramão das trajetórias clássicas de estupradores em série e mesmo de exibicionistas mais comuns – explicita uma dependência de uma demanda que não pode ser superada, contida, e que ao mesmo tempo se mantém insatisfeita, da qual o sujeito nada sabe e não tem acesso, recalcada num tempo do não-ser e punida por um Superego tornado legislador severo e agressivo[59]. A repetição apresenta-se, então, enquanto sintoma de uma doença “tangível”, autodiagnosticada”, que não carece de perscrutação: o retorno ao coma decorrente do acidente de transito e, assim, envolve em delírio o segredo bem guardado do trauma. A satisfação possível do sintoma garante que sua causa última se mantenha protegida, e da mesma forma, exigente da punição ao se realizar como repetição precária, lacunar. Apresenta-se como revivescência de uma fase muito antiga, primeva, na formação do indivíduo – obviamente muito aquém do coma aos 16 anos -, que por vergonha e culpa, causa sofrimento e exige punição ao lado de um brusco deslocamento capaz de explicar e, quem sabe, gerar até mesmo alguma simpatia e satisfazer uma vontade de poder condensada em fala sob a forma de confissão.
A punição viria, cedo ou tarde, via a prisão e a segregação num ambiente de confinamento – e então garantiria no delírio neurótico a cessação do viés perverso do ato gozoso, posto que o gozo masturbatório adulto em público seja perverso – ou através de um ritual de linchamento, ao qual o rapaz se expôs nos locais mais movimentados e públicos da capital paulista. Ou, ainda, no espaço do não-dito do que poderia acontecer com Diego na prisão.
Na repetição do seu gozo havia uma irrefreável pulsão de morte – um vínculo insuperável entre sexo e morte e, mesmo, com a morte singular do indivíduo, que realiza na repetição um processo regressivo – muito anterior e independente da própria narrativa do acidente de transito e do coma – que remete seu reviver a uma fase sádico-anal, tornada ponto de fixação e de partida para uma compulsão de tipo repetitivo.
O grito de ajuda, o pedido de punição imediata, visando a cessação do gozo perverso – masturbação de um homem adulto, em público, em uma situação adversa, contra a vontade do objeto de investimento libidinal e sob grave risco pessoal – não foi sequer considerado pelas instituições que deveriam reconhecer as condições de alto risco que envolviam todos os presentes na situação: as mulheres colocadas numa situação de objeto de investimento de um gozo perverso, agredidas de forma a mais vil possível para uma mulher; para os demais passageiros, incluindo crianças que podem ter na cena uma discutível iniciação precoce de tipo traumática a um debate por demais complexo e mal-dito na sociedade, aos passageiros em geral, em especial aos demais homens que poderiam correr o risco de assumir a postura de serem “chamados” à condição de “justiceiros” – numa sociedade que políticos e mídia incentivam, nos nossos dias, o linchamento de “bandidos”, em especial de “criminosos” de feição sexual – e para policiais, talvez impelidos a burlar as leis e ir além de suas funções de polícia e também converterem-se, nas suas circunstancias, em “justiceiros”.
Enfim, Diego F.N., de 27 anos, trabalhador, solteiro, pardo, com uma história traumática de acidente de trânsito, e nem por isso plausível e muito menos justificável de sua neurose, não foi em momento algum ouvido enquanto sujeito do sofrimento: e quando afirmamos que não foi ouvido não nos referimos a sua narrativa neurótica e a pretensa etiologia daí derivada – do seu acidente e de seu coma. Não foi ouvido no seu pedido público de punição/dor. No seu grito constante de alerta para o perigo que ele portava para ele e para os outros, em especial as mulheres, tomadas enquanto objetos-para-si – figurantes sem rosto – num “Mitwelt”, um “com-o-mundo” tornado em inferno a ser agredido enquanto possibilidade da repetição do ato fundante do sofrimento, na expectativa inconsciente de recriar um passado – num teatro da vida – não sabido num presente dominado e dirigido, ensaio após ensaio, em direção a um “pode-ser”, último ato, a catarse, que não foi escrito ou sequer ele mesmo conhece o argumento.
As instituições que deveriam ouvir a estridência do grito de dor – uma, duas, três… (até as 17 vezes registradas) – em que houve ejaculações sobre mulheres surpreendidas, atônitas, chocadas e, com toda certeza, traumatizadas, mantiveram-se omissas ao caso. As queixas de Diego de impossibilidade de conter a repetição do ato não mereceu atenção de nenhuma instituição da sociedade, embora ele tenha sido levado perante tais instituições variadas vezes e tenha mesmo sido internado, por outras razões, por um longo tempo em um hospital[60]. Mas ninguém o ouviu.
Diego não nasceu andando de ônibus e ejaculando em pessoas: todo o processo de sofrimento tem uma origem constitutiva e seu gatilho, a origem precipitante ou acidental, e essa origem reside numa dor que precisa ser aliviada através de um sintoma e lembremo-nos: “os sintomas são a própria vida sexual dos doentes”[61]. O gozo, e seu viés perverso, de Diego F.N. é um sintoma, expressão de exigências pulsionais neuróticas em presença de protestos moralizantes antagônicos de um Superego tirânico, lançando o indivíduo em sofrimento intenso[62]. Há algo maior, oculto, mal-dito, que causa uma profunda dor, tamanha que o rapaz prefere o tremendo risco da prisão, do espancamento e mesmo do que pode acontecer com ele numa prisão, um mal maior e ameaçador que ronda os estupradores e é do domínio do bem-sabe. Ele conhece, e, no entanto, não é dito mantendo-se inter-dito, embora seja sabido e a mídia, os policiais e a opinião pública o ameacem: ser levado a um presídio e ser, ele mesmo, estuprado.
