“Pauta de costume” é uma ova!

“Pauta de costume” é uma ova!

O acordo proposto pelo Ministro Alexandre Padilha aos membros da bancada dita evangélica do Congresso Nacional é um imenso recuo, na verdade uma capitulação sem garantias, perante o atraso. Ao negociar valores sociais e culturais, em nome de uma “pauta de costumes”, Padilha trai as promessas eleitorais e abre mão daquilo que ele não teve nenhuma autorização social de negociar no mercado eleitoral. Trata-se, em verdade, do abandono da Agenda de Direitos Humanos no Brasil, incluindo a união civil de gays, os Direitos Femininos, a condição carcerária, o controle das polícias, o uso pessoal de drogas não químicas, a adoção de crianças por famílias não heteronormativas, formas de famílias outras que o pátrio – impositivo, a condenação da homofobia e da misogenia…. Mas, isso preocupa Alexandre Padilha? Não, claro que não. Afeta milhões de brasileiros, mas não é um problema para homens velhos, brancos, hetero e muito longe da condição trabalhadora e popular no Brasil. Aliás cada vez mais Brazil.

Viva Alexandra Kollontai!

Feliz Aniversário, Presidente Lula!

Feliz Aniversário, Presidente Lula!

Temos que fazer uma reflexão fria e a mais objetiva possível: por que Lula da Silva vive um inferno astral antecipado? Embora o aniversário de Lula seja só em 27 de outubro, o Presidente, malgrado estar no lado certo do bem, os resultados são muito ruins. PIB em crescimento, inflação em baixa, queda dos juros, 100 milhões de carteiras de trabalho assinadas e, no entanto, um profundo mau humor da população, mesmo petista, com as ações do Presidente. Claro, há respostas rápidas e igualmente erradas: erro ou falta de comunicação; viagens demais; manipulação das enquetes; má vontade da mídia, etc…. Contudo, erros, teimosia e soberba são moeda corrente nos Ministérios da Educação, Saúde, Cultura, Direitos Humanos, Povos Indigenas – malgrado todos os esforços da ministra – , da Mulher – com uma ministra que poderia estar num governo de Direita – Desigualdade Social. Todos ministérios “fins”, diretamente em contato com a população. Ao nosso ver, ao contrário do “economicisno vulgar e automatico” do núcleo político, que insiste em máximas políticas de outra época, do tipo: tudo bem na Economia, tudo bem no governo. Esse é um grande erro numa sociedade polarizada e onde a “pauta dos Direitos Humanos “, dita “de costumes,” tornou-se a tônica da oposição fascistizada. Esquecerem de analisar a conjuntura, e as tendências, nos Estados Unidos, Alemanha e Portugal. Boa gestão da “coisa econômica” não resolve num mundo dominado pelo cyberspace. O governo abdicou da disputa ideológica, e rangeu os dentes para quem vinha sendo o açoite dos fascistas, como Flávio Dino e Ricardo Capelli. Ficaram mau vistos. O governo quer, e insiste, em “virar a página” da História do Golpe. Uma “História” ainda em construção. Passa pano para militares golpistas e promove o “apagamento” de 1964, para grande escândalo dos votantes do PT e do próprio Lula. E vexame do Ministro dos Direitos Humanos. Num inédito ato de interpretação própria da História, o governo decide o que “remoer” ( ou seria “rememorar”?) ou não como ato de memória coletiva da Nação. Não entenderam que o bolsonarismo é o golpismo militar dos nossos dias. Ou Lula está mau assessorado em vários setores – vide móveis do Palácio Alvorada – ou não mais escuta ninguém. Sabendo da moderação de Lula, é mais fácil crer na soberba de “auxiliares” do Presidente – ninguém olhou o depósito do palácio? Isso não é função do Presidente! – para que possamos todxs desejar, antecipadamente, – feliz feliz aniversário, Presidente Lula.

1964 e o Golpe de 8 de Janeiro de 2023

1964 e o Golpe de 8 de Janeiro de 2023

Os inquéritos em curso na Polícia Federal e no STF, terão um desfecho dramático nos próximos dias. Já não se trata mais de um inquérito sobre o 8/01, mas um inquérito sobre o conjunto de atos antidemocráticos de 7 de setembro de 2021, de 30 de outubro de 2022 e de 12 de dezembro de 2022, permeado por mal-feitos do âmbito do Direito Penal. A situação atual aponta para as seguintes podsibilidades 1. A prisão de alguns generais, oficiais de média patente e de pelo menos um almirante em decorrência dos depoimentos do general Freire Gomes, do Brigadeiro Batista e o novo depoimento do tenente Coronel Mauro Cid, o que antecederia, mas não muito, a prisão de Bolsonaro; 2. Os oficiais bolsonaristas estão inflando o número de generais acusados visando criar mal-estar nas Forças e, consequentemente, instabilidade do governo. Ambas as versões não são excludentes. De qualquer forma, o Governo Lula gostaria que nada acontecesse até depois de 31 de março, para não produzir a impressão de “provocação”. Daí a orientação, equivocada, de Lula de não rememorar os 60 anos do Golpe de 1964. O governo federal continua, erradamente, distinguindo o bolsonarismo da tradição golpista dos Militares na História da República. Ao contrário dos especialistas, o núcleo político do governo não reconhece no bolsonarismo uma forma, a atual, do militarismo golpista. Assim como o positivismo, o florianismo, o tenentismo, o anticomunismo (sic) e o anti-trabalhismo golpista de 1964, o bolsonarismo é fruto dos quartéis, tendo como grande diferenciação o fato de ter unificado as diversas Direitas brasileiras via a fascistização. Perde-se assim a oportunidade única, histórica, de revogar a vigência da “Doutrina da Tutela Militar” ainda, e de forma ativa, vigente em setores das FFAAs e das polícias no Brasil.

Viva a Escola Aberta. Crise da Educação e Desigualdades no Brasil

Viva a Escola Aberta. Crise da Educação e Desigualdades no Brasil

É muito confuso e injusto apontar para os movimentos identitários atuais como causa da crise na Educação no Brasil . Mesmo trabalhando com apenas um fator da Desigualdade profunda no Brasil ( fator histórico raça/etnia, derivado da Escravidão e sua permanência social), o identitarismo é um fenômeno recente no país, ainda sem uma avaliação possível em sua completa extensão enquanto fenômeno de Emancipacao. Por outro lado, a “crise da Educação no Brasil é um projeto secular”, como diria Darcy Ribeiro. O Projeto “Novo” Ensino Médio/NEM, hoje entregue com descaso nas mãos das oligarquias no Congresso Nacional – “Mendoncinha” e outros – , é uma confirmação de uma proposta elitista que só valorizará as escolas privadas e confessionais, reproduzindo na Educação as desigualdades de etnia, gênero, sociais e etárias, além da Desigualdade urbano/rural e entre as diversas regiões do Brasil. Precisamos de um projeto nacional, amplo, includente, de qualidade e laico para a Educação brasileira. É uma exigência de justiça social e, também, uma exigência para a qualidade da Democracia no Brasil. É preciso descolonizar e deselitizar a Educação construindo um projeto brasileiro de Educação. De fato devemos: (1) reformar os currículos básicos em direção de ampliação de habilidades, desenvolvimento da sociabilidade e descoberta de vocações; (2) tornar real o tempo integral em todas as escolas, com três refeições diárias, esportes, artes e assistência médica – o Brasil voltou a ser um país do mapa da fome; (3) formar mais e melhor os professores, que devem ser professores de 40 horas numa só escola, e não professores “de matrículas” múltiplas; (4) organizar um Plano de Cargos e Salários digno para os professores, com base no regime de 40 horas e DE , e amparar profissionais de artes, saúde, agronomia, informática, etc…. a serem habilitados como instrutores nas escolas de perfil específico, sob supervisão dos professores designados. Tudo sustentado por municípios e Estados, com subvenção federal onde necessário; (5) transformar as escolas em ambientes convidativos, agradáveis e seguros para alunos , professores e todo o pessoal envolvido no processo educacional; (6) manter as escolas abertas nos feriados e fins de semana para atuação de grupos de teatro , festivais de música, exposições de arte e esportes, protegendo crianças e adolescentes e fomentando talentos e vocações.

Para tudo isso devemos abandonar as ilusões do “Projeto de Sobralização” da Educação no Brasil. Não se trata de melhorar estatísticas. Queremos mudar a vida. Devemos, para isso, fazer avaliações por escolas, não por alunos, nas capacidades básicas de Ler, Escrever e Contar, investir no letramento “social” e informacional, entender o mundo digital como ferramenta geral de conhecimento e de habilitação, não como conteúdo específico. Não podemos aceitar a “ilusão estatística” que aponta a correspondência faixa etária / seriação como bastante e nem tão pouco o número de matrículas e a demanda demográfica. Devemos valorizar o Ensino Médio como fase de aprimoramento de conhecimentos e de primeiros passos da cidadania. Precisamos de avaliações de qualidade e autonomia , fora do universo de múltipla escolha. Nesse contexto, de ênfase em Ler, Escrever e Contar os conteúdos específicos da Educação Básica virão na forma de ferramentas, exercícios, visitas guiadas e laboratórios de criação, com muitos recursos ao áudio-visual.

Ou fazemos já uma “Revolução Educacional” no Brasil ou seremos sempre um país das profundas desigualdades transversais – de tipo social, étnica, de gênero, região e idade. Só a Educação Crítica liberta do ódio, do preconceito e emancipa todxs numa nação próspera e justa.

Viva Darcy Ribeiro! Viva Paulo Freire!

1964: “Meninos, eu vi!”

1964: “Meninos, eu vi!”

Hoje, com a necessária correção ao poeta Gonçalves Dias, a paráfrase ao grande poema romântico “I Juca-Pirama” deveria ser: “Meninas, Meninos, Meninxs, eu vi!” Pouco importa, em verdade, para a História que vou contar: “…meu canto de morte/amigos ouvi!”. Mais uma vez estamos diante de um 31 de março, quase 60 anos depois daquele 31 de março de 1964.

Hoje, longe daquele ano de 1851, do “I Juca-Pirama” do poeta e ainda assim tão perto daquele 1964, faço um canto triste perante a necessidade de não esquecer, jamais apagar, as lutas daqueles que lutaram a justa guerra: “Contudo os olhos d’ignóbil prantos secos estão/ Mudos os lábios não descerram queixas/ Do coração”.  Canto por ofício a morte, os sequestros, a tortura dos bravos da História. Meu canto ergue-se por pura necessidade de dizer “não” ao negacionismo, o revisionismo, ao apagamento. Necessidade imposta pelo charlatanismo, pelo desamor com a História. Durante os longos 21 anos de céu triste e choroso, de cinza e pó, não era preciso um canto de rememoração: isso era tarefa da própria ditadura, que mesmo velha e só pelancas, erguia toldos, palanques e alegorias votivas para glória própria. A ditadura festejava nas ruas a própria natureza do golpe: militar, desde sempre, empresarial na conjuração – como nos editoriais de Eugênio Gudin em O Globo -, civil pelos partidos, associações e coletivos comerciais; mediática, via o “Correio da Manhã” e do próprio O Globo, posto que sem o convencimento e a sedução não se arrastaria as massas que festejariam a morte da Constituição nas ruas de Copacabana. Pois sim, “…Meninos, eu vi!”, Copacabana não me engana, engalanou-se para pedir o Golpe e depois festejou como Réveillon seu desfecho. Triste Copacabana, de fascistas e reacionários! O Golpe foi também ecleseástico. Sim, em desafeto à Democracia, 1964 foi pedido com rosários e velas nas mãos. Todos estavam lá: empresários, latifundiários, comerciantes, padres ultramontanos.  Sim, “ultramontanos” posto que não gostaria de adjetivar 1964 de um “Golpe Religioso”, mas somente “ecleseástico”. De uma hierarquia católica comprometida com as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” – “Liberdade”, palavra corrompida por todos os que planejam a tirania. Nos primeiros meses de 1964 marcharam mulheres, ditas “donas de casa”, de “prendas do lar”, os latifundiários, os empresários da Fiesp – ah, a Fiesp! Claro, nada aconteceria sem a Fiesp. Todos orando com rosários de prata, de ouro, de pérolas nas mãos. As ruas do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte encheram-se de mulheres piedosas, de véu e fitas, Filhas de Maria. Homens sisudos, batinas e pequenas cruzes de ouro na lapela. “ Olha lá vai passando a procissão/Se arrastando que nem cobra ​pelo chão/As pessoas que nela vão passando/Acreditam nas coisa lá do céu!”, advertiria Gil.

Não, nada daquilo era “religioso”, mas era clerical: a visita do Padre irlandês Patrick Peyton (1909-1992), uma “pessoa” da CIA, um investimento do empresário ultraconservador, católico J. Peter Grace, manipulador dos mercados mundiais de açúcar, bebidas e minérios, altamente interessado nos destinos da América Latina. Padre Peyton era uma arma tão valiosa contra a Democracia quanto a Operação Broither Sam, com a qual os Estados Unidos pretendiam garantir a vitória dos golpistas: havia cem toneladas de armas leves e munições e navios. Tinha com 50 unidades a bordo, tripulação e armamento completo, um porta-aviões, seis destróieres, um encouraçado, um navio de transporte de tropas e 25 aviões para transporte de material bélico. Kennedy, Peyton, Grace, e também Konrad Adenauer eram os nomes estrangeiros da conspiração contra a Democracia no Brasil. Todos olhavam para Cuba, a pequena ilha agrária, pobre e católica que, desde 1959, causava pânico em Washington por sua capacidade de mobilização e esperança, exemplo, para muitos, de futuro e, no entanto, para outros horror e pânico. Como a ilha dos cassinos, dos charutos, dos bordéis da máfia, do rum e do açúcar das refinarias americanas fora perdida? Impaciência e revolta. E ainda pior: aqueles revolucionários recebiam armas de Moscou.  Pois é, “…meninos eu vi!” Nos sermões das igrejas se rezava pelo infeliz clero cubano levado ao exílio ou ao “Paredón”. Desde a invenção da “Cuba Libre” nenhuma palavra espanhola parecia tão popular no Brasil com “el paredón!”. Justo? Cruel? Necessário? Abominável – as opiniões eram diversas, mas o debate era comum, popular, fazia pensar. “Esse canto, meninos eu ouvi!”.

Tinha, então, 10 anos, menino morava no bairro operário da Penha, entre a fábrica de couros e os sutiãs “De Millus”. Foi lá, num belo domingo de janeiro, na feira livre, que os asseclas das marchas de Deus reuniam doações e assinaturas contra a “infiltração comunista na Igreja e no estado”. Foram, contudo, vaiados, presenteados com tomates pobres, um par de ovos e por fim expulsos da feira. Em grande parte das periferias urbanas, como no Rio de Janeiro, o PTB era maioria, pobres e operários apoiavam Jango e seu governo, explicitando o apoio de 70% da população ao projeto de Reformas de Base de Goulart, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Abelardo Jurema…. E, nas ruas e nas rádios, exigidas por Leonel Brizola e Francisco Julião, o líder das Ligas Camponesas, que em escolas improvisadas estudavam pelo Método Paulo Freire. O Brasil fervia de ideias, de homens, na urgência do futuro. Antonio Callado, depois, narraria tudo em “Quarup”.  Foi isso, “meninos que eu vi!”.

No entanto as marchas continuavam: a grana vinha de fora, vinha das associações ruralistas, empresariais e dos IPES que a face oculta, militar-empresarial, montava. Todos se lançavam às ruas contra o “temível comunismo” embutido nas Reformas de Base: Reforma Universitária, a extinguir as cátedras e aumentar as vagas, garantir o ensino para todos e matricular aqueles ditos “excedentes”, numa universidade gratuita e laica, o que revoltava as Igrejas, senhoras de um virtual monopólio sobre o Ensino de Qualidade no país. Cada escola, um santo, um coração sangrante, como as chagas do povo com fome. A Reforma Bancária, impedindo o monopólio dos financiamentos e a manipulação extorsiva dos juros contra os pobres e remediados – um Banco Central seria criado só em 31/12/1964 – bastião da continuidade empresarial e bancária, longe da vontade popular. A Reforma Constitucional que deveria democratizar o Estado e garantir mecanismos de supressão da pressão externa e os “Pronunciamentos” militares. A Reforma Administrativa, modernizando o Estado, tornando-o mais popular e democrático, leve e eficiente, afastando de vez o patrimonialismo de classes oligárquicas que usavam cargos e ofícios como prebendas e sinecuras, típicas de uma sociedade colonial. A Reforma Fiscal, com o estabelecimento de um imposto progressivo sobre grandes fortunas, heranças e sucessões, taxando o latifúndio e – pasmem! – as remessas de lucros para o exterior. Corrigia-se a secular injustiça dos impostos sobre o consumo popular. E, claro, a Reforma Agrária, horror dos latifundiários, que deveria corrigir a injustiça de uma Abolição sem indenização dos escravizados, prover milhões de brancos pobres, devolver a terra dos retirados das secas, da fome e do latifúndio. “Não é cova grande/é cova medida/é a terra que querias/ver dividida” dizia o poeta João Cabral de Mello Neto. A Reforma Agrária, libertando milhões de moradores, meeiros e simples ocupantes, além de pagar a dívida histórica, deveria garantir alimentos e matérias-primas baratas, abundantes, para o processo de industrialização sustentada, livre da dependência , como pregava Jango, Darcy e Furtado. O povo apoiava:  “As setas da aflição já se esgotaram/Nem para novo golpe espaço intacto/ Em nossos corpos resta”.

Na verdade 1964 era um ano mais avançado que 2023: ainda nos restam por fazer as reformas que perdemos na longa noite de 31 de março.

“Isso meninos, eu vi!”: em Magé, no fundão da Baía de Guanabara, onde meus avós moravam, os proprietários de terras, amaldiçoando Jango, derrubaram as matas e venderam a madeira para fazer carvão. Outros colocaram bois raros num pasto ralo, só para dizer que suas terras não eram latifúndios aptos para a Reforma Agrária. Muitos atearam fogo às matas: “Esse é meu canto de morte/guerreiros ouvi!”.

Então veio a tragédia: era uma terça-feira, aquele 31 de março de 1964, quando blindados rolaram de Minas Gerais sobre o Rio de Janeiro, de fato, ainda a capital federal. O Governador, do então, Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, se encastelava no Palácio com armas pesadas, tropas do CCC/Comando de Caça aos Comunistas e oficiais da Aeronáutica e da Polícia Militar. De lá, em discursos histéricos, de anticomunismo ensaiado – um comunismo que não amava Jango e que Jango não amava! – instigava as tropas todas, toda a força militar, a aderir ao Golpe em curso. Invadia-se a sede da UNE, os sindicatos, a Universidade: “São rudes, severos, sedentos de glória/já prélios, incitam, cantam a vitória”. Nas rádios hinos e rezas se sucediam, pedindo ao deus deles – mais do que nunca o deus dos exércitos – o sucesso da empreitada golpista. “Meninos, eu juro, eu vi!”. As avenidas e as ruas foram fechadas. A Avenida Brasil, chamada então pelos cariocas de “Variante”, foi fechada pelos militares, que param e inspecionam pessoas, documentos, ideias, apropriando-se das funções de polícia num terrível spoiler do amanhã. No outro extremo da cidade, ferroviários e portuários fechavam a Avenida Francisco Bicalho e Rodrigues Alves, enquanto a euforia tomava Copacabana. Mas, já era tarde: o tão propalado “Esquema sindical-militar” de Jango não conseguiu garantir a legalidade e o governo constitucional. As rádios que resistiram, num momento que a TV ainda era de minorias, foram invadidas. A Rádio Nacional, de tantas glórias, onde o radialista e showman César de Alencar acusava, na hora, colegas de comunistas. Homens como Mário Lago e Paulo Gracindo seriam punidos pela delação do animador de auditórios. “Meninos, eu vi!”.

Meu pai, um apaixonado pelo Rádio, que comprava grandes “discos” de 78 rpm, de Miltinho, Doris Monteiro, Nora Ney e Alaíde Costa, jamais perdoaria César de Alencar. Na “boca pequena”, muito receosa, o showman era tratado pelo nome de um recém lançado detergente líquido: ODD. A sigla serviria, doravante, para colar como piche, naqueles que se prontificavam para a delação: ODD/”O dedo duro!” Um nova realidade que tornaria o cotidiana irrespirável.

Mas, também, os militares foram vítimas de seus colegas de farda: 7.540 militares foram presos, torturados, humilhados, sequestrados e expulsos das Forças Militares. A maioria não sabia sequer o que era comunismo, apenas se declaravam nacionalistas, como Rui Moreira Lima. Lá estavam com a legalidade e a Constituição oficiais patriotas como Sergio Macaco, almirante Cândido Aragão, o Brigadeiro Francisco Teixeira e o General Euryale Zerbini.

Naquele 1 de abril, uma quarta-feira, meu pai não foi trabalhar: saímos de carro para pescar. Todos os órgãos públicos estavam fechados, havia a Lei Marcial. No entanto, ao atravessar a ponte para a Ilha do Governador, postos pescarmos na Pedra da Onça, a Aeronáutica parou o pesado Chevrolet de 1959, examinou os documentos de meu pai e nos impediu de prosseguir. Todos deveriam permanecer em casa. Não haveria pescaria, mexilhões ou cocorocas. Foi isso que eu vi.

Claro, havia os inimigos de sempre: os professores. Sempre eles, comunistas, ateus, subversivos, inimigos da religião, da propriedade e da família. Os delatores eram homens como o catedrático de História Antiga da FnFi, hoje UFRJ, Eremildo Vianna, que organizava listas de colegas a serem presos, cassados, aposentados via os atos institucionais da duvidosa “Revolução” gloriosa. Em tais listas constavam o físico José Leite Lopez, as Historiadoras Eulália Lobo e Maria Yedda Linhares, o maestro José Siqueira, o antropólogo Darcy Ribeiro, o sociólogo Victor Nunes Leal, o historiador Caio Prado e o homem que denunciou a fome no Brasil, Josué de Castro, com sua “Geopolítica da Fome”. A “Inteligência” brasileira era decapitada num festival de besteiras e de brutalidades denunciado por Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta. Estudantes eram expulsos das universidades através do Decreto 477, que impedia qualquer ação política, crítica ou organização dos estudantes. Elio Gaspari, Vladimir Palmeira, Luis Travassos, Maria Augusta, Daniel Aarão Reis serão apenas alguns dos muitos punidos pela Ditadura. Alguns alçarão vôo nas asas da Aeronáutica num último vôo noturno, como Stuart Angel Jones, que deixará uma mãe em busca de um corpo: “Quem é essa mulher/Que canta sempre o mesmo estribilho/Só queria embalar meu filho/ Que mora na escuridão do mar” – na homenagem de Chico Buarque. Outros seriam mortos em praça pública, como o menino vindo do Norte Edson Luís do Nascimento.”Meninos, eu vi!”

Pela primeira vez desobedeci meu pai: não fui a aula naquela manhã e ainda com o uniforme do Pedro II fui à missa na Candelária. Te Deum. Te Deu laudamus Edson! A cavalaria da PM atacou na saída, rompendo o cordão de proteção de padres e freiras. Fumaça e gases invadiram a nave santa. Deu-se a reação: bolas de gude foram lançadas, os cavalos tremiam e o cavaleiro ia ao chão. Nas vielas da Rua do Rosário e Buenos Aires havia cavalos, cassetetes, bombas e fumaça e o uníssono “Abaixo a Ditadura!”. “Seus nomes voam lá na boca das gentes/ Condão de prodígios, de glórias e terror”.

E meu pai? Próximo assessor do Ministro Paulo de Tarso, da Educação, foi sumariamente afastado do serviço público. Uma das coisas que mais me impressionavam e meu pai era o aprumo: os ternos de linho branco, verde clarinho ou azul celeste, com prendedores de gravata. Jamais se recuperaria do baque, mesmo depois de retornado ao seu posto, no fim da ditadura, a vida lhe seria pesada.

Tudo isso, como no poema romântico, Senhores, eu vi – a bem da verdade, eu vivi! Um garoto que ficava acordado, no quarto, ouvindo as vozes graves na sala. Um tio, físico formado na Universidade Patrice Lumumba, diria entre sussurros: “…vivemos uma longa Noite de São Bartolomeu!”. Eu, então, não sabia o que era “uma Noite de São Bartolomeu”, o massacre, as violações e torturas que todavia já vivíamos. No dia seguinte, correndo para a vasta biblioteca do Colégio Pedro II, fui pesquisar “Noite de São Bartolomeu”, 23/24 de agosto de 1572. Sim, seria uma longa noite de medo e opressão, 21 anos pesados como chumbo. Ali no saguão da biblioteca do Pedro II descobri que seria historiador. Com o coração batendo do lado certo do peito. “Confesso – como o poeta morto num outro Golpe [que tudo isso] – eu vivi!”.

Terrorismo, uma guerra do tempo presente

Terrorismo, uma guerra do tempo presente

Ao longo do século XX, e já nestas décadas do século XXI, o fenômeno do Terrorismo, mostrou-se uma preocupação central na Política de Defesa e Segurança das Grande Potências, muitas vezes, como depois de 11/09/2001, nos Estados Unidos e dos ataques múltiplos de 13/11/2015, na França. No entanto, os atos terroristas, ou num sentido mais amplo, a política terrorista enquanto uma sistemática – e aqui descartamos como tal atos de sabotagem no âmbito de guerras formais, como por exemplo a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) ou a Guerra Georgia-Federação Russa  ( ou Guerra da Ossétia do Sul), de 2008, pelo seu caractere de atros “embebed” num conflito reconhecidamente bélico. O ato terrorista, na maioria das avassaladora das vezes, é cometido fora de condições de guerra, ao menos de condições de guerra formais, contra populações civis, de forma inesperado, visando causar o maior dano possível, tanto material – destruição de prédios, vias de comunicação, transporte, armazenagem, monumentos simbólicos – quanto em vidas humanas, algumas vezes dirigidas para alvos militares como quartéis e guarnições.

O elemento central, caraterizador do terrorismo, na sua atualidade, e fora do contexto de uma guerra convencional – quando teríamos dúvida em classificar atos violentos individuais como terroristas –  é que a violência contra alvos específicos de grande impacto – possui um caráter de nítido de ‘propaganda pelo ato “.  Muito mais do que visar destruir, vencer ou desalojar um inimigo muito mais forte e poderoso o ato terrorista possui este nítido caráter “desmoralizador” do inimigo mais poderoso. Na Argélia, durante a “batalha de Argel”, na Irlanda do Norte”, no Vietnã ou no Afeganistão, ao lado das operações militares a estratégia terrorista desempenhou um papel central de desmoralização de um inimigo várias vezes mais poderoso, bastante bem implantado nas suas posições e com um abastecimento infinito. Contudo, após uma larga companha terrorista, mesmo com baixas brutais do lado ativista – vítima de uma larga política de infiltração, delação e de torturas – os “ocupantes” se viram exaustos e desmoralizados, além de expostos aos olhos da opinião pública – incluindo a sua própria crítica interna – como brutais e desumanos, levando a desistência, à com conversações de paz e, por fim, levando a própria retirada do território. Em apenas dois casos, o ocupante “colonial.” teve êxito ao enfrentar um movimento de insurreição com forte uso do terrorismo: na Insurreição Malaia e no Movimento Mau-Mau no Quênia. No entanto, em ambos os casos, entre 1950 e 1960, foi preciso colocar em prática um amplíssimo programa social que, ao final, culminou na independência de ambos os países.

Ao longo dessas décadas, as táticas usadas pelos que praticavam o terrorismo também variaram muito. Walter Laqueur afirma que assim como a motivação, o modo de operação das ações terroristas também mudou muito. O terror podia surgir junto a uma campanha política ou ação guerrilheira,  após o fracasso de um movimento pró-independência, ou pela luta em favor de um novo regime.

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Vítimas de ações Terroristas/Mundo/2019

País %
Afeganistão 25
Iraque 23
Nigéria 8
Somália 8
Síria 6
Paquistão 5
Egito 3
RD Congo 3
RC da África 2
Índia 2
Mundo 18

 

Fonte:  https://fr.statista.com/statistiques/574820/pays-ayant-le-plus-grand-nombre-de-morts-dus-au-terrorisme-dans-le-monde/

 

O “terrorista” busca entende e identificar onde se situa o chamado  “centro de gravidade” – o “Scwherpunkt”, como identifica Clausewitz – do  “inimigo”, regime, forças armadas, empresas,  para dessa forma causar, com poucos recursos, normalmente explosivos, o maior dano possivel.

Ao contrário dos exércitos formais, clássicos, que buscam impor sua vontade, e vencer os conflitos formais, destruindo a panóplia  inimiga – o conjuntos de forças, armas, meios logísticos  – e assim sujeitá-lo à sua vontade –  lembremos que o objetivo da guerra é destruir a vontade de lutar do inimigo via a destruição de seus meios de guerrear -, o terrorista reconhece não possuir tal capacidade. Assim, para ele, o “centro de gravidade clausewitsiano” dos adversários – que varia muito  na  democracias representativas de massa e nas ditaduras  – residiria na coesão e no consenso da opinião pública ou na fachada de força do regime adversário. Assim, a escolha do alvo pelo terrorista assume formas diversas em cada caso, contudo sempre um aspecto altamente “pedagógico” e espetacular. O terrorismo pretende sempre “dizer” algo para “dois públicos”, em mão dupla. O terror possui, desta forma, sua própria racionalidade e um desdobramento pedagógico que configuram uma estratégia,  que chamamos de “mão dupla”: de um lado, “o desdobramento voltado para dentro”, ou seja, para seus aliados e por quem, aparentemente, luta visando causar júbilo, admiração e apoio;  e, por outro “o desdobramento voltada para fora”, que busca amedrontar seus inimigos, causar, para além do dano material, e humano, desconcerto, humilhação e desanimo. É a isso que denominamos de “mística do terror”, a raiz de sua eficácia.

Ou seja, o terrorismo possui a capacidade de escolher o teatro de operação, os meios de luta – embora cada organização tenha na maioria das vezes uma espécie de “assinatura” do tipo de instrumento, forma e alvo de luta utilizado.

A  multiplicidade de meios de destruição/ataques, como os diversos  explosivos e suas fontes podem facilmente identificar o grupo. Assim, é clara a fixação em um só tipo de “ferramenta” para cada grupo: TNT, roubado de pedreiras; bojões de gás de fácil acesso; gasolina; fabricação própria via um “engenheiro” do grupo; aquisição de componentes em lojas de defensivos agrícolas; roubo em indústrias. É pouco comum uma combinação de meios numa mesma organização. Mas, no entanto, é possível.  Esta é,  a novidade do Daesh/Isis, em suas conclamações “matem infiéis, hereges, cruzados e judeus” com quaisquer meios ao seus alcances. Neste caso do Daesh veremos o uso de bombas, sequestro de aviões, arma branca e até atropelamento por carros e caminhões, tornando muito mais difícil a prevenção e captura dos componentes das redes do Daesh/Isis.

Ao escolher um alvo – um ponto turístico mundialmente famoso, um símbolo de poder econômico, um chefe de Estado, um alvo militar, um centro de população civil aparentemente seguro  – o terror fala, assim, ,simultaneamente,  as suas duas linguagens: para os “oprimidos” desmoraliza o opressor e, explicita seu próprio poder de “bater” onde e quando escolher e, para o “opressor” sua ubiquidade e potência. Desta forma, num corolário síntese das duas falas, produz um efeito à mais: a capacidade de atrair recursos na forma de finanças e de alistamento humano, já que se mostrou eficaz e desafiador de uma “ordem injusta”. Foi assim, que o IRA, o “primeiro” Hamas ou Califado Islâmico, por exemplo, na sua escalada de ataques e, de negação das vias de negociação pacíficas. Desde o final do século XIX e começo do século XX o caráter “pedagógico” do Terrorismo foi cultivado como um elemento central de mobilização popular. Grupos populistas russos – os narodinics – e anarquistas italianos, sérvios e americanos acreditavam claramente na sua eficácia, em oposição ao trabalho “burocrático” dos partidos social-democracia (socialistas/marxistas). Lenin, depois da Revolução Russa de 1905, faz uma distinção clara sobre o Terrorismo antes e depois da Revolução: considera o Terrorismo narodinic um sacrifício inútil, destruidor e romântico, enquanto a mobilização, quanto dirigida contra a autocracia czarista, uma forma de organização e resistência.

Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o Terrorismo assume um papel central como forma de luta para os grupos em busca da descolonização dos territórios sob ocupação metropolitana, em especial nos casos em que as formas negociáveis de “descolonização” falharam. Depois da grande onde descolonizadora de 1945-1974, quando ainda resistiam ocupações metropolitanas, o terrorismo assumiu um papel central na luta anticolonial, constituindo-se numa “nova onda” de terrorismo, muitas vezes com apoio de Estados, sob inspiração anticolonial ( Egito e Tunísia, no caso dos novos países árabes, por exemplo, ou Tanzânia ou  Cuba no caso de Moçambique e Angola ). Também o sequestro de diplomatas e de aviões – até mesmo de grandes navios de luxo – marcaram o período para a denúncia de ditaduras e de torturas, como em países como o Brasil e a Argentina. Com o fim dos últimos impérios coloniais ( Portugal e a negociação de novos status, França e Grã-Bretanha ) e a democratização na América Latina, tais movimentos diminuíram ou mesmo cessaram nestes países.

No entanto, desde 1979, com a ocupação do Afeganistão pelos soviéticos surge uma ampla rede de sustentação do terrorismo mujahidin no Afeganistão,  o que apontará para uma “nova onda” de terrorismo global.

 

Período  a partir de 1993: surge uma nova categoria de terrorismo, oriundo  da reorganização dos diversos movimentos mujjahidin ( os chamados, então, de  “afegãos” ), que desmobilizados da luta contra os russos ( 1979-1989 ) voltam-se para os “cruzados, os pecadores e os sionistas”

 

 

Sem território;

  • Sem população;
  • Sem Infraestrutura econômica;
  • Com armas;
  • Com Inteligência;
  • Com liquidez financeira;

Capaz de declarar guerra

 

Para efeito de comparação poderíamos trazer a atuação das grandes organizações narcotraficantes, em especial na América do Sul, entre os anos de 1980 e 2000:

 

  • Ramificações Internacionais;
  • Imensa liquidez;
  • Contatos com outros setores do crime organizado;
  • Substituição do Estado.

 

 

Na sua atual configuração, a soma da abundância do mercado de armas, a fragilidade das fronteiras territoriais – fronteiras são linhas imaginárias no cyberspace, o que faz na realidade todos os países terem fronteiras comuns  e a possibilidade de constituição de núcleos, “retiros” ou “caches” em “estados arruinados”  – “rogue state”  ou estados párias -, que venham a servir de pontos de abrigado  – chamados de santuários ou cachês – para as organizações terroristas ampliaram imensamente o potencial do terrorismo depois do fim da Guerra Fria em 1989-1991.

Constituíram-se, na base das novas tecnologias, organizações muito diferentes das originarias “ligas de carbonários” do ´século XIX italiano, ou das organizações narodinics/populistas russos ou mesmo dos “lobos solitários” anarquistas do início do século XX e os terroristas anticapitalistas americanos do fim do século XX. As tecnologias informacionais constituíram a possibilidade de uma organização nova, de tipo reticular, ao contrário das organizações anteriores de tipo piramidal. Nas organizações carbonárias ou narodinics/populistas a organização piramidal, altamente hierárquica, que iria se desdobrar na organização marxista/leninista dos partidos de tipo bolchevique e nas organizações terroristas marxistas de Extrema Esquerda, como Rote Arme ou as Brigadas Vermelhas, a destruição, morte ou captura de membros do Comitê Central, poderia desarticular por bom tempo – por vezes de forma definitiva – a organização clandestina.  Nas novas organizações reticulares, horizontais, de forte base informacional, com clara autonomia entre o setor operacional – em alguns casos dispensável, ou mesmo “kamikaze”, o setor financeiro e o estratégico, a capacidade de resistir aos golpes armados do adversário é muito maior e contínuo.

 

ORGANIZAÇÃO DO IRA:

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Conselho do Exército ( 7 membros)

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Executivo ( 12 membros)

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Convenção do Exército Republicano Irlandês

( 200 membros)

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Tal estrutura “piramidal” do IRA tornava praticamente impossível para a organização uma reunião durante o período de maior ação do grupo em face da repressão britânica, tendo seus membros realizados reuniões “plenas” apenas em 1970, 1986 e 1996, embora a “Constituição Republicana” estabelecesse reuniões bianuais.

 

Para uma caracterização completa do que denominamos de Estado (terrorista) em Rede, em sua versão “Terrorista” – posto que outras formas de redes, como o crime organizado,  o narcotráfico também se organizam como um Estado em Rede – podemos destacar os seguintes pontos:

 

  • 1. Trata-se de ume entidade sem território;
  • 2. Igualmente  sem população;
  • 3. Da mesma forma sem Infraestrutura econômica;
  • 4. No entanto, plenamente portador de armas;
  • 5 , plenamente dotado de Inteligência, Humana e Cibernética;
  • 6. Com ampla liquidez financeira;
  • 7. Não se limita a um único teatro de operações;
  • 8. Utiliza-se de “franquias” de várias partes do mundo;
  • 9. Utiliza meios informacionais para divulgar sua “causa”;
  • 10. Alista a maioria dos seus membros através da Internet.
  1. Capaz de declarar guerra e negociar a Paz, bem como manter representações em diversos países “amigos”.

 

Tais caraterísticas tornam, nos nossos dias,  a organização terrorista um temível adversário. Ao mesmo tempo em que “bate” duramente em sociedade dotadas de Estados formais organizados, bastante suscetíveis à opinião pública – e como vemos esse é o “Scwherpunkt” das sociedades organizadas em frente ao terrorismo – a própria organização terrorista não possui, como nos casos de guerras convencionais ou simétricas, os pontos correspondentes para o contra-ataque. A miúde a reação do Estado atingido causa mais mal-estar e mobiliza a população adversária contra a potência atacante, como no caso da França na Guerra da Argélia, entre 1954 e 1962, ou dos Estados Unidos, no Afeganistão, entre 2001 e 2021. Até ao final do conflito do Afeganistão, primeiro com o talibã, depois quando estes passam de “Jamaa´t al Islam” para a condição de “Al Dawla al´Islam”, ou seja de organização islâmica para um Estado Islâmico – no caso um emirado, no início de setembro de 2021 – as ações retaliadoras norte-americana, então contra o Daesh/ISIS – em virtude do mega atentado terrorista/suicida do Daesh no aeroporto de Cabul de 26/08/2021,  atingiu famílias de civis, causando grande dano e mal-estar, para os próprios Estados Unidos.

A mobilidade-reticularidade do Estado em Rede, como o Daesh no caso, mas também, a Al Qaeda, a Frente al Nusra, e outras “al jama´at” originam uma imensa dificuldade para aplicação de golpes sucedâneas a uma “batalha definitiva” de tipo clausewitiziano.

A questão do financiamento e do abastecimento, em armas, homens e logística, dos movimentos/entidades terroristas, geraram novos conflitos, por vezes internacionalizando um conflito doméstico. Dois casos são clássicos: Argélia e Vietnã.

No Caso do Vietnã, quando os Estados Unidos ao tentarem cerrar o   abastecimento da Frente de Libertação Nacional/FLN (1955-1975) acabaram se envolvendo num guerra “encoberta” no Laos e Camboja em 1970. No caso da Argélia, tornou-se um símbolo da ação terrorista no contexto de um conflito maior, de uma Guerra de Libertação Nacional (1954-1962).

A Batalha de Argel, entre 1956 e1957, entre a FLN argelina, sob a forma de “Reseau de Bombes”,  e as Forças Armadas francesas – paraquedistas e polícia – foi um ponto de radicalização do enfrentamento de nacionalistas e colonistas, pondo fim a toda negociação política ao destino da antiga Argélia francesa.  A França coloca em prática uma política oficial de “contra-revolução”, criada e defendida pelo Coronel Charles Lacheroy, que terá, mais tarde, nos anos de 1960/1970, forte impacto nas ditaduras latino-americanas. A repressão francesa institui o sequestro, a tortura e o desaparecimento dos nacionalistas como política de Estado na Argélia. A FLN é destruída em Argel, constituindo-se em uma ampla vitória militar francesa.       O             « Reseau de Bombes” produz  314 mortes e 917 feridos em 751 atentados durante o auge da Batalