nov 1, 2023
UNIVERISDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
LABORATÓRIO DE ESTUDOS DO TEMPO PRESENTE/TEMPO
GRUPO DE ESTUDOS SOBRE VIOLÊNCIA URBANA/
FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO
SEGURANÇA & CIDADANIA: reflexões sobre a guerra oculta brasileira.
“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”
Joaquim Nabuco
Para Alba Zaluar.
Sob impacto direto da mais cruel Pandemia já vivida pelo Mundo, e gerida de forma cruel e perversa no Brasil – e agora sabemos de forma a atender interesses de bandos rivais de predadores do Estado – somos obrigados pensar com urgência a chamada “Questão Segurança e Cidadania”, indo além das antinomias comumente postas e sua relevância na ascensão da novas Direitas, inclusive os novos fascismos.
Sob impacto direto da mais cruel Pandemia e sua gestão, no Brasil – e agora sabemos de forma a atender interesses de bandos rivais de predadores do Estado – bem como os massacres e brutais e crimes ocorridos em 2022, somos obrigados pensar com urgência a chamada “Questão Segurança e Cidadania” no país, buscando ir além das antinomias comumente colocadas [Direitos Humanos versus Segurança Pública, Bem-Estar Social versus Criminalidade, Meios e Equipamentos e versus Abandono do Setor de Segurança Pública] e, buscando escapar dos lugares comuns e armadilhas postos pelos pretensos diagnósticos da Direita , agora, acentuando pela ascensão do fascismo no Brasil, produzir uma agenda proativa, cidadã e garantista de Segurança Pública para o Brasil[1].
Muitas vezes temos sucumbido, rotineiramente, a assertiva que o tema “Segurança” é um apanágio das “Direitas” políticas ou mesmo uma forma de amedrontar e calar os partidos, associações, e entidades da sociedade civil, quase sempre de perfil progressista, preocupados com as tremendas questões diuturnas de violação dos Direitos Humanos na nossa sociedade. De fato, as temáticas em torno da “Segurança Pública” (ou cidadã, institucional) foram capturadas, ante a inércia e espanto das forças progressistas, pela Direita e hoje transformadas em tema eleitoral pela Extrema-Direita, quase sem resposta. Historicamente, tanto em 1922 na Itália e, 1933, na Alemanha, os fascismos históricos recorreram a mesma temática da violência criminal e do medo ao banditismo para amedrontar as classes médias e oferecer “segurança e ordem”, em especial na Itália onde os fascistas levaram à frente uma furiosa luta contra a máfia[2].
Neste sentido, devemos ter claro dois pontos: (i.) as camadas subalternas da sociedade brasileira, e latino-americana, sofrem, elas muito mais que quaisquer outros setores sociais, diuturnamente com a violência decorrente de assaltos, roubos, assassinatos, e variadas formas de agressão de alteridade de gênero, religião e etnia, sem qualquer forma de proteção do Estado, a violência de grupos à margem da lei; (ii) não existe de forma clara, direta e eficaz recursos disponíveis de apoio para a maioria da população para a superação dos maus-tratos e malfeitos que a população subalterna e periférica sofre no seu dia a dia. Daí, a emergência de “poderes paralelos” – e não, atenção para esse ponto, de um “Estado Paralelo” – para reprimir tais malfeitos, expulsando o Estado de Direito Democrático de amplas áreas do território nacional, negando condições básicas de serviços do Estado – em especial na Segurança, mas também na Educação, Saúde, Limpeza Pública – que passam às mãos de “milícias” com a atuação de justiceiros e seus “tribunais do crime”.
Vemos, assim, uma “Condição de Emergência” na formulação e execução de um novo encontro entre o Estado de Direito Democrático e as populações subalternas e periféricas brasileiras em torno de garantias substantivas de Direitos Básicos de Segurança à Vida, à Inviolabilidade do Lar e do Direito de Ir e Vir que se estende, inclusive, ao Direito ao livre exercício do Voto – impedido e involucrado em grande parte por organizações milicianas.
Estes são elementos básicos que na periferia da maioria das grandes cidades brasileiras hoje não são minimente garantidos em face da presença de milícias que substituem, na forma de “Poder Paralelo”, o Estado de Direito Democrático[3].
Tal situação caracteriza o Estado de Direito no Brasil hoje como uma “Democracia feia”, que não foi capaz de realizar plenamente a transição da ditadura para uma democracia funcional. Caracterizamos como uma “democracia feia” um regime constitucional de tão má qualidade que a maioria da população não se identifica com seus valores e não se engaja na sua defesa. Coube a Anthony Pereira, um pesquisador e historiador bastante conhecido do King ‘s College, na Inglaterra, em trabalho recente e muito perspicaz, a denominar a democracia da Nova República, depois de 1988, como uma “democracia feia”, “ugly democracy“. Ora, exatamente porque vivemos em uma “democracia feia”? Basta constatarmos dois pontos: em primeiro lugar, embora a Constituição de 1988 tenha colocado uma importante declaração de Direitos Civis como primeiro capítulo da Constituição, tal declaração é apenas isso, uma declaração – e o que faz com que ela seja não vivida pela maioria do povo brasileiro? O Brasil ostenta índices de homicídio superiores a maior parte das guerras travadas hoje no planeta – Congo, Ucrânia, Iêmen – , algo em torno de 44.000 mortes em 2021 e 40.800 assassinatos em 2022, 40., variando na última década em torno de mais de 55 mil mortes violentas por ano, conforme o “Monitor da Violência no Brasil” – e sublinhe-se a maioria das mortes são de pessoas pretas e pardas, confirmando a estrutura social, étnica e de gênero historicamente desigual no Brasil. Devemos destacar, ainda, que o número de policiais mortos em serviço, quase duzentos no último ano com dados disponíveis completos ( 196, em 2020 ) também avançava, A política armamentista do Governo Bolsonaro – cerca de 400 autorizações por dia ameaça duramente paz social e a segurança institucional – chegando ao ponto de ameaçar a própria ordem constitucional, como ocorreu em 8 de janeiro de 2023 – , além do trabalho das próprias polícias. Tudo isso caracteriza o que denominamos a ”Guerra civil oculta brasileira”; em segundo lugar, qual é a validade da Constituição e dos institutos muito importantes que temos nela, e pelos quais nós temos que lutar para serem implementados, se a maioria da população, em especial as vastas camadas subalternas da população, não tem acesso aos direitos fundamentais, como alimentação, moradia, transporte e trabalho? Hoje, 33 milhões pessoas passam fome no Brasil, a terceira potência agrícola do planeta.
A existência de direitos cívicos na Constituição de 1988 esgotam em si a cidadania? Essa é a questão fundamental colocada e que, para nós, caracteriza exatamente essa “democracia feia” em funcionamento hoje – e que, contudo, temos que defender ao mesmo tempo que criticar.
A questão que se coloca hoje é a expansão da democracia no Brasil ampliando o “demos” da democracia.
A maior parte dos especialistas em Direito e Cidadania repete a Declaração de Direitos, mas não atenta ao fato de que um trabalhador que fica até tres horas, em ida e volta, em um ônibus ou trem, que vive com salários miseráveis, que mora em condições indignas no país, é imune às declarações grandiloquentes que estão na Constituição. Ainda agora, na situação de pandemia e pós-pandemia – mesmo antes, bastava observar o PIB oferecido à nação pelo primeiro ano de governo Bolsonaro – e o modo miserável como foi enfrentada, as condições sociais vão ao desastre total, com a ressurgência em massa da fome. O caminho aberto por Josué de Castro, ao lado de Maria Yedda Linhares, na pesquisa das crises de fome e de abastecimento no Brasil revelam uma estrutura cíclica da fome no Brasil. Vemos, com tristeza, o retorno da fome, que abarca 19 milhões de brasileiros em 2019, e salta, hoje, em 2022, para 33 milhões pessoas.
A transição política, a então chamada “Abertura”, foi, em primeiro lugar, a transição mais longa da história; ela foi anunciada no governo Geisel entre 1974 e 1979, foi balizada em 1979 pelo decreto da Anistia, e a Constituição foi promulgada em 1988. Além de ter sido a mais longa, a transição foi balizada exatamente pelos homens da ditadura, do antigo regime, Figueiredo e Sarney, saídos da ditadura militar, responsáveis por essa transição pactuada e, sabemos agora, falhada na garantia de bem-estar e de segurança cidadã para a maioria da população.
Não houve “Transição” ou “Abertura” em importantes instituições como as polícias, que permaneceram com suas estruturas dos tempos da ditadura civil-militar intactas. E, mais ainda, com sua “cultura” no trato com a população, em especial com as camadas subalternas da população brasileira, em especial quando essa população é pobre, preta e/ou parda.
A mais importante interface do Estado Democrático de Direito e as populações subalternas se dá através de agente público e seu contato com a população, principalmente nas áreas de Segurança, Educação, Saúde. O Policial, o professor, o médico do Posto Público/UPP são a face do Estado brasileiro perante os setores subalternos da população brasileira. No caso da Segurança é sempre uma cadeia de agentes formada pelo policial militar, civil, escrivão, delegado que devem garantir a integridade do cidadão, do seu Lar e de seus bens. Se, esse agente é brutal, violento e corrupto, ameaça sua integridade física e viola sua moradia, o Estado se mostrará à população como brutal, violento e corrupto desacreditado perante a cidadania a própria noção de cidadania.
Inúmeros serviços básicos hoje – dos correios, Internet até a entrega do gás e a garantia a livre propaganda eleitoral e, consequentemente a qualidade da Democracia – estão restritos ou mesmo impedidos em vastas áreas de regiões periféricas de grandes cidades pela ausência de garantias mínimas de segurança em territórios sob controle do crime organizado e de milícias. Tais serviços são apropriados pelas milícias e se transformam em “rolos” lucrativos, capazes de sustentar redes criminosas que expulsam as empresas de territórios populosos e, em seguida, expulsam as autoridades públicas, ou exigem acordos de cooperação/autorização, por exemplo, com correios, gás, limpeza urbana. Outros setores simplesmente se ausentam, como a Saúde Pública.
No quadro geral, entidades públicas, estatais e paraestatais, há um claro processo repressivo no interior no qual se constrói o “outro conveniente”, o diferente útil, a perfeita escolha do “bandido”, etnicamente diferenciado. Escolas, academias e cursos, constituídos por policiais e afins, onde predomina uma visão racista, como prática de ensino/reprodução de práticas num espaço institucional da própria República, confirma a exclusão de vastas camadas sociais da cidadania republicana.
Tal situação não impede, contudo, encontros violentos entre policiais e narcotraficantes/milicianos, induzidos por redivisões de territórios e pagamentos de mesadas, no decurso de operações sob ordens/ou não da Justiça e, sobretudo, da promiscuidade quase obrigatória existente entre forças do Estado e o crime organizado resultando em chacinas envolvendo a população civil. Tais “encontros fatais” possuem um perfil perverso de classe, etnia e gênero, que acompanha as condições de moradia, escolaridade e trabalho gerando eventos como a chacina de Vigário Geral de 1999, o massacre de Jacarezinho, de 2021, ou da Penha, em 2022, ambos no Rio de Janeiro.
A formação fascistizada em tais escolas e cursos, por sua vez, permite, como vemos, os eventos o brutais do assassinato de Genivaldo Jesus dos Santos, em Sergipe, ainda em 2022, onde a caracterização do preto/pardo pobre é fenotipado como o não-cidadão, o bandido natural, o sem-direitos próprios para o extermínio numa versão tropical da ação nazista de tipo AT4. Pobre, preto, em condição excepcional de saúde, é tratado com métodos que nada devem às mais brutais setores dos estados fascistas. Talvez com a diferença que o Terceiro Reich tinha o pudor de criar um encobrimento e uma nomenclatura evasiva de seus crimes.
A publicação, organizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, destaca que a população negra/parda foi a maior vítima de violência policial — correspondem a 78,9% das 6.416 pessoas mortas por policiais e registradas no ano passado: “o número de mortos por agentes de segurança aumentou em 18 das 27 unidades da federação, revelando um espraiamento da violência policial em todas as regiões do país… “[4]

Um reconhecimento elementar decorre da constatação de que no Governo Bolsonaro, entre Janeiro e Março de 2021, 453 pessoas morreram em ações policiais no Estado do Rio de Janeiro, 4% a mais do que as 435 vítimas no mesmo período do ano anterior, quando ainda não estava em vigor a determinação do STF (Supremo Tribunal Federal) que restringiu as operações em favelas fluminenses – sem qualquer efetividade – e que em São Paulo o número de policiais mortos em conflitos aumentou 44% – mesmo com a redução brutal das atividades devido a quarentena da covid-19 – explicitam o extremo padrão da violência na sociedade brasileira[5]. A ampliação do número de armas de fogo na sociedade brasileira é, por outro lado, um claro risco para os policiais brasileiros, que, como vimos, também são vítimas da violência massiva e cotidiana. Ainda devemos destacar, depois dos eventos de 7 de setembro de 2021 – a ameaça de golpe de Estado – se tal distribuição e facilitação de armas por amplos setores da sociedade, quebrando um dos preceitos básicos do Estado Moderno, conforme posto por Max Weber, a saber o império do monopólio legal da violência por parte do Estado, não atenderia a outros interesses revelados, por exemplo, no 8 de janeiro[6].
Devemos destacar ainda que, apesar de serem 56,3% da população brasileira, os negros são vítimas de 78,9% das mortes cometidas por policiais no país: “… em sentido oposto, os brancos —que totalizam 42,7% da população — foram vítimas de 20,9% das mortes”[7].

Fonte: Revista Piauí, 26/08/2019.
Devemos, pois, destacar o caráter estrutural da violência no Brasil, permanente, constitutivo da própria história da Nação, cuja marca central foi a escravidão dos índios/genocídio e a escravidão das pessoas negras. É importante destacar, e entender, o sentido de “estrutural”, o estruturante, o que significa um base organizacional sem a qual a sociedade e a economia – o escravismo de tipo colonial man tido através do tripé latifúndio, mercado externo e trabalho compulsório – primeiro utilizou-se do índio, e após sua quase extinção juntos dos primeiros núcleos colonais, já em torno de 1620/1640, implicou a conquista de feitorias, enclaves e a subsequente ocupação do litoral africano – Guiné, Angola, Moçambique e postos em São Tomé e Príncipe, para manutenção de um fluxo constante de pessoas escravizadas, embora os primeiros escravizados africanos tenham chegado ao Brasil já em 1530. Calculamos hoje que cerca de 4,8/4,9 milhões de pessoas escravizadas provenientes da África chegaram nos “tumbeiros” aos portos da Colônia brasileira, de um total de 11/12 milhões de africanos capturados[8].
A importância do “negócio” que se transformou o tráfico transatlântico de pessoas foi tamanha que alguns historiadores da importância de Fernando Novais, da USP, afirmam que o “tráfico” criou a Escravidão e não o inverso[9].
Após a cessação do tráfico transatlântico de pessoas, em 1850, em razão da Lei Eusébio de Queiroz, com o aumento vertiginoso do preço dos escravizados – em grande parte em razão do avanço da cultura cafeeira no Sudeste – as Províncias do Nordeste começaram o tráfico interno, vendendo seus escravos para o “sul”.
A presença da Escravidão – o trabalho como uma imposição violenta de relações sociais entre mestre e escravizados -, de 1580 até 1888, generalizando-se entre 1620 e 1640, é um elemento estruturador da sociedade brasileira. Neste sentido, o Racismo se alimenta das relações sociais baseadas na subordinação real e legal de uma parcela da população, majoritária, que deveria trabalhar sem remuneração, garantias sociais, nem mesmo a garantia básica sobre a integridade de sua família e onde o crescimento familiar era uma expectativa de bons negócios do Senhor. A Polícia e a Justiça eram concentradas nas mãos do mesmo Senhor que literalmente “possui” o trabalhador, considerado um “res vocale” no Direito vigente[10].
A associação “negro”+escravo+trabalhador+descalço, já explicitado por Gilberto Freire, em contraste ao Senhor, branco de mãos e pés finos e calçados, antinomia registrada pelo modernismo em Portinari nos seus quadros e murais onde trabalhadores são representados com mãos e pés imensos e calejados, indicação de uma vida voltada para o trabalho, e que o poeta Cassiano Ricardo, descreve om sua poesia “rude/rústica”, como lavradores de mãos gigantescas que lavram a terra[11].
Assim, devemos insistir que a escravização de homens, mulheres e crianças e seu trabalho compulsório é base sobre a qual se molda e conforma o Brasil, sua cultura, riqueza e mentalidade. A escravidão forma o Brasil, inclusive o racismo, que dela resulta, em especial pelo trabalhador/a serem negros africanos. Não é o racismo que molda o Brasil. É a escravidão comercial e sua empresa africana – o tráfico – que moldam o racismo.

O Lavrador de Café, Cândido Portinari, 1934.
Violência herança histórica:
Tais elementos são uma herança, uma dívida, histórica que, para além de atingir os grupos fragilizados – sob risco imediato, como indígenas, populações Sem-teto, população carcerária, população periférica sem qualquer assistência – instituem a violência como regra cotidiana no conjunto da Nação atingindo cidadãos em qualquer situação nas suas relações interpessoais: no trabalho, nas escolas, no transporte, nas ruas.
Todos os brasileiros já se encontraram em situações de ameaça a sua integridade física e/ou ameaça ao seu lar ou a sua propriedade ou numa situação de agressão pessoal onde a ameaça de resolução pela força de uma pequena contenda poderia escalar para a agressão violenta. Em caso de ser uma pessoa preta/parda, a intervenção policial pode fortemente redundar em violência ou desconhecimento dos fatos, mesmo sendo ofensa/injúria de natureza racial. Somente 40% da população brasileira se sente segura para andar em nossas cidades à noite, contra uma média de 67% em países da OCDE e cerca de 8% relatam casos de assaltos, injúrias e maltratos. As polícias – civis e militares – são consideradas ou corruptas ou inadequadamente preparadas para suas funções, mesmo que em sua maioria sejam constituídas de pessoal preto ou pardo, agem contra pretos e pardos, na maioria das vezes, de forma brutal. Só um poeta consegue descrever com clareza, e uma certa dor, a natureza de tais relações sócio raciais, no Brasil:
“Quando você for convidado pra subir no adro da fundação
Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados…”
(Caetano Veloso/Gilberto Gil, Haiti)
No conjunto da população há o sentimento reducionista, simplista, de “mais é melhor”, muitas vezes apoiado e por forças políticas como bolsofascismo, como se a saturação das ruas de policiais – ou talvez Fuzileiros Navais, Paraquedistas, armados para a guerra em plena Avenida Atlântica ou na Avenida Paulista ou na Avenida dos Navegantes! – e armas liberadas para todos fosse resolver a questão da segurança. Tal visão “armamentista” da Segurança terá sua expressão máxima no Governo Bolsonaro quando foram publicados ao menos 15 decretos e 30 Atos Normativos que alteraram o “Estatuto do Desarmamento”, sem passar pelo Congresso Nacional, usurpando direitos básicos da representação popular (a maioria encontra-se sub judice no STF). Hoje há no país aproximadamente 01 (uma) arma para cada 100 (cem) brasileiros. Podemos adiantar, como fizemos acima, que essa farta distribuição de armas, longe do poder normativo das Forças Armadas – também revogado no Governo Bolsonaro -, para além de atender seus eleitores vise – numa repetição dos eventos de 7 de setembro de 2021 ou do 8 de janeiro de 2023 – num levante/sedição contra a Ordem Constitucional.
Somente muito tardiamente, na segunda metade de 2021, o Supremo Tribunal Federal/STF começou a apreciação da legislação armamentista do Governo Bolsonaro, a possível ofensa ao “Estatuto do Desarmamento” e ao Direito Constitucional à Segurança Cidadã. E agora, o Ministro da Justiça do Governo Lula da Silva anuncia uma revisão restgritiva dos atos armamentistas do governo anterior.
É nesse sentido que a chamada “Questão da Segurança Pública” é capturada como pauta “da Direita”, desmoralizando o “Debate sobre os Direitos Humanos” e permite o surgimento espúrio de versões de uso desclassificatório do debate através da intervenção de neologias duvidosas como “Direitos Humanos das Vítimas” ou mesmo o velho bordão “Bandido bom é Bandido Morto!”. Por outro lado, várias vezes, o campo progressista reduz a questão da segurança ao debate dos Direitos Humanos e a melhoria das condições sociais dos grupos subalternos, o que faz com que amplas camadas sociais, em especial as camadas médias da sociedade, claramente atingidas pela violência cotidiana considerem os partidos progressista como “protetores de bandidos”.
A ausência de respostas imediatas, de efeitos de pronta resposta, não só deixam de atender os setores subalternos vítimas da violência criminal, do fogo cruzado e da violência policial, e do sentimento de “abandono” das camadas médias, convencidas que a agenda centrada nos Direitos Humanos não corresponde aos seus interesses e se coloca ao lado “dos bandidos”.
Milícias e Negócios.
Devemos ainda destacar que as áreas ocupados pelas Milícias desenvolveram uma relação simbiótica com os “ocupantes” e a visão de “vítima-malfeitores” não são, de todo, verdadeira. Enquanto a população trabalhadora sofria/sofre as consequências da “ocupação”, em amplas áreas “ocupadas” do Rio de Janeiro desenvolveu-se uma relação simbiótica entre as Milícias e um “lumpen-capitalismo” de “pequenos empreendedores” (para além do narcotráfico). Assim, construtores, imobiliárias, lojas de material de construção, venda de gás, incorporadores, restauração/bares, hotéis/motéis, mecânicas/retíficas de automóveis, locadoras etc. todos tinham laços de financiamento e participação das milicias. Todo um universo desse “lumpen-capitalismo”, fora da capacidade de fiscalização e da legalidade do Estado de Direito, floresce sob a proteção miliciana, muitas vezes resultando, na área da construção civil, em desastres com grande número de vítimas, além da destruição de áreas de reserva ambiental[12].
A construção de uma Política Cidadã de Segurança Pública e Institucional, em conjunto com as populações-alvo, ouvidos os grupos-alvo, seja através dos entes existentes ou através da criação de entes que possam organizar e dar voz aos grupos hoje mudos perante o Estado ou capturados por milícias e pelo narcotráfico, é fundamental para a ampliação do “demos” – da parte politicamente ativa da população. É de suma urgência a tomada de consciência, e ação, de decisões fundamentais, para um governo de perfil democrático e popular. Sem um “demos” ampliado não podemos falar em Segurança Cidadã. Neste processo devemos levar em conta o seguinte:
(i) Direitos Humanos são uma pauta geral de todas as agendas de um Governo Democrático, de forma transversal e de forma mandatória, sendo inscritos em cada ação governamental, seja qual for sua natureza;
(ii) Não cabe, de forma alguma, circunscrever a agenda de Direitos Humanos a uma “Questão de Segurança” e, tão pouco a Segurança Cidadã a uma Questão de Direitos Humanos de uma secretaria/ministério específica;
(iii) Mas, é fundante a construção de uma nova agenda de Segurança e Cidadania que garanta à População que o Estado retorne e retome suas funções básicas em face ao cidadão e ao conjunto do território nacional.
A urgência da discussão da “Questão da Segurança”, que se quer cidadã, nas suas diversas dimensões, para além do conceito autoritário de “Segurança Nacional”, vigente durante o período da Guerra Fria e da Ditadura Civil-Militar, e mesmo depois, na maioria dos países da América Latina, tornou-se central, e mesmo definidora, para o relacionamento entre o conjunto da população, em especial os vastos grupos subalternos e desatendidos e os entes públicos dotadas, por lei, do monopólio legal da violência[13].
Quem precisa de “Segurança” são os indivíduos e não o Estado. Neste sentido, devemos ter claro que o Estado Democrático de Direito buscará a reforma e utilização plena de seus mecanismos institucionais de gerir e administrar os institutos de segurança via a cidadania:
I. Assim o Instituto de GLO – Garantia de Lei e da Ordem, como previsto na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 142, e pela Lei Complementar de 1999, e pelo Decreto 3897, de 2001, que concedem provisoriamente aos militares a faculdade de atuar com poder de polícia até o restabelecimento da normalidade em áreas e setores pré-estabelecidos conforme solicitado previamente pelo Ministro da Justiça e autorizado pelo Presidente da República e só em tais condições, NÃO devem mais fazer parte do arsenal banalizado pela autoridade pública em função do combate à criminalidade e ao crime organizado no país;
NOTA: destacamos aqui que, ao contrário do que se proclama, à Esquerda e à Direita do espectro político. não há possibilidade constitucional das Forças Armadas evocarem o Artigo 142 da Constituição – ou mesmo o Presidente – para realizar um “Golpe Militar Constitucional”. A Legislação complementar em vigor, que vem aperfeiçoar a redação e o sentido do mesmo instituto, acima citada, corrige e complementa o mesmo instituto da Constituição, impedindo sua evocação direta pelo Ministro da Defesa, e a fortiori qualquer comandante militar, e/ou qualquer um dos comandantes militares das Três Forças.
II. Completa revisão do GSI e da sua composição.
III. E, claramente, definir como incompatíveis os domínios de DEFESA e os domínios de SEGURANÇA, deixando de vez o envolvimento das Forças Armadas nos assuntos de segurança cidadã e abandonado a chamada “Síndrome do Haiti”, experiência que não serviu ao esperado “State Building” naquele país e redundou em amplo fracasso e vexame no caso do Afeganistão e mesmo no Haiti, e, no entanto, criou uma mítica de “controle de multidões” e de eficácia militar que não corresponde à realidade, em especial entre vários generais brasileiros. No entanto, continua pautando os cursos superiores nas Escolas Militares e academias brasileiras como um caso de sucesso. A ideia de “State Building” deve sofrer uma revisão severa enquanto função e ensinamento das FFAA, como a realidade do Haiti e o Afeganistão demonstram[14];
IV. Definir o papel urgente de uma “Força de Terceiro Tipo”, civil, permanente, provida de meios de rápido deslocamento – helicópteros, carros, meios de fedesa não-letais e letais sempre disponíveis e com aquartelamento próprio e digno para seus membros. A atual “Força Nacional” é um arranjo temporário, feito a partir de tropas das PMs estaduais e já contaminadas com a “ideologia do bandido morte”. A composição e alistamento da “Força de Terceiro Tipo” – menos poder que as FFAAs e mais meios e capacidades que as policiais estaduais, civil e militar, deveria ser feita junto aos jovens, homens e mulheres, que completem seu serviço militar – de forma idêntica ao processo hoje em curso na Alemanha – com uma bom/ótimo aproveitamento, com conhecimento de táticas de enfrentamento que possam ser utilizadas no combate ao crime organizado nacional/internacional. Tal força deve ficar sob o controle do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, que por razões técnicas de Direito e de Institucionalidade, não deve ser desmembrado;
V. E por fim, o PL 1595/19, de proposição do Deputado Victor Hugo (PL-GO) de uma nova “Lei Antiterrorista”, deve ser rejeitado, pois embora de natureza estrita, viria se juntar a panóplia legal na repressão à cidadania e não às garantias de segurança pública e exercício da livre manifestação das ideias e dos sentimentos políticos, constituindo-se em um instrumento de repressão e espionagem de cidadãos e partidos políticos não necessários neste momento, complicando o cenário de combate ao crime organizado. Na verdade o PL 1595/19 deveria ser revisto à luz da legislação da “Home Security” americana como instrumento de combate aos fluxos financeiros ilegais e aos crimes cibernéticos, o que em muito ajudaria no combate ao narcotráfico, verdadeiro arcabouço da violência no Brasil.
Abertura e inclusão de amplos setores populares na vida pública – o que chamamos de ampliação do “demos” – mesmo que ainda NÃO seja, de fato, uma “democratização” plena do Estado – implica na necessária diminuição, redução, reversão dos brutais índices de homicídios registrados no país que, ainda, variam, nos anos de 2015 -2019 entre 40 até 60 mil mortos/ano ( houve 43.892 assassinatos em 2020, o que significa 2.162 mortes a mais que em 2019.), a maioria homens, jovens, pretos ou pardos ao lado da urgente melhoria das condições sociais do país, a reversão da chamada “democracia feia”.
As flutuações anuais não devem, de forma alguma, enganar os administradores públicos sobre o grau de violência presentes na sociedade[15].
Variações não alteram as causas estruturais da violência.
Barbárie e Violência:
Devemos destacar a barbárie que atinge os grupos vulneráveis e subalternos, mesmo que majoritários em seus números, são minoritários em suas condições de empoderamento e emancipação social, daí continuarem estruturalmente subalternos, como negros, pardos ou mulheres “trans”, e todo o Grupo LGBTQI+ , como ainda, crianças e, sempre, mulheres. Neste caso, o feminicídio é vertical, demonstrando que a violência no Brasil soma no seu percurso uma trajetória de classe, etnia e gênero, muitas vezes invisibilizado, como nos mostra Hebe Castro em “Das Cores do Silêncio”, de 1995[16].
A Questão central reside nos limites, ao mesmo tempo, estrutural e institucional, e na resistência, da ampliação por via do voto do “demos”. Nos Estados Unidos, entre 1954 e 1968, a luta contra o “apartheid”, na África do Sul, até 1990, no Brasil o processo de democratização – o mais longo da história, como assinalamos – entre 1977 e 1988 – apresentaram limites, recuos e mesmo falhas. No caso do Brasil, é notável que os aparelhos de repressão, tanto na transição de 1945/1946 – a temível “Polícia Especial” – e na Transição da Ditadura Militar – não tenham sido tocados. As polícias, civil e militar, órgãos especiais – tais como os Deops/Dops, não foram alvos de exame e as anistias, desde 1946 até 1979, cobriram as ações de torturadores, sequestradores, ocultadores de cadáveres, incendiários etc. [17]
O grande conflito se dá em torno da ampliação aos novos grupos em ascensão tais como negros, mulheres, em especial mulheres negras, camponesas, operárias, índios e outros. Tais conflitos podem resultar na própria crise do “demos” pactuado através da Constituição de 1988. Neste sentido, a relação “política” entre as altas taxas de homicídios de pessoas dos grupos subalternos/minoritários e a resistência na ampliação do “demos”, direta e imediata, é o fulcro das tensões republicanas atuais. Tal relação compreende uma pressão “selvagem” em manter o status quo ou mesmo num brutal recuo e destruição das conquistas democráticas. A abundância brutal de mortes na sociedade brasileira é a face mais explícita da manutenção da estrutura social de privilégios e de exclusão. O jornal “O DIA”, citando um relatório da polícia do Rio de Janeiro, noticiava no dia 26/11/2021: “Polícia prende mil milicianos em um ano” [18]. Trata-se sem dúvida de uma notícia banal de uma guerra em curso. Daí a noção de “Guerra Civil Oculta” do Brasil.
Os números absurdos de homicídios e desaparecimentos – certa de 100 mil por ano em seu conjunto – com sua composição classista, transversal, de negros, pardos, jovens do sexo masculino e com um componente de feminicídio que transpassa a sociedade de forma vertical – explicita a persistência das características patriarcais, misóginas e falocratas que compõem historicamente a sociedade brasileira, tendo como base formativa a escravidão.
O “mapa’ de mortes no Brasil não se constitui numa relação prostituída ou casual da baixa política local do Rio de Janeiro ou do Pará ou da “Arco do Fogo” do desmatamento amazônico do crime organizado. Na verdade, constitui-se uma forma contumaz e histórico – Genocídio, Escravidão, Canudos, Contestado, Ditaduras[19] – e rotineira na história do Brasil em contenção e configuração das relações sociais, desmentindo a chamada tese da “ternura brasileira”, mas, de certa forma, confirmando a noção mais dura da “cordialidade brasileira”, confirmando o país descrito por Sergio Buarque de Holanda.
Os homicídios em massa são parte de uma vasto processo de manutenção da dominação, de classe/gênero/etnia, de velhos contra jovens, no Brasil. O debate sobre o caráter da dominação de classe que se explicita em formas de segregação étnica e transversalmente de gênero e minoriza maiorias – negros, pardos, mulheres – pelo processo de negação de direitos e remunerações é bastante evidente e sua expressão sob a forma de violência privada e pública se torna cada vez mais visível. Tal visibilidade tornou-se mais frequente – como no “Caso Carrefour” (2020), na Chacina de Acari (1990), da Candelária (1993), de Vigário Geral (1993) ou Varginha e Jacarezinho (2021) e Vila Cruzeiro (2022) – seja pela tomada de consciência e existência de ongs – que inclusive precificam os danos materiais e o valor da vida – seja pela existência e difusão de telefones capazes de filmar ou pela massificação do número de vítimas e sua repetição e a participação de tropas do Estado[20]. E que agora, para espanto e choque, se configura no retorno do fenômeno da fome em massa que atinge multidões da terceira potência agrícola do planeta.
A fome é uma forma de controle social[21].
Por fim, o debate, ainda restrito, sobre o peso estrutural da relação escravidão-racismo-resistência à mudanças remete claramente ao debate historiográfico sobre a natureza do fascismo/nazismo no Terceiro Reich entre os historiadores defensores do “Funcionalismo” (não confundir com os funcionalistas de Bronislaw Malinowski e Talcott Parsons) e “Intencionalistas”, durante a “Historikerstreit” (a “Querela dos Historiadores”) na Alemanha, com considerações que a violência é uma “estrutura” da sociedade brasileira, autônoma e auto estruturante, independente da ação dos indivíduos, levados de roldão pela força de uma história que não muda (“um passado que não quer passar…”) e de um passado que não passa[22].
O Brasil é um país que o passado sequestrou o futuro.
Violência no Brasil: classe/etnia/gênero/idade.
Esse processo de dominação, de longa duração, estruturante da sociedade brasileira, uma hipoteca sobre o futuro, que tanto enfeia a democracia, é claramente um processo de classe, grupo e frações de classe, envolvendo uma visão social, uma mentalidade – em seu sentido mais amplo de mentalité -. traz a experiência da escravização das pessoas pretas, a seleção de gênero (uma razão masculina mais elevada), que se une a uma tradição ibérica de “limpeza de sangue”, estabelecida desde a Colônia quando se exigia provas de “sangue limpo” ( sem contágio negro, mouro ou judeu). Ainda avançado o século XIX, em 1820, os “tribunais de limpeza de sangue” funcionavam no Brasil para estabelecer “….a quem faltar a pureza de sangue com raça de judeu mouro, e de mulato, por igual modo que qualquer outra infame de fato e de direito”[23]. Evidentemente, “negro’ ou “preto” não é sequer nomeado no alvará por absurdo que seria a pretensão de algum negro/pardo se aventura a ser “homem bom”[24].
Muitos cientistas sociais no Brasil hoje, mesmo sem saber, acabam assumindo uma postura “funcionalista”, por analogia ao “Historkerstreit” alemão e ao debate sobre a natureza do Terceiro Reich, onde a força de tais estruturas, sempre se reproduzindo autonomamente, moldando a história, explicam, o presente e ameaçam o futuro – daí o “passado que não passa”, tudo “funciona” como uma gigantesca máquina anônima, automáticas e cega.
A escravidão no Brasil é o passado que não passa e vive no nosso presente.
Assim, os homens e suas ações, e sua responsabilidade, e a noção de “Intencionalistas”, não possuem qualquer papel na história, perante forças tão poderosas, na contramão da história de historiadores como François Bédarida e de Hans Mommsen, centrados na “intenção” e responsabilidade dos atores, quando analisam os fascismos.
O alto grau de violência na sociedade brasileira e da sua desigualdade estrutural como fator genético não são, contudo, componentes de uma “máquina do destino”. Cabe reconhecer um “estado de guerra larval e contínuo” no qual vastos grupos sociais são explorados e oprimidos em favor de uma minoria.
Os níveis de homicídios – acompanhados de altos níveis de mortes violentas e de envolvimento/mortes/perpetração por parte agentes policiais, em especial de policiais militares em tais crimes – supera em muito o número dos conflitos internacionais em curso no momento, como na Síria – 500 mil mortes entre 2011 e 2020 -, Líbano, Nigéria ou mesmo Afeganistão, constituindo-se numa verdadeira “guerra civil oculta” travada, por vezes, nas grandes cidades do Brasil. Os números de homicídios no país, como vimos, entre 2017 e 2022, flutuam entre 63.880 em 2019, 43.892 em 2020, 43 mil em 2021 e 40.800, em 2020[25]. É isso que denominas de “Guerra Civil Oculta!”
A Guerra Civil do Brasil.
É comum, para a explicação dessa “guerra civil oculta”, trazer a questão do tráfico de drogas para o centro da violência no Brasil. O domínio de narcotraficantes, historicamente no Rio de Janeiro e algumas áreas periféricas de São Paulo e grupos de assaltantes no Paraná, Goiás e Minas Gerais denominados de forma claramente racista e preconceituosa como o “novo cangaço”, bem como em amplíssimas áreas da Amazônia, foi erguido como elemento a justificar os conflitos entre policiais e “criminosos”, dos quais decorriam “balas perdidas” que encontrariam corpos entrepostos ao conflito. No entanto, os homicídios não são apenas de “balas perdidas”. Ao lado do narcotráfico emergem um sem número de organizações criminosas: do jogo do bicho, a tradicional organização criminosa urbana ao crime ambiental de destruição da floresta, de contrabando de madeiras, armas, ouro, pedras preciosas, animais silvestres, de crianças, de órgãos humanos, e todo tipo de ilícitos que transbordam sobre um território que o Estado não controla permitindo, in loco, a convergência criminosa de todo tipo.
Um número crescente de atos de selvageria e barbárie – em crescimento no Brasil – mostram, ainda, outras causas da violência estrutural no Brasil, para além das (1) guerras entre gangues para o controle de tais fluxos de ilícitos ou (2) conflitos entre policiais e criminosos na participação em tais fluxos ilícitos.
A violência conservadora no Brasil
Entre janeiro e junho de 2021, 80 (oitenta) pessoas “trans” foram mortas no Brasil, segunda a associação ANTRA[26] (sendo que em 2020 foram mortas 175 pessoas nas mesmas condições, transformando o Brasil o país que mais mata “pessoas trans” em todo o mundo; da mesma forma, desde o início da pandemia ocorreram 4 (quatro) feminicídios por dia no Brasil, com um aumento brutal do número de mulheres mortas, chegando a um total 1.338 um mulheres até o momento[27].
As crianças são outro grande alvo da violência, incluindo a violência doméstica, de todo tipo, como a agressão sexual, descuido, abandono e formas variadas de assédio violento e negligência. A máxima da educação “antiga” – “… não fale com estranhos!” – é ineficaz no Brasil: a maior parte das agressões contra menores é cometida por conhecidos e familiares!
O fechamento das escolas e as atuais tentativas de reabertura intermitente são outra forma de agressão: durante os quase 18 meses de recesso escolar nada foi feito para preparar, de forma segura, a escola para receber as crianças e adolescentes, que estão, assim como professores e todos os demais profissionais de ensino, expostos, antes/depois da vacinação efetiva e garantida de 70% da população, às variantes e novas/diversas cepas de covid-19.
O “Caso dos Meninos de Belford Roxo” – Lucas da Silva, de 9 anos, Alexandre da Silva e Fernando Henrique Soares, de 11 anos, os meninos do passarinho -, desaparecidos desde 27/12/2020, é parte desse imenso descaso e brutal violência contra as crianças do Brasil, ora nas mãos do Estado, ora na mãos de traficantes.
Embora haja de fato um número assombroso de vítimas decorrentes da “guerra de bandos narcotraficantes”, com ou sem a interveniência das policias, devemos ter claro, que há uma violência brutal, estrutural, contra grupos sociais diversos – como o “Caso Roberta”, – a mulher “trans” queimada viva em Pernambuco, como os meninos passarinheiros de Belford Roxo e contra as mulheres em geral por companheiros, que não merecem nenhuma ou quase nenhuma atenção por parte da administração policial, sem inquéritos efetivos e sem que resultem em punições efetivas que inibam sua repetição. Em verdade o chamado “Indicador Nacional” que aponta 44% de resolução de casos/inquéritos criminais, o que deixa o Brasil abaixo da média mundial, na resolução, é de cerca de 63%, segundo dados reunidos em 72 países[28].
Soma-se, desta forma, à violência estrutural presente na sociedade brasileira onde grupos sociais colonizam instituições do Estado como “privi-legios” naturais de classe, uma postura institucional de descaso e descuido que, em verdade, revela a face racista e sua origem classista, da violência institucional. Ambas as formas de violência – estrutural e institucional – se unem para perpetuar um habitus de impunidade presente na sociedade brasileira.
Nesse ponto diferenciam-se duas formas de violência e da sua organização:
(i) A violência estrutural, organizativa e parte fundante da sociedade brasileira, de caráter classista, étnica, resultando num racismo persistente, que é invisibilizada no habitus;
(ii) A violência que organizada através de cartéis e novos meios empresariais do narcotráfico, com largos ramos e enlaces internacionais financeiros voltados para sua diversidade, como armas, finanças, meios de transporte, cambio etc.
Na sua prática diária ambas as formas recorrem à métodos brutais e perversos, reafirmam as práticas de diferenças de classe, gênero e etnia, corrompem menores e atuam na prostituição, contudo seus objetivos, forma de organização e método de agir são bastante distintos e, principalmente, sua ação na putrefação do Estado de Direito Democrático e na promoção da “libertação de territórios” possuem interesses diversos. Neste sentido, o combate contra ambas as formas, deve ser claramente distinto e acima de tudo assumindo que uma política ativa e autônoma de Direitos Hiumanos não é tarefa de um ou outro ministeriuo, mas uma imperiosidade transversal para tdoso os entes do Estado brasileiro. Os Dirietos Humanos são uma postura militante para todo cidadão brasileiro, e não apenas restrito a eventos chocantes envovloendo nomes conhecidos da cultura e dos esportes, mas uma dívida civilizacional com a maioria da popualaçoa brasileira.
A nova face da “Guerra do Tráfico”:
Após a queda das redes do tráfico configuradas com as Farc e os seus nexos no Rio e São Paulo, deu-se uma reorganização das rotas de fornecimento, via a chamada “Rota do Solimões”, transferindo para a Amazônia a violenta luta entre os carteis. Para o seu pleno funcionamento buscou-se o controle das penitenciarias de Manaus, Fortaleza e Natal, de onde se arregimentava o “pessoal” – soldados”, “aviões” e demais serviços – e mesmo a organização de um novo comando, “A Família do Norte”, que deveria fazer a intermediação com os “comandos” do Sul. A ‘guerra” nos presídios, com as cenas bárbaras de morte por decapitação, foram parte da guerra pelo controle da “Rota do Solimões” e daí as penitenciárias e os aeroportos de Natal e Fortaleza para a Europa.
– Natal e Fortaleza – na junção das “duas violências” tornaram-se as capitais federais mais violentas do país, enquanto o Rio de Janeiro não aparece na mesma lista em situação de destaque e entre os municípios mais violentos temos: Altamira (PA), Lauro de Freitas (BA) e Nossa Senhora do Socorro (SE)[29].

A “Rota do Solimões”: a necessidade de revisão do papel do Comando Militar da Amazônia. O controle de aeroportos, de equipamento moderno de voo, de monitoramento e de “C4” está disponível em setores militares e deve ser passado para civis e constituir-se numa área de Inteligência autônoma. Área de controle do 8º. Batalhão de Infantaria de Selva (com um destacamento de Batalhão de Engenharia e um excelente Hospital, com obstetrícia).

Devemos ter claro um debate conceitual: de qual segurança e garantias estamos falando? Segurança para quem? Garantia de Direitos de quem ? Qual a extensão de tais Direitos?
Aqui importa desenvolver duas vertentes fundamentais para um futuro e eficaz conceito de Segurança, que deixe de ser uma “Segurança Nacional”, de Estado ou de uma elite que se identifique com o Estado. A “Segurança” deve ser voltada para a maioria que precisa de proteção contra grupos que agem à margem do Estado de Direito Democrático, inclusive sobre proteção do Estado e de poderes paralelos que desviem de suas funções precípuas “de Estado”. Neste sentido, como já afirmamos, não há um “Estado Paralelo” – e não devemos usar tal expressão – mas, tão somente, homens, funções, parcelas e entes criminosos que se apropriam “de funções de Estado”, por vezes em exercícios de microfascismos, para em proveito próprio, de grupo e de decorrência de putrefação do Estado de Direito, usurpar as funções, principalmente da violência legal do Estado[30].
Assim, toda Segurança deve ser Cidadã e Institucional, o que tem sido ignorado, na sua formulação e na sua implementação, tanto por segmentos progressistas, quanto pelas chamadas “Forças da Ordem”, visando as garantias da INTEGRIDADE FÍSICA DOS GRUPOS SUBALTERNOS, SUA POSTUALAÇÃO DE DIREITOS PERANTE AS AUTORIADES E SEU DIRTEITO DE INTIMIDADE E PRIVACIDADE NO INTERIOR DO SEU LAR.
Cabe rejeitar:
(i) a brutalidade, no imenso número de casos de alto teor racistas, na repressão dos ilícitos, sempre junto às comunidades e grupos subalternos, como parte constante das ações da REPRESSÃO HISTÓRICA DO PROCESSO SOCIAL BRASILEIRO;
(ii) A CULPABILIZAÇÃO EM, MASSA DAPOPULAÇÃO, hoje já inscrita em apps eletrônicos e instrumentos de reconhecimento facial, sem trabalhos prévios de Inteligência, Comando, Controle e Comunicação por parte do Estado, optando pelo uso da força bruta, e o fuzil, deixando uma rastro de vítimas inocentes – as chacinas, massacres e no imprevisões como a “câmara de gás de Aracaju” o “Caso da Bicicleta Elétrica” do Leblon, no Rio de Janeiro – , onde e quando um biotipo é sempre identificado previamente como criminoso;
(iii) E, de forma reincidente na PRÓPRIA PRÁTICA DA JUSTIÇA como na EXPEDIÇÃO DE MANDADOS COLETIVOS DE BUSCA ABRAGENDO RUAS E MESMOS BAIRROS INTEIROS em comunidades, sem discriminação de endereços ou nomeando indivíduos, o que criminaliza toda a comunidade como “perigosa” ou “suspeita” pela simples razão das condições precárias de moradia.
Embora a “fala” , e muitas vezes a preparação de ações concretas sejam sempre bélicas – “Guerra ao Tráfico”, “Guerra ao Crime Organizado”, “Guerra às Drogas”, etc… , os meios utilizados no combate ao narcotráfico são primários, não só mantidos num patamar do senso comum, de alta precariedade e alta emoção “na tropa”, como ainda, travados como “troca de tiros com bandidos”. Em várias ocasiões vemos que após “operações” mal planejadas ou “selvagens” – sem preparo ou autorização judicial – por parte dos corpos policiais, ocorrem baixas no enfrentamento com o narcotráfico, resultado e então incursões “punitivas” – “vinganças” – contra a população envolvente, resultando em tragédias brutais entra civis – como no caso da Vila Cruzeiro, em 2022. Escolas, blocos habitacionais, áreas de recreação e moradias são usadas como escudos ou ignoradas por ambas as partes, muitas vezes a partir de critérios de construção de perfis racistas/coletivistas. Não há nenhuma preparação prévia para a realização de tais “operações”, na maioria das vezes trata-se de “cumprir” mandados de “busca” e “apreensão”, com base em informações/inteligência humanas precárias e sem qualquer confirmação, resultando em invasões, violência física e brutalidade.
A combinação/organização de modernos meios de Inteligência Humana, Técnica e Cibernética e o “Trabalho Interagências” é raro ou mesmo ignorado. Fala-se em “C2” – “Comando e Controle”, algumas vezes em “C3”, ou seja em empregar-se-ia meios de “Comando, Controle e Comunicação” como forma de desorganização das redes do narcotráfico, sem perceber as novas e avançadas tecnologias já disponíveis para uso em nível muito mais complexo como C4ISTAR /Command, Control, Communications, Computer, Intelligence, Surveillance, Target Acquisition, Reconnaissance. Tais meios, são ainda ignorados, – em especial a correta e específica definição de “Target Acquisition” – embora sejam a forma mais completa de acompanhamento de redes complexas, como o tráfico, terrorismo, contrabando e demais formas de crime transfronteiriço. Toda uma moderna tecnologia que poderia identificar as redes de fluxo financeiro e computacionais capaz de “secar” as rotas que irrigam o tráfico são deixadas de lado em favor do confronto físico, tiros ao léu e invasões coletivas de áreas residenciais, com ou sem mandados, resultando em matanças como no Jacarezinho, Rio de Janeiro, em 06/05/2021, em vez de minimizar os efeitos do uso do fuzil contra as comunidades periféricas[31].
Assim, é urgente uma reformulação total de todo o tratamento da Questão de Segurança Cidadã, e consequentemente sua dimensão Institucional, a saber:
1. O reconhecimento que a Questão dos Direitos Humanos é uma Questão Nacional e não está tão somente contida na Questão de Segurança Cidadã e seu desdobramento Institucional, perpassando todas as ações do Estado;
2. A Questão do Racismo Estrutural permeia toda a Questão de Segurança. No entanto, a urgência da contenção da violência brutal no país praticada não só pelas polícias, como também por elementos civis – como contra a população “trans”, contra mulheres e crianças necessitam de uma abordagem de conjunto por parte do Estado;
3. Estabelecer as Organizações Narcotraficantes como alvos da ação repressora – “Target Acqusition” – e não os pequenos e eventuais traficantes, “aviões” , “olheiros”, “fogueteiros”, etc… retirando do embate físico – as chamadas operações;
4. A prioridade imediata para redução de operações “selvagens”, visando a diminuição imediata de vítimas de “balas perdidas” e de “baixas colaterais”;
5. Aplicar os meios de Guerra Cibernéticas – C4I – para o desmantelamento das organizações narcotraficantes, buscando atingir sua organização e não – apenas – os indivíduos na ponta da operação;
6. Sendo um crime “transfronteiriço” nacional e internacional, e pontos de uso de múltiplo acesso como aeroportos, portos, penitenciarias federais (por vezes “escritórios do crime”), o combate ao narcotráfico deve, necessariamente federalizar o combate contra tais redes, criando uma agência civil com meios cibernéticos de combate e de ação interagências (hoje essa agência se encontra no âmbito do Exército, que deve ser um partner e não um agente em tal tarefa);
7. Devemos reconhecer o caráter internacional do tráfico e a necessidade da cooperação internacional no seu combate via acordos internacionais, concentrando as polícias estaduais nas garantias de cidadania cotidiana;
8. A reeducação permanente das polícias, em especial da polícia militar, num sentido antirracista e popular e dos Direitos Humanos, para reconstruir o perfil do traficante e do que é o “ilícito” e do tipo de ilícito que realmente ofende o Bem Comum através da cooperação com secretarias especializadas e do mundo acadêmico, sem buscar criar ou substituir os entes já existentes e capazes na sua função precípua;
9. Estabelecer protocolos rígidos para o uso de armas de fogo, para operações em áreas de risco e a proibição de “blitz” selvagens, tendo claro que o “fogo real” não é justificável em áreas abertas e em situação de risco da população civil;
10. Suprimir a demanda de “mandatos coletivos de busca de casa em casa” e não nomeados como ameaça aos Direitos Civis;
11. A obrigatoriedade do uso de câmaras em viaturas e nos uniformes em todos os casos de operações policiais sob controle externo;
12. Garantir o acesso da população a juizados de denúncias sobre violências praticadas por agentes do Estado e eliminar os julgamentos intra-corpore.
Trata-se de formular um Programa Emergencial capaz de impactar, de imediato, as relações do “demo” ampliado com o Estado buscando a confiança e o diálogo com as populações das comunidades e restabelecendo, o que é fundamental, os laços de entendimento e do que é possível de esperar do Estado.
No entanto, apenas a presença do Estado, a longo prazo, como provedor das necessidades básicas das populações historicamente abandonadas, em grande parte “adotadas” pelo próprio narcotráfico, pelas milícias, como paródia de Estado, como um poder paralelo, jamais um Estado paralelo, poderá criar condições de restabelecer as condições republicanas de segurança cidadã e seus desdobramentos institucionais.
Francisco Carlos Teixeira da Silva
Professor Titular de História Moderna e Contemporânea/UFRJ
Professor Titular de Teoria Social/UFJF.
Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior/Eceme
Prêmio Jabuti, 2014
Prêmio Abert, 2002.
[1] Aqui nos referimos desde os lugares comuns de “bandido bom é bandido morto” até uma certa conformidade existente nas Esquerdas quer o tema de “Segurança” foi definitivamente capturado pela Direita e Extrema-Direita e a confusão clássica entre um programa de segurança e a obrigatoriedade em respeitar e promover os Direitos Humanos. Trabalhamos aqui com as noções de “Direita” e “Esquerda” conforme uma topológica, como foi proposto por Norberto Bobbio, em “Esquerda e Direita, razões e significados de uma distinção política”. Petrópolis, Paz e Terra, 1994 e como procuramos estabelecer em “Dicionário Crítico do Pensamento de Direita” ( Teixeira da Silva, Francisco Carlos et alii, Rio de Janeiro, Mauad, 2000).
[2] Ver Tannenbaum, Edward. La Experiencia Fascista. Madrid, Alianza Editorial, 1975, p. 159 e ss.
[3] Destacamos aqui a noção de “Poder Paralelo” em oposição a “Estado Paralelo” no sentido de que não há quaisquer legitimidade democrática, legal ou doutrinal no(s) poder(es) erguidos pelas milícias, em especialmente no Rio de Janeiro, impossibilitando assim, falar em “Estado”, guardando tal noção exclusivamente para o Estado Nacional, emanação legal e democrática da Nação brasileira.
[4] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/07/15/letalidade-policial-e-a-mais-alta-da-historia-negros-sao-78-dos-mortos.htm, 15/07/2021, consultado em 20/08/2021.
[5] CNN BRASIL. Entre Janeiro e Marco deste ano, 453 pessoas morreram em ações policiais no Estado do Rio de Janeiro, 4% a mais do que as 435 vítimas no mesmo período do ano passado, quando ainda não estava em vigor a determinação do STF (Supremo Tribunal Federal) que restringiu as operações em favelas fluminenses. IN: https://www.google.com/search?q=n%C3%BAmero+de+vitimas+em+confrontos+com+policiais+no+ano+de+2021%3F&rlz=1C1SQJL_pt-BRBR920BR920&oq=n%C3%BAmero+de+vitimas+em+confrontos+com+policiais+no+ano+de+2021%3F&aqs=chrome..69i57.18923j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8.
[6] D´Orsi, Angelo. La Polizia. Milão, Feltrinelli, 1976.
[7] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/07/15/letalidade-policial-e-a-mais-alta-da-historia-negros-sao-78-dos-mortos.htm, 18/07/2021, consultado em 10/07/2021.
[8] FERREIRA, Romualdo. África durante o comércio negreiro. In.: SCHWARCZ, Lilia Moritz e GOMES, Flávio (org..). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 55.
[9] Novais, Fernando Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial. São Paulo, Hucitec, 1995.
[10] Novais, Fernando, Op. Cit,, p. 19 e ss. Ver para o debate sobre racismo: Poliakov, Leon. O Mito Ariano. São Perspectiva, 1971.
[11] Linhares, Maria Yedda e Teixeira da Silva, Francisco C. Terra Prometida. São Paulo, Expressão Popular, 2021.
[12] G1. Prédios desabam na Muzema, Rio. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/ao-vivo/predios-desabam-na-muzema-rio.ghtml, 13/04/2021. Consultado, 21/08/2021.
[13] Schurster, Karl e Teixeira da Silva, Francisco C. Militares e bolsonarismo: um caso da transição falhada e democracia inacabada. In: Revista Relaciones Internacionales https://revistas.unlp.edu.ar/RRII-IRI Vol 30 – nº 60/202, file:///C:/Users/55219/Downloads/12155-Texto%20del%20art%C3%ADculo-41773-1-10-20210713.pdf.
[14] Ver Vianna, Natalia. Dano Colateral. Rio de Janeiro, Objetiva, 2021.
[15]https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2021/02/12/brasil-tem-aumento-de-5percent-nos-assassinatos-em-2020-ano-marcado-pela-pandemia-do-novo-coronavirus-alta-e-puxada-pela-regiao-nordeste.ghtml, 12/02/2021.
[16] Castro, Hebe. Das Cores do Silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista (Brasil, séc. XIX), Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995.
[17] Assis, Denise. Claudio Guerra: Matar, queimar. Rio de Janeiro, Kotter, 2020.
[18] O Dia, 26/11/2021.
[19] Ver Carneiro, Glauco. História das Revoluções Brasileiras. Rio de Janeiro, Editora “O Cruzeiro”, 1963.
[20]Muitas vezes o que mais preocupa é a possibilidade que a precificação da violência de racial e de gênero haja no sentido contrário ao endurecimento da legislação existente.
[21] Linhares, Maria Yedda e Teixeira da Silva, Francisco C. História Política do Abastecimento. Brasília. Binagri, 1984.
[22] Buchheim, Hans et ali. Anatomie des SS-Staates. Munique, Deutscher Taschenbuchverlag, 1999.
[23]http://historialuso.arquivonacional.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4950:pureza-de-sangue&catid=196&Itemid=215
[24] Rodrigues, Aldair Carlos. Honra e estatutos de limpeza de sangue no Brasil colonial. In: file:///C:/Users/55219/Downloads/31841-124109-1-PB%20(1).pdf. Consultado em 12/07/2021.
[25] https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/07/07/80-pessoas-transexuais-foram-mortas-no-brasil-no-1o-semestre-deste-ano-aponta-associacao.ghtml..
[26] https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/07/07/80-pessoas-transexuais-foram-mortas-no-brasil-no-1o-semestre-deste-ano-aponta-associacao.ghtml.
[27] https://pt.org.br/brasil-registra-mortes-de-1-338-mulheres-por-violencia-na-pandemia/
[28]https://www.google.com/search?q=inqueritos+n%C3%A3o+resolvidos+no+brasil&oq=inqueritos+n%C3%A3o+resolvidos+no+brasil&aqs=chrome..69i57.15565j0j4&sourceid=chrome&ie=UTF-8
[29] Fórum Brasileiro de Segurança Pública/IPEA, 2015/2015. In: https://exame.abril.com.br/brasil/as-30-cidades-mais-violentas-do-brasil-segundo-o-ipea/ e https://exame.abril.com.br/brasil/capitais-mais-violentas-do-brasil/
[30] Souza Alves, José Claudio. Dos Barões Ao Extermínio Uma História Da Violência Na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro, Editora Consequência, 2021.
[31] Rovner, Joshua. WARFIGHTING IN CYBERSPACE. IN: HTTPS://WARONTHEROCKS.COM/2021/03/WARFIGHTING-IN-CYBERSPACE/, 2021.
set 22, 2023
Para Francisco Teixeira da Silva, vivemos um momento único da história em que a política pode conduzir, com autoridade, os militares e sua visão salvacionista e patrimonialista de volta à caserna
Por Flávia Tavares
“A República deve ser agraciada com silêncio dos militares.” Essa é a conclusão de alguém que, por ofício, ouve o que os militares dizem e pensam. Francisco Carlos Teixeira da Silva é historiador. Por mais de 15 anos, tentou ensinar a novatos e veteranos a verdadeira história do Brasil. Encontrou a resistência de uma corporação que tem sua própria versão da história, que lhes atribui a missão de
fundar a nação e protegê-la de inimigos, inclusive imaginários, internos. Tudo pelo filtro de uma elite conservadora, agrária e patrimonialista. Chico, como pede para ser chamado, foi assessor do Ministério da Defesa no segundo governo Dilma.
Chegou a fazer uma proposta de reforma do ensino militar, discutida, em partes, com Darcy Ribeiro, com quem trabalhou. No currículo, haveria leitura obrigatória de 10 livros da literatura sobre a realidade brasileira, de Érico Veríssimo a José Lins do Rego, passando por Machado de Assis e Graciliano Ramos. “Não dá para formar oficiais que sejam bons funcionários públicos e guerreiros só com matemática binária”, ele acredita. Mas Chico encontrou uma oposição arrasadora — dentro da estrutura militar, mas também entre civis.
A tutela dos militares sobre os civis é secular, não começa pós-ditadura. Também não se agrava com a Comissão Nacional da Verdade, defende Chico. Ela é retroalimentada por militares que conservam sua mentalidade salvacionista nas 23 de agosto de 2023 academias. E por civis que recorrem às Forças Armadas para resolver seus problemas eventualmente. Conduzi-los de volta à caserna é um esforço que demanda coragem e autoridade. Mas, se houve na história um momento propício, é o atual. Professor titular de História Moderna e Contemporânea da UFRJ, crédito
que Chico mais se orgulha de ter por ter sido conquistado em concurso público, ele também ensinou na Escola de Guerra Naval (EGN), na Escola de Comando do Estado-Maior do Exército (Eceme) e na Escola Superior de Guerra (ESG). Conversa intensamente com oficiais, principalmente os “legalistas”. Diz-se respeitado nessa interlocução, mesmo com entrevistas e artigos frequentes em que descreve a visão de mundo equivocada dos militares brasileiros. Chico defende que é hora de civilizar o debate político brasileiro, no sentido de deixá-lo exclusivamente civil. “O Brasil não conseguiu institucionalizar uma relação com os militares que seja segura para a democracia.” Confira os principais trechos da entrevista.
O general Tomás Paiva, comandante do Exército, fala, em seu comunicado, que o Exército é uma “instituição coesa”. Então, é possível analisar Exército e Forças Armadas como uma instituição, sem fulanizar?
Ao perguntar se existe uma questão militar na República, é preciso abstrair os indivíduos e pensar a instituição. Me perguntam muito quantos generais do Alto Comando do Exército são legalistas, quantos são bolsonaristas. Essa não é efetivamente a questão. O ponto central é se perguntar se a República no Brasil conseguiu institucionalizar uma relação com os militares que seja segura para a democracia. A resposta é não. Não há uma relação saudável para a democracia no Brasil com o papel que os militares se auto-atribuem, e que algumas vezes os civis atribuíram a eles, indo buscá-los na caserna para resolver seus problemas. Essa relação não é republicana. Tem duas coisas que marcam profundamente o pensamento, ou melhor, o habitus dos militares na república brasileira. Em primeiro lugar, a noção de que eles são os fundadores da nação e da República. Isso se enraíza em dois mitos históricos: o de Guararapes, quando não existia sequer Brasil,
éramos uma colônia muito pouco povoada e eles expulsaram os holandeses e “salvaram” a unidade do Brasil. E o da proclamação da República, que teria sido feita por eles para encerrar um regime tradicionalista e escravista. Eles teriam sido a modernidade, o positivismo, a ordem e o progresso, e teriam derrubado o Império e assumido a tarefa de modernizar o Brasil.
É desses mitos históricos que nasce a pretensão das Forças Armadas de ser um “poder moderador”?
No Império, existia o poder Legislativo, no Parlamento; o Judiciário, nos tribunais; e o Executivo era exercido pelo primeiro-ministro, que no Brasil se chamava ministro do Império. Havia também um quarto poder, era o poder moderador, que residia no imperador e era muito forte, porque ele podia nomear governadores, dava títulos de nobreza — uma forma de fazer política — e dissolvia e convocava o Parlamento e as eleições. Esse quarto poder não foi recepcionado em nenhuma Constituição. Os militares entendem que eles são os herdeiros do poder moderador. E que podem
intervir na política republicana para restaurar princípios morais, principalmente na questão da corrupção, e ordenar as instituições a trabalhar nesse sentido de ordem e progresso. A segunda marca profunda na mentalidade militar, também ruim para a a vida republicana, é aquela que vem depois da Segunda Guerra, das relações com o Exército americano e da Guerra Fria: a ideia da existência de um inimigo interno. Não o combate a inimigos em fronteiras, que seria a função precípua das Forças Armadas. Dada a formação conservadora, mantida pelas escolas e academias
militares, esse inimigo interno é sempre visto em qualquer movimento com características de promoção e avanço social. Já foi o anarquismo, o comunismo, o varguismo, o trabalhismo, o social-desenvolvimentismo e agora é o petismo ou o bolivarianismo. Renomeado de comunismo.
Isso. Esses dois mitos deles, como fundadores da República e da nação e como os únicos capazes de combater o inimigo interno, fazem com que eles tenham uma visão sistêmica, para além dos indivíduos, sobre as relações deles, militares, com a política. Insisto no “para além dos indivíduos”. Nesta semana, escrevi um pequeno texto sobre o tenente-coronel Mauro Cid, que foi meu aluno na Eceme, e vários oficiais — eu converso com eles o tempo todo — disseram: “professor, não podemos falar em Forças Armadas ou Exército a partir de um indivíduo”. Esses são os que não estão cerrando fileiras em torno de Mauro Cid e tudo que ele fez e representa. São legalistas. Mas você vê que tem um problema de que qualquer crítica às Forças Armadas aparece como uma crítica pessoal.
Os militares não conseguem lidar com o fato de que não estamos preocupados com o general ou coronel tal. Estamos preocupados com o que permite que o coronel ou o general assumam um papel tão decisivo na República.
Essa mentalidade que o senhor descreveu é repassada tanto na formação quanto na atividade militar. A maioria dos professores nas academias são militares? Há espaço para alterar essas percepções?
Tanto na Escola de Guerra Naval como na Eceme, no Rio, já há uma maioria de professores civis, de alto nível, vindos por concurso público, sem nenhum pressuposto ideológico, e que orientam e dão aulas para militares. O programa de pós-graduação em assuntos marítimos da EGN e o programa de assuntos militares da Eceme são conduzidos largamente por professores civis. E as bancas de concurso foram formadas por professores advindos das universidades. Esse foi um momento único no segundo governo Lula, em que se deu uma ventilação nessas escolas.
Como é a receptividade dos militares com professores civis, especialmente de Humanas, que têm a pecha de serem de esquerda?
Olha, a universidade brasileira, nos anos 1980 e 1990, teve uma mutação ideológica muito grande. Os grupos que eram dominantemente marxistas dos anos 1960 e que fizeram oposição ao regime ditatorial foram convertidos, transformados em grupos pós-estruturalistas — isso imaginando que o Marxismo é uma forma de pensamento estruturalista. Principalmente, com o impacto de pensadores como Michel Foucault, eles alteraram a percepção tradicionalmente marxista, de esquerda. Isso é um pé de página, mas, de fato, os professores de História, Sociologia e Filosofia, para os militares, carregam um certo cartaz de “perigo”. Isso não se deve a um desvio ou uma postura de esquerda ou direita, mas sim porque trabalhamos com temas que são deixados de lado, sofrem apagamento. Um exemplo: esse mesmo Exército que cultua Guararapes não faz qualquer menção, em nenhuma escola militar, não tem um regimento, um batalhão chamado Zumbi.
Ora, o primeiro pedaço de território nacional que se torna independente, tanto de Portugal quanto dos holandeses, foi o quilombo dos Palmares. Esse reconhecimento das raízes populares, multiétnicas, o papel dos povos indígenas, negros, o problema da escravidão, nada disso é colocado. É um absurdo histórico que não haja um regimento Zumbi dos Palmares.
O que isso revela do conceito de heroísmo dos militares? É um pensamento da elite branca dominante proprietária de terras. Não é à toa que toda vez que se fala em reforma agrária, eles ficam desesperados. Mesmo a maioria absoluta dos militares não sendo proprietários de terra, eles incorporaram a ideologia da elite agrária do país. O MST, para eles, é o principal transtorno à vida
democrática do Brasil, e o MST sequer é um movimento socialista. É um movimento católico, cristão, radical, cooperativista, que aumenta a propriedade privada e a distribui, não acaba com a propriedade privada. Mas é difícil para eles entenderem.
A formação militar é essencialmente na matemática tradicional. Isso foi muito bem representado uma vez com o general Mourão falando da televisão. Ele começou a ditar equações, fórmulas matemáticas para dar conta de uma situação social. Essa visão matemática é totalmente binária. Não ajuda a pensar a complexidade da sociedade brasileira. Mas os militares imaginam que são os únicos que conhecem a sociedade brasileira, porque já serviram em Benjamin Constant, no Oiapoque, em Tabatinga. Sem perceber que indo com essa visão, com essas lentes profundamente
elitistas, eles só confirmam o que já queriam ver. Além dessa ideia salvacionista, de que são os únicos que não são corruptos, eles têm também uma imagem da história do Brasil sustentada numa visão elitista, patrimonialista e agrarista da sociedade brasileira.
Corporativista também? Toda vez que há uma reação da sociedade civil para eles voltarem à caserna, eles condicionam o movimento a recursos, investimentos e benefícios.
Militares, quando juram a bandeira e se incorporam, têm a obrigação de morrer pelo país. Isso cria uma excepcionalidade na função militar. Além disso, eles vão morar, durante a sua juventude, enquanto estão se formando, num quartel. Depois, como tenentes, onde forem alocados. Como capitães, por mais 10 anos, vivem como num deserto — essa é a patente em que se prova se o sujeito vai prosseguir ou não. Pense naquele capitão que nunca conseguiu passar de capitão, reclamava de falta de dinheiro, das condições de trabalho… Como capitães, eles estão colocados em lugares precários, normalmente já estão casados e as famílias são obrigadas a ir junto, os filhos crescem trocando de escola a cada dois anos.
Decididamente, é um trabalho diferenciado, com exigências físicas, inclusive. Eles entendem que isso merece uma remuneração diferenciada. Agora, eles escolheram isso. Quando você escolhe, assume o ônus e o bônus de qualquer profissão. É necessário que haja essa diferenciação de aposentadoria integral, mais cedo, e quando se explica isso, a população em geral concorda com benefícios diferenciados, que deviam se estender aos policiais. Mas isso não quer dizer, de maneira alguma, que eles tenham uma superioridade de cidadania em relação aos civis. Não tem como transformar isso numa outra cidadania, na qual eles tenham todo um sistema de moradia, de alimentação, de saúde, de salários que vão se acumulando, a ponto de, no final do governo passado, haver generais recebendo R$ 300 mil por mês.
Mesmo porque os militares não estão enfrentando risco de morte.
Sim, desde 1943 o Brasil não vai à guerra. Esse exército começou a ser burocratizado e a promover uma série de atividades que são totalmente diferentes do fim precípuo de um exército, que é o combate. Felizmente, não combatemos desde a envio da FEB para a Itália há 80 anos. Eles começaram a substituir isso por funções públicas, civis, acumulando emolumentos, salários, cargos. Hoje, o exército consome a maior parte do seu orçamento em custeio, não em pesquisa, armamento ou modernização. Chegou ao ponto de, nos governos Lula 1 e 2 e Dilma, juntar a formação militar específica a MBAs de Finanças, Empreendedorismo e Administração, dados pela Fundação Getúlio Vargas, contratada pelo Exército. Isso aumentou a ideia de privatização das Forças Armadas em direção à gestão da coisa pública, como se o país fosse uma empresa, com os princípios hiper liberais vigentes nesses MBAs. E criou um soldado que hoje não é formado visando a luta, mas visando a gestão, a administração.
Além de instituição coesa, o general Paiva diz que o Exército está em estado de “permanente prontidão”. Se não há combate, que prontidão seria essa?
Isso deveria ser perguntado ao general. Até onde eu saiba, o Brasil não tem nenhuma disputa, nenhuma ameaça imediata ao seu território. A integridade territorial e a manutenção de soberania deveriam ser as duas funções precípuas das Forças Armadas, elas estão descritas na Constituição. Por que estamos em permanente prontidão? Por causa do inimigo interno? Quem tem de manter a
ordem interna são as polícias: a Federal e as polícias estaduais, civis e militares. Esse é o grande debate do artigo 142 da Constituição, que foi muito mal redigido. Foi uma exigência dos militares no processo de transição junto à Constituinte de 1988.
Ali, havia pelo menos 40 assessores militares no nível de coronel impondo sua visão. Existem duas formas de transição de ditadura para a democracia. Uma das formas clássicas é quando a ditadura entra em colapso. Foi o caso da Argentina após a guerra das Malvinas; de Portugal depois da guerra colonial; da Grécia depois da guerra em Chipre. Existem outros casos em que a ditadura ainda é forte e pretende guiar a transição. É o que chamamos de transição pactuada ou tutelada.
Foi o caso do Chile, que não consegue sair da Constituição do Pinochet até hoje; da Espanha; e é o caso do Brasil. Não conseguimos impor uma visão puramente civilista na Constituição de 1988. Uma das pessoas que participou da comissão que redigiu artigo 142 foi o então futuro presidente FHC. Mas, ao longo de seu governo, ele fez duas leis complementares ao artigo 142, que alteram inteiramente seu funcionamento.
De que maneira?
A lei complementar diz claramente que a Garantia da Lei e da Ordem só pode ser feita a pedido de um governador, do ministro da Justiça e autorizada pelo presidente. Não há, de maneira alguma, uma forma de um general ou um comandante de área ou região militar tomarem iniciativas. Eles não podem, porque são mandados, não mandam. Isso está claro nas leis complementares ao artigo 142, que ninguém lê. Ficam só naquele texto inicial, vencido, mas que causa esse malestar de intervenção ou tutela permanente da República pelos militares. Eles continuaram pensando com essa ideia de que são os garantes, para usar uma expressão diplomática. Não são. Isso é Polícia Federal que faz, como está fazendo agora. Nós vivemos um momento divisor de águas. Eu não sei, sinceramente, se os políticos, inclusive o núcleo político do governo atual, entenderam isso.
É um momento em que podemos dar um basta a essa história mais do que secular de tutela da República pelos militares. Ou podemos fazer o que vários políticos, como José Múcio, querem: virar a página da história. Mas vai ser virar as páginas de uma história que não foi escrita ainda.
Como civis podem impor essa autoridade aos militares?
Os militares foram os grandes responsáveis pela proclamação da República em 1889, mas não foram os únicos. Havia uma história republicana anterior. É só lembrar de Tiradentes, Frei Caneca, Garibaldi, todos esses republicanistas que lutaram pela república. Eram civis. Falar que a República é um fato militar é desconhecer a história. Depois de 1889, tivemos guerra civil até mais ou menos
1910. Em 1922, recomeça eh agitação militar com o movimento tenentista; temos a Revolução de 1930; o golpe de Estado de 1937; o golpe de 1945; o levante em 1954 que leva ao suicídio de Vargas; o levante contra Juscelino Kubitschek, em 1956; a oposição à posse legal de João Goulart em 1961; e o golpe de 1964. Vou parar por aí, mas dentro da própria ditadura teve, em 1977, a tentativa de golpe do Silvio Frota e do hoje General Augusto Heleno, então capitão, contra Geisel. Eles contra eles. É uma história já muito saturada. Ela precisa ser encerrada. Encerrar essa história implica em que os militares não sejam trazidos para a política — nem através de eleições. É muito bem colocado o projeto de lei do deputado Zarattini (PT-SP), que fala que todos os militares que participaram de vida política, com cargo administrativo civil, devem ir automaticamente para a reserva. Essa coisa de se apresentar como capitão fulano, general sicrano, acaba de vez.
E os militares que já estão nas funções civis?
Uma medida que foi fundamental no dia 8 de janeiro, e eu prezo que aí se acertou enormemente, principalmente pela ação do ministro Flávio Dino, do jornalista Ricardo Capelli e do jurista Wadih Damous, foi negar controlar aquela desordem com uma GLO. Mais que isso: nomear, pela primeira vez na história da República, um interventor civil, que foi o próprio Capelli — um jornalista. Ele colocou ordem, começou os inquéritos, as prisões e quando tivemos a crise no GSI ele novamente foi interventor. Mas aí voltou-se atrás. Em vez de nomear um civil para o GSI, voltou-se a nomear um militar. Temos que civilizar esse debate. Civilizar no sentido de deixar civil mesmo. O apagamento, o deixar para lá, não é uma resposta. Tem que dizer aos militares que eles podem perder seus salários, suas casas, seus benefícios. Eles não estão decididos a perder isso. O presidente francês, Emmanuel Macron, foi eleito sem ter nenhuma experiência militar. Na sua posse, o chefe do
Estado-maior fez uma declaração ruim, dizendo que o Macron nada sabia de assuntos militares. O primeiro ato do Macron foi a exoneração do general. “Quem fala pela França sou eu, quem foi eleito fui eu, os senhores não falam pelo país, se falarem serão punidos” — essa clareza é fundamental. O mesmo aconteceu com o Pedro Sánchez, o presidente do conselho de governo da Espanha. O general Paiva não tem de vir a público definir o papel do Exército, falar em prontidão, falar que o Exército é coeso ou democrático. Isso está na Constituição. Por que ele tem de lembrar seus comandados? Alguém questionou? Se sim, tem de ser punido. O melhor ruído que os militares podem fazer numa república democrática é o silêncio.