Nas redes sociais, nos dias entre 29 de agosto e 10 de setembro de 2017, quando o Caso do Estuprador do Ônibus esteve mais em voga, a maioria dos “posts” exigiam de uma forma ou outra o estupro de Diego, forma de Justiça reparadora e espetáculo de inversão – o estupro masculino – guardado no inter-dito social de uma sociedade organizada em torno dos valores do falo e que considera o estupro uma pena ex-Libris do em face do Código Penal brasileiro. Explicita-se, dessa forma, bastante bem a cultura falocrata e neurótica brasileira, onde a vingança substituiu a reparação e o extermínio do culpado dá lugar a recuperação e reabilitação do apenado[63]. Uma análise massiva de tais “posts” seria, em si só, um importante trabalho de psicologia de massas de determinada camada da sociedade brasileira num momento de crise política, de valores (com)rompidos e grave crise de valores. Uma leitura superficial nos mostra que tanto homens quanto mulheres desejavam, como diria Wilhelm Reich, o estupro de Diego e (ante)gozavam o seu destino numa das horrendas prisões do país.
Muitos, inclusive mulheres jovens e de formação superior, desejavam que a mulher, ou a mãe ou a filha do juiz que havia libertado Diego aquando de sua primeira prisão, fossem vítimas da ejaculação do rapaz para “o juiz aprender” o seu oficio e agir com maior rigor, descrevendo em detalhes que a ejaculação deveria ser “na cara”. Sintomaticamente tais “posts” não desejavam a ejaculação “na cara” do juiz, mas sim numa mulher da família do mesmo, de forma claramente misógina e reprodutiva das características falocrata, neurótica e sádica, da sociedade brasileira. Por sinal prática repetitiva e culminância – a ejaculação na face – de todo vídeo pornô consumido pela maioria dos homens (e mulheres) na Internet gratuita do país. Assim, vemos que o ato repetitivo de Diego – que poderia ser considerado “normal” em qualquer homem enquanto fantasia de poder sádico quando praticado em frente de computador vendo um vídeo pornô comum de forma solitária – explicita uma disfunção de compreensão de oportunidade e de objeto, um “desaprendendo” da vida sexual, realizando uma regressão sado-anal, embora de forma alguma uma aberração perversa, uma fantasia deslocada em relação à maioria daqueles em fúria punitivista, ou uma singularidade social.
A segunda prisão de Diego foi sua resposta ao silêncio da Justiça: desta feita ele segura a mão e toca a vagina da vítima tipificando o “constrangimento” que constitui a natureza do ato de estupro perante a Lei brasileira. Diego é preso, autuado e levado a um rápido julgamento – facilitado por sua voluntária e longa confissão, desta feita, de um total de 17 atos de assédio sexual registrados[64].
Diego será condenado a dois anos de prisão em regime fechado num julgamento realizado, de forma sumária, ainda em setembro de 2017.
Durante estes 17 atos não houve nenhuma resposta, nenhuma ação, do Estado ou de qualquer instituição que ouvisse Diego ou suas vítimas. A única resposta obtida foi a negação. Negaram qualquer ajuda, colocando o rapaz, o agressor responsável – sim, porque mesmo na dor se é responsável pelos atos que se pratica para superar, “esquecer”, ou reescrever sua própria condição de “estar-aí”, sublimar a própria dor, afinal o Outro “não-está-aí” disponível para a dor. As vidas vividas de forma intoleráveis para Eu, lado a lado, no “Mitwelt”, vidas do “estar-aí”, não são objeto para mitigar ou cessar involuntariamente, compulsoriamente, por um instante, a dor que consome o Eu encerrado no seu próprio mal-estar. Diego, frente a frente com as mulheres, tornadas objetos indistintos, afirmou que escolhia suas vítimas “ao acaso”, sem tipo, cor, idade, roupas, apenas porque estavam lá, neste “Dasein” infinito para a busca da “falta-lá’ sem rumo do perpetrador.
Em tal situação emergiu um grande risco para o conjunto de mulheres que viajam de ônibus – mulheres comuns, trabalhadoras, possíveis colegas de homens do mesmo grupo social que Diego F.N. Risco inclusive de interiorizarem um horror, rejeição, a própria condição em que estão imersas no “Umwelt”, sem que sejam para isso convidadas por uma proposta de transformação do “pode-ser”.
Tais mulheres também não mereceram quaisquer cuidados por parte das instituições, malgrado a possibilidade da emergência de síndromes contemporâneas. Muitas continuaram sua jornada de trabalho. Outras foram para as delegacias depor, submetidas a um terrível processo de exposição: como a “boa prática do saber jurídico” exige foram submetidas a longas narrativas, detalhadas, do ato; a confirmação presença do pênis, do intumescimento e, por fim, do sêmen. Para as vítimas o “depoimento” se impunha pelo relato dos detalhes mais escatológicos perante um público de gênero, classe, formação e, possivelmente cor, diferenciada que irão perscrutar na fala das mulheres – chegando ao limite de indagar da diferença entre saliva e sêmen, do cheiro e da viscosidade dos fluidos – o que é ou não, por elas e em nome delas, uma ofensa perante a Lei. São os donos do pênis, letrados, brancos, da elite social que possivelmente jamais foram constrangidos ao contato físico indesejado com o pênis do Outro, que decidiriam onde e até onde as ações de Diego F.N. – tantos outros Diegos que desde então surgiriam – são ou não uma ofensa para uma mulher, a grande maioria, eles mesmos, masturbadores, e gozadores, na sua solidão, sobre mulheres-bonecas, paralíticas e robóticas. Assim, além da primeira subjugação ao pênis do agressor, as vítimas devem ser adequar ao pênis da Lei, para que de fato se consuma o estupro.
Mesmo quando mulheres, quase sempre técnicas da Lei, nos explicam honestamente, no caso, os limites da Lei para que haja estupro, não percebem que as Leis trazem em si o poder do pênis e reforçam sua dominação patriarcal e paterna, com seus traços fundantes no sadismo primário. A Lei é o pai punitivo, exige a obediência e quer a submissão. A denúncia do vazio na ação da “autoridade’ – de serem lançadas num nada de sentido narrativo – sofrido por estas mulheres perante o masturbador que não podem entender, e que, contudo, são obrigadas a descrever e explicar o ato agressor que para elas se ergue no nada (“se estavam em pé ou sentadas”; “qual a roupa que usavam”; “trocaram olhares”; “estavam dormindo no ônibus”; etc…).
Ou seja, há sempre uma dúvida metódica a indagar da falsidade intrínseca da mulher ou da sua conivência e até mesmo de sua culpa. Não se trata de um complô ou de uma trama contra outros grupos da sociedade, seja de classe, seja de gênero e classe, como querem os críticos ao feminismo: trata-se simplesmente da revolta e exaustão, única a dar algum sentido a vivência derivada do choque. Uma pesquisa realizada pelo IPEA em 2014, em 3.809 domicílios consultados, em 212 cidades espalhadas pelo Brasil, constatou que 26% dos brasileiros consideram que mulheres com roupas “que mostram o corpo” mereceriam ser estupradas[65]. No entanto, outra pesquisa, realizada em agosto de 2016, já em plena “onda conservadora” que avança no Brasil detectou uma tendência preocupante: a percepção sobre violência sexual e atendimento a mulheres vítimas nas instituições policiais – a pesquisa entrevistou 3.625 pessoas em 217 cidades de todas as regiões do país, entre os dias 1° e 5 de agosto de 2016 – feita pelo Datafolha, registrou que 42% dos homens entrevistados consideram que o estupro ocorre em razão das roupas provocativas utilizadas pelas mulheres[66].
Para a “autoridade” a prioridade é o agressor, simplesmente porque é natural para homens poderosos que assim o seja posto que interiorizam a fala de uma sociedade onde a dominância peniana se exerce por si só, pela ordem natural das coisas na própria educação diária de meninos e meninas, mesmo no interior de suas famílias até as instancias máximas dos códigos da Lei – escritos por estes mesmos homens e suas circunstâncias e experiências predominantes. A “falha” de Diego – para eles, esses Outros, trata-se de uma falha de controle na interiorização da Lei do pênis tão somente, a questão encerra-se na condenação prisional de Diego.
As razões da regressão infantil e neurótica de Diego não cabem na Lei e o choque das mulheres não é uma questão.
Para as autoridades, a mídia e os guerrilheiros das mídias sociais seria por demais subversivo aceitar que todo o caso reside num doloroso processo de regressão de vasto conteúdo sádico-anal com traços de onipotência narcísica e agressão voltado contra mulheres – e de dimensões sociais, ou seja, coletivo. O conteúdo sádico-anal da regressão de Diego, ao qual não pudemos chegar pelo método da palavra, mantendo-nos no terreno das hipóteses de trabalho com o material disponível, expressa-se claramente através de fantasias de onipotência tão típicas da masturbação já detectadas por Melanie Klein, na confissão reiterada e detalhada (como uma forma de conversa “entre homens”), e da agressão contra as mulheres como grupo (para além de qualquer escolha de um tipo ou perfil, caso de um psicótico). A exigência posta na Lei de se dizer “Não quero” para se tipificar o estupro, com todas as letras, e a resistência necessária por parte da vítima, a ser provada com escoriações e sangue, caso contrário não haveria o crime, pode claramente redundar na própria morte da vítima, como resultado da imposição de um freio à agressividade neurótica do macho, produto da Lei identificada com o falo instaurador da Cultura.
O Caso do Masturbador do Ônibus, portanto, não se resumo ou se encerra, portanto, em prendê-lo, aprisiona-lo em comum com outros casos que apenas imaginamos o universo mental, e, assim acalmar as consciências revoltadas informadas pelo punitivismo sádico – não é isso que se discute, alimentando a “vibe” punitivista que o fascismo em ascensão na sociedade exige. Ainda mais agora, com a publicidade toda que o caso e seus sucessores/masturbadores conseguiram na mídia[67]. Trata-se, neste momento, de uma prisão de alto risco e a vida e integridade desse rapaz é hoje, caso não seja tarde demais, um desafio lançado à nossa sociedade – por um padrão mínimo de civilização. Desafia-se, em todo este caso, a nossa sociedade, a ser capaz de solucionar questões complexas de sofrimento na modernidade urbana e industrial, de manter-se, de manter-nos, um ponto além da barbárie e não buscar na pulsão de morte a resposta ao sofrimento de massas contemporâneo. Ignorar um grito de dor, como fez o Estado na figura do Juiz, do Ministério Público – onde funcionava um grupo de estudos e de proteção aos crimes de gênero (!!!) – mesmo que sob a forma de delírio neurótico ou gozo perverso, é de extrema crueldade. Insensibilidade imperdoável com todos os atores envolvidos na tragédia.
O não reconhecimento de uma situação limítrofe existente no “Umwelt” social criado em torno do rapaz agressor é claramente seletivo. A repetição dos atos masturbatório – dessa vez em termos de multiplicação do evento – nos mostra que os fatores filogenéticos, incidentais, são tremendamente fortes e atuantes na nossa sociedade, infantilizada, regressiva e com fortes traços de sadismo. A Lei neste sentido é tão somente a expressão do mundo cultural patriarcal que informa a mente do legislador a partir do seu lugar cultural de fala, topos venenoso e lacunar, e assim permite a continuidade da dor num mundo desigual: e este mundo é um mundo masculino, falocrata e onde a noção de ofensa é inteiramente de gênero, de cor e de classe expropriando a experiência vivencial do Outro em nome de um capital de saberes técnicos cifrados. Ou estamos perante a crença cultural que entre “esse povo” as “coisas são assim mesmo”, e o comportamento lúgubre e a promiscuidade, “natural” nos chamados “grupos subalternos”, não é a ofensa que ofende as elites bem-nascidas que não precisam viajar em ônibus ou metrôs superlotados?
Para com as vítimas da perversão, quase sempre mulheres trabalhadoras cansadas, exaustas, usando transportes públicos horrendos, caros, inseguros e lentos, onde por vezes dormir 30 ou 40 minutos é um alívio, é uma crueldade repetitiva e explicitante do descaso da elite machista com as mulheres trabalhadoras. Na outra ponta, com o perpetrador do gozo perverso, explicita-se a incapacidade da sociedade em seu todo em socorrer um individuo em pleno processo de sofrimento repetitivo agudo a ponto de colocar em risco seus semelhantes e a si mesmo. Ou seja: as regras que valem para um grupo social protegido e preservado, não valem para a maioria pobre, trabalhadora, mestiça e em especial de sua parcela “mulher”.
Por fim, no processo devemos destacar: 1. A reação tecnicista dos operadores do Direito, insensível e distante da compreensão opressiva que os indivíduos – no caso todos oriundos das classes trabalhadoras, perpetrador e suas vítimas – vivem e sofrem num contexto de crise social e depressão, onde o desamparo e a perda de expectativas é generalizada; 2. a ira mediática dos “heróis das redes sociais” beirando ao fascismo, quando pedem: “cortem o bilau dele”, ou “coloquem na prisão para ser entregue aos demais presos” ou “boa surra resolve” ( repetindo o processo “educativo-repressivo-repetitivo” dos meninos punheteiros!) – tais manifestações em nada diferem dos programas de extermínio executados pelo Terceiro Reich e regimes afins, incluindo os linchamentos nos Estados Unidos ou mesmo no Rio de Janeiro, a partir de atos reais ou imaginários, diagnósticos médicos viciados ou não. A sociedade não se vinga em seus indivíduos, ou não deveria fazê-lo, e tal ação em nada resolve a questão colocada – a pulsão de morte vivida como dor intensa e, então, sublimada em gozo perverso compulsivo; 3. particularmente é revoltante o número de “posts” que propõem, a “pedagogia justiceira”, que alguém ejacule na “cara” da filha ou esposa ( presuntiva) do juiz – neste caso a falocracia e a misoginia se reproduzem de forma sádica e o pênis se impõe como o justiceiro-mor de toda a sociedade, resolução final de conflito, confirmando a inter-relação mental antiga entre pênis e Lei – tais pessoas são, na verdade, os verdadeiros “machistas”, de ambos os sexos, adoradores de pênis justiceiro. Ora, pênis foram feitos para o gozo, eventualmente para a reprodução, não para punir ou justiçar ninguém.
O que precisamos é entender a existência de núcleos intensos de dor na sociedade contemporânea, gerando processos complexos de sofrimento numa sociedade massiva, industrial, urbana, em crise, e que tais processos levam as pessoas a comportamentos maldosos, perversos e cruéis. A maioria delas não tem acesso à organização psíquica geradora da sua própria dor, “ocultam” sua dor em sintomas que podem ser muito cruéis para com os outros ou os camuflam, deslocam, em vantagens sociais e em seus pretensos méritos e vitórias pessoais. Diego F.N. expôs publicamente o que considerava o mal, o feio e o necessário para o alívio de seu sofrimento e por isso merecia punição. Alguém disse, em algum momento de sua vida, o que era feio e punível, e ele acreditou muito nisso.
Muitos dos que sofrem não possuem recursos monetários ou intelectuais para recorrer a ajuda necessária e, no processo de sofrimento, afastaram-se do seu núcleo básico de amigos e familiares que poderiam servir de algum apoio – se não for o caso, mais que provável, do núcleo familiar ser a própria origem primária da afecção, tão claramente desviado para um comportamento masturbatório público, de caráter regressivo, infantil, merecedor de punição.
Tais pessoas precisam de ajuda, não de punição, castigo, extermínio. O caso do “estuprador do ônibus” por sua compulsão, repetição, persistência e, principalmente, sua regressão personológica/infantilismo de tipo masturbatória – e sua amplitude social multiplicada em diversos casos – explicita uma sociedade em pleno mal-estar, um caso que permite visualizar um claro nexo entre o individual e o social, entre problema e questão[68].
Devemos ainda nos ocupar com as vítimas. Era/é um claro grito de socorro que usou, de forma abjeta, o corpo de outros – mulheres inocentes, trabalhadoras, vivendo suas próprias trajetórias de dificuldades, superações e crises – como objeto de salvação de um Ego no limite da destruição. Houve aqui uma catexia, um direcionamento de energia libidinal em investimento naquelas mulheres – que são retratos, meros “efeitos Potemkian”, uma paisagem comum, sem rostos para Diego, posto que sua “escolha” é totalmente aleatória, indo desde adolescentes até uma mulher de 56 anos, de todos os tipos, cores e aparências – e que a partir do momento em que se forma a “fixação”, pelo histórico do primeiro ato masturbatório algo entre 12 e 13 anos e o primeiro ato masturbatório público em torno dos 18 anos, sendo o coma a que atribui as origens de sua fixação repetitiva aos 16 anos – não consegue mais realizar outra escolha de investimento libidinal, caracterizando uma hipercatexia de coisa objetal, posto que as mulheres para Diego deixaram, desde cedo, de serem pessoas.
No mundo fechado de sua dor não há espaço para a dor de ninguém mais e suas vítimas são apenas os vocábulos do grito.
O terrível em todo esse processo é que desde o primeiro momento – a primeira prisão, a o primeiro fragrante e a primeira entrevista com um juiz, afinal um homem formado para ouvir o Outro, numa profissão de onde se originou o “paradigma da auscultação” do que está oculto, enterrado, sob as diversas camadas do corpo – nada se tenha percebido. Ou ao menos no segundo evento… Ou no quinto ou sexto evento. Na verdade, quem ouve hoje o sofrimento das pessoas? De todas essas pessoas envolvidas numa história tão miseravelmente humana restou apenas o silêncio de outro.
[1] Francisco Carlos Teixeira Da Silva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, historiador e cientista político, formação junto ao Karl Abraham Institut, Berlim.
[2] JASPERS, Karl. Filosofia da Existência. Rio de Janeiro, Imago, 1973, p. 32 e ss.
[3] JASPERS, Karl. A Situação Espiritual do nosso Tempo. Lisboa, Moraes Editores, 1968, p. 21 e ss.
[4] GAY, Peter. O Cultivo do Ódio. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 12 e ss.
[5] SARTRE, Jean-Paul. A Náusea (1938). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1971, p. 17.
[6] Ver MARX, Karl. Manuscritos: Economia y Filosofia. Barcelona, Alianza, 1974 e FREUD, Sigmund. Mal-Estar na Civilização, Rio de Janeiro, Imago, 1978.
[7]
[8] FREUD, Sigmund. “Pulsão e seus destinos (1915)”. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. vol. XIV, p. 21 e ss.
[9] Entendemos aqui como “Paradigma Indiciário” em Carlo Ginzburg os seguintes procedimentos metodológicos: “Seu programa se fundamenta em um paradigma ‘indiciário’ cujas origens na segunda metade do século XIX são estudadas pelo próprio autor, revelando as possibilidades epistemológicas abertas pelas obras do crítico de arte Giovanni Morelli, pelo romancista Conan Doyle e pelo psiquiatra Sigmund Freud (todos os três graduados em medicina, desenvolvem em diferentes campos a semiologia médica). Daí suas incursões experimentais no estudo do mito dos homens-lobo, na análise dos códigos de figuração erótica do século XVI ou na contextualização da pintura de Piero della Francesca». BETHENCOURT e CURTO. «Notas de Apresentação». In GINZBURG, Carlo. A Micro-História e outros ensaios. Rio de Janeiro, Difel, 1991. Ou seja, trata-se clemente de uma ponte erguida pela historiografia em direção a Psicanálise e já transitada por vários estudiosos.
[10] JUSBRASIL. “CNJ divulga dados sobre a população carcerária do Brasil”. In: https://wagnerfrancesco.jusbrasil.com.br/noticias/129733348/cnj-divulga-dados-sobre-nova-populacao-carceraria-brasileira, pesquisado em 17/12/2017. O Brasil passa a ser, assim, a terceira população carcerária do planeta – embora não seja a terceira população mundial -, sendo que perto de 71% dos seus presos são negros e pardos, do sexo masculino, e jovens até 30 anos.
[11] Há um vasto elenco de filmes recentes onde a prisão, ou a passagem pela prisão e o medo do internamento são objetivo de uma estética ultra ou pós-realista, tais como “Tropa de Elite”, de José Padilha (Brasil, 2007) ou a novela “Força do Querer”, da Rede Globo, 2017, onde a questão do presidio e das suas condições é constantemente apresentada ao público.
[12] AGENCIA ESTADO. “Homem ejacula em jovem dentro de ônibus na Avenida Paulista”. In: https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2017/08/29/interna_nacional,896138/homem-ejacula-em-jovem-dentro-de-onibus-na-avenida-paulista.shtml, em 17/12/2017. Utilizamos para o trabalho neste artigo de vasto material jornalístico, da leitura das Redes Sociais e do Processo Crime 0076899.192012.08.26.0002 decido pelo SESP de São Paulo. Para o Processo contra Diego F.N. ver: Andamento do Processo 0076899.192012.08.26.0002 Ultraje Público ao Pudor, 18/09/2017, TJ-SP In: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/documentos/499713468/andamento-do-processo-n-0076899-1920128260002-termo-circunstanciado-ultraje-publico-ao-pudor-18-09-2017-do-tjsp?ref=topic_feed.
[13] Ver TJ-SP. Andamento do Processo 0076899.192012.08.26.0002 Ultraje Público ao Pudor, 18/09/2017, TJ-SP In: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/documentos/499713468/andamento-do-processo-n-0076899-1920128260002-termo-circunstanciado-ultraje-publico-ao-pudor-18-09-2017-do-tjsp?ref=topic_feed.
[14] EXTRA. “Em conversa delegado desqualifica jovem vítima de estupro coletivo, 30/05/2016” in: https://extra.globo.com/casos-de-policia/em-conversa-pelo-whatsapp-delegado-desqualifica-vitima-de-estupro-coletivo-19395615.html, pesquisado em 17/12/2017. Ver: VILAR, Leandro. “Reflexão sobre a Cultura do estupro”, In: http://seguindopassoshistoria.blogspot.com.br/2016/06/uma-reflexao-sobre-cultura-do-estupro.html, pesquisado em 17/12/2017.
[15] O GLOBO. “Mulher sofre assédio dentro de ônibus na Avenida Paulista”, 29/08/2016, In: https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/mulher-sofre-assedio-sexual-dentro-de-onibus-na-avenida-paulista.ghtml, pesquisado em 17/12/2017.
[16] O GLOBO. “Suspeito de se masturbar e ejacular em passageira de avião é detido…”, 08/12/2017. In: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/suspeito-de-se-masturbar-e-ejacular-em-passageira-de-aviao-e-detido-no-df.ghtml, pesquisado em 17/12/2017.
[17] FREUD, Sigmund. “Tipos de Desencadeamento da Neurose (1912)”. In: Freud, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, V.XII, 1969, pp. 289-290.
[18] FREUD, Sigmund. “Contribuições a um Debate Sobre a Masturbação” (1912) In: Freud, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, V.XII, 1969, p. 316 e ss. Ao reconstruir o histórico do debate sabemos que este debate se realizou no âmbito da Sociedade Psicanalítica de Viena, em 1910, sendo seus resultados retomados e publicados com observações de Freud em 1912.
[19] AGENCIA ESTADO. “Justiça solta homem que ejaculou em passageira de ônibus”. 30/08/2017, In: https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2017/08/30/interna_nacional,896531/justica-solta-homem-que-ejaculou-em-passageira-de-onibus.shtml, pesquisado em 17/12/2017.
[20] Em 2016 o Brasil registrou 49.497 casos de estupro com uma taxa de crescimento de 4.3%. De forma esquemática podemos dizer que são uma média de 135 estupros por dia, e isso levando em consideração um possível sub-reitor bastante elevado. FOLHA DE SÃO PAULO. “Brasil tem 153 estupros e 12 assassinatos de mulheres por dia…”, 25/12/2017, pesquisado no mesmo dia. In: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/10/1931609-brasil-registrou-135-estupros-e-12-assassinatos-de-mulheres-por-dia-em-2016.shtml.
[21] Para isso ver: REICH, Wilhelm. A Psicologia de Massas do Fascismo. São Paulo, Martins Fontes, 1988. A primeira edição de Reich (1897-1957) é de 1933 e, entre outros pontos relevantes para o caso em pauta, faz uma forte relação entre a ascensão do fascismo na Alemanha e as crises econômica e de segurança pública ao lado da intoxicação do noticiário, por parte da imprensa fascista, de crimes sexuais, em especial no jornal nazista Der Stürmer implicando profundamente com um inconsciente social fortemente reprimido das massas alemães, em especial das suas classes médias, sujeitas ao impacto da crise econômica mundial de 1930. A ampla recepção das notícias sobre crimes sexuais durante o período da Depressão na Alemanha, em especial aqueles pretensamente cometidos por judeus, é parte fundamental da recepção do fascismo. Assim, para Reich a revolução social anticapitalista deveria ser acompanhada por uma revolução sociosexual capaz de libertar as massas de sua repressão originária da transformação de um “mais-gozar” em “mais-valia”, ver pp. 52 e ss.
[22] NEUMANN, Franz. “Ansiedade e Política (1956)” In: Estado Democrático e Estado Autoritário. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1996, p. 269 e ss em especial o conceito de regressão de massas em favor de um líder carismáticos e a realização e pacificação da angustia através do fenômeno da “projeção”.
[23] Ver nota 7 deste texto.
[24] FREUD, Sigmund. “Recordar, Repetir e Elaborar: Novas Recomendações Sobre a Técnica da Psicanalise” In: Freud, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, V.XII, 1969, p.196.
[25] Tomamos aqui a expressão “lacunar” no sentido proposto por Jacques Lacan no seu debate sobre o Indivíduo perante os fenômenos do Inconsciente enquanto uma ruptura – a lacuna – que se inscreve numa determinada falta. Ver LACAN, Jacques. “La Sexualité dans le défilés du Signifiant” In: Les Quatre Concepts Fondamentaux de la Psychanalyse. Le Sèminaire, Livre XI, Paris, Éditions du Seuil, 1973, p. 172.
[26] FREUD, Sigmund. “Contribuições a um Debate Sobre a Masturbação” (1912) In: FREUD, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, V.XII, 1969, p. 309-310 e ss.
[27] Idem, Op. Cit., p. 313.
[28] FREUD, Sigmund. “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1901-1905)” In: FREUD, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, 1997, p. 46.
[29] FREUD, Sigmund. “Contribuição a Um Debate Sobre a Masturbação” … p. 316.
[30] GAY, Peter. FREUD: uma vida para nosso tempo. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 612 e ss.
[31] A exploração desse eixo analítico nos parece extremamente rico, buscando num pré-Édipo sádico as origens do distúrbio em pauta, conforme: DELEUZE, Gilles. A Apresentação de Sacher-Masoch. A Vênus das Peles. Rio de Janeiro, Livraria Taurus, 1983, p. 131 e ss. Contudo esse caminho só poderá ser seguido a partir de um trabalho direto com o referente.
[32] Ver: MAY, Rollo. Love and Will. Nova York, W.W. Norton & Co., 1969.
[33] Ver FREUD, Sigmund. “Tipos de Desencadeamento da Neurose (1912)”. In: FREUD, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, V.XII, 1969, p. 289 e ss. Bem como “A Disposição À Neurose Obsessiva. Uma Contribuição ao Problema da Escolha da Neurose (1913)”. In: Idem, Ibidem, 393 e 401.
[34] JASPERS, Karl. A Questão da :Culpa. A Alemanha e o Nazismo. São Paulo, Editora Todavia, 2018, p. 23 e ss.
[35] FREUD, Sigmund. “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade…” p. 41.
[36] FREUD, Sigmund. Op. Cit., p. 36 e em especial a Nota 2, de 1920.
[37] Ver para a questão da “denegação” DELEUZE, Gilles em Op. Cit., p. 133.
[38] JASPERS, Karl. Op. Cit., p. 97.
[39] Aqui, na reação do público das redes sociais, ao Caso do Masturbador do ônibus, podemos ver uma similaridade notável com a recepção do público do jornal nazista “Der Stürmer”, editado pelo notório nazista, e terrível antissemita, Julius Streicher, entre 1923 e 1945, caracterizado pela publicação de pretensos crimes sexuais cometidos por judeus contra moças alemães, com descrições detalhadas de atos perversos que atingiam claramente o Inconsciente de uma população altamente reprimida e atingida pelas necessidades de sublimação constante de prazer em trabalho extenuante. WULF, Joseph. Presse und Funk im Dritten Reich. Viena, Ullstein, 1983, e ainda a obra já citada de Wilhelm Reich, ver Nota 16.
[40] Em algum momento poderíamos registrar um traço marcante de hipocondria no comportamento de Diego F.N., com uma narrativa de internações e cuidados médicos decorrentes de um acidente de trânsito culminando num coma. Apesar de um longo tratamento clínico e ambulatorial nada foi diagnosticado como uma doença passível de uma clara etiologia pós-traumática. No entanto, e não conseguimos maiores informações sobre os sofrimentos físicos apontados, que possam caracterizar uma causa física que ampare as muitas reclamações de sofrimento físico do perpetrador ou, por outro lado, que possamos descartar de forma absoluta.
[41] NUNES, Eustachio Portella. Obsessão e Delírio: Neurose e Psicose. Rio de Janeiro, Imago, 1976, p. 15.
[42] Ver GINZBURG, Carlo. História Noturna. São Paulo, Companhia das Letras, 2012, em especial a “Introdução”, pp.9-44.
[43] Nos referimos aqui na prática social brasileira, bastante comum, de “mostrar o pau”, uma expressão que pode ser metafórica – dependendo da situação social – ou mesmo performática, com gestos que ao segurar sobre a roupa o pênis, o destacam. Assim, o machismo falocrata socialmente sancionado, e mesmo positivado, incentiva às práticas discursivas ou não de “mostrar o pau”, sinonímia de resolução machista de contendas.
[44] O GLOBO. “O homem preso após ejacular em mulher no ônibus é preso novamente ao atacar outra passageira” 02/09/2017. In: https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/homem-e-preso-suspeito-de-ato-obsceno-contra-mulher-em-onibus-3-caso-em-sp.ghtml, pesquisa em 17/12/2017.
[45] FREUD, Sigmund. Para Além do Princípio do Prazer, Psicologia de Grupo e Outros Trabalhos (1920-1922). Rio de Janeiro, Imago, V.XVIII, p. 24 e ss.
[46] FREUD, Sigmund. “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” p. 63 e ss.
[47] FREUD, Sigmund. Idem, nota 1 à página 67 onde Freud destaca o caráter centralizador da masturbação como o “poder executivo”, sintético, de toda a sexualidade infantil e, por isso mesmo, o mais apto para centralizar e expressar a culpa.
[48] Ver LAQUEUR, Thomas. Solitary Sex: A Cultural History of Masturbation. Nova York, M.I.T. Press/Zone Books, 2003.
[49] KLEIN, Melanie. “The Importance of Symbol-formation in the Development of Ego (1930). In: Contributions of Psyco-analysis, 1921-1945. Londres, Hogarth Press, 1950, p. 236-250.
[50] LEONE, Matheus. “A Masturbação em Números: como os jovens se masturbam?” In: https://medium.com/vinte-e-um/masturba%C3%A7%C3%A3o-em-n%C3%BAmeros-como-os-jovens-se-masturbam-741ff4161c73, pesquisado em 17/12/2017.
[51] Idem, Ibidem (em continuação).
[52] Diferentemente uma pesquisa realizada com 600 norte-americanos sobre a masturbação apontou que 6% dos entrevistados, homens, admitiam já ter se masturbado no local de trabalho, em ônibus, metrô e até aviões – referências que não apareceram na pesquisa brasileira. Os termos da pesquisa, de ambas, não foram controlados e portanto a comparação é falha, apenas ilustrativa. IG “Pesquisa mostra como é a rotina de masturbação das pessoas” , 14/06/2017, http://delas.ig.com.br/amoresexo/2017-06-14/masturbacao-habitos.html, pesquisado em 17/12/2017.
[53] VICE. “A Complicada relação entre sexo e masturbação”, 02/05/2017. In: https://www.vice.com/pt_br/article/d7agyq/sexo-e-masturbacao, pesquisado em 17/12/2017.
[54] EXTRA. “O Homem é preso após se masturbar no trem próxima a uma mulher…”. 04/10/2017. Segundo a SUPERVIA só em 2016 foram registros 63 casos em composições da empresa ferroviária e naquela altura de 2017 já tinham sido efetuadas seis prisões em fragrante de idêntico caso nas composições. Uma mulher, entrevistada pelo jornal, diria: “Cada dia está pior, está virando moda…” In: https://extra.globo.com/casos-de-policia/homem-preso-apos-se-masturbar-perto-de-mulher-em-trem-na-zona-norte-do-rio-rv1-1-21905720.html, pesquisado em 17/12/2017.
[55] NEUMANN, Franz. Há tipicamente uma assunção plena da autoridade do Estado e uma anulação da sua própria pessoa, do seu Eu, perante a autoridade, com claro desejo de satisfazer a vontade do poder, considerado como aquele que doa o sentido. Ver p. 277 e ss.
[56] Ver TJ-SP. Andamento do Processo 0076899.192012.08.26.0002 Ultraje Público ao Pudor, 18/09/2017, TJ-SP… conforme Nota 4.
[57] LACAN, Jacques. Op. Cit., p. 173.
[58] Para uma proposta metodológica interdisciplinar ver: BACKÈS-CLÈMENT, Catherine. “Antropologia e Psicanalise” In: COPANS, Jeans et alii. Antropologia: ciência das sociedades primitivas? São Paulo, Martins Fontes, 197, em especial p. 357 e ss.
[59] LACAN, Jacques. Op. Cit., p. 172.
[60] ESTADÃO. “Família alega que ataques a mulheres começaram após cirurgia na cabeça”, 02/09/2017, In: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,familia-alega-que-ataques-a-mulheres-comecaram-apos-cirurgia-na-cabeca,70001963533, pesquisado em 17/12/2017.
[61] FREUD, Sigmund. “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade” p. 42.
[62] Idem, ibidem, p. 42 e em especial Nota 1.
[63] Uma “brecha” neste “inter-dito”, o estupro masculino como regra prisional aceita no sistema carcerário brasileiro, inclusive para presos políticos durante o Regime Civil-Militar de 1964-1985, pode ser vislumbrada no Caso de Oriovaldo B.S., em 3 de maio de 1984, quando em fuga da polícia este jovem se refugiou num apartamento no Flamengo, Zona Sul do Rio de Janeiro, e o enfrentamento com a polícia, resultou que as quatro jovens moradoras do apartamento foram mortas. O fugitivo apresentou como razão para a resistência o fato de ser estuprado sistematicamente no presidio, no Espírito Santo, onde cumpria pena por estupro e preferir a morte a retornar ao sistema penitenciário. Quando da sua primeira prisão, dada a natureza do seu crime – exposto pelos próprios carcereiros – Orivoldo foi “currado” seguidamente por 21 detentos, sob total passividade das autoridades carcerárias. JORNAL DO BRASIL.” Multidão vai ao enterro das quatro moças”, 6/05/1984, In: http://memoria.bn.br/pdf/030015/per030015_1984_00028.pdf, pesquisado em 17/12/2017.
[64] CORREIO DO POVO. “Homem que ejaculou em passageira é condenado”, 05/09/2017 In: http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/Geral/2017/9/627801/Homem-que-ejaculou-em-passageira-e-condenado-por-crime-em-2013, pesquisado em 17/12/2017.
[65] ÉPOCA. “A Culpa é delas”. In: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2014/03/b-culpa-e-delasb-e-o-que-pensam-os-brasileiros-sobre-violencia-contra-mulher.html, pesquisado em 17/12/2017.
[66] GGN. “Um terço da população acha que a culpa é da vítima nos casos de estupro”. 21/09/2016, https://jornalggn.com.br/noticia/um-terco-da-populacao-acha-que-a-culpa-e-da-vitima-nos-casos-de-estupro, pesquisado em 17/12/2017.
[67] DIARIO ON LINE. “População agride suspeito de se masturbar perto de moça no metro”, 04/10/2017, In: http://www.diarioonline.com.br/noticias/brasil/noticia-455959-populacao-agride-suspeito-de-se-masturbar-perto-de-mulher-em-metro.-assista!.html, pesquisado em 17/12/2017.
[68] WRIGHT MILLS, Charles. A Imaginação Sociológica. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1969, p. 61 e ss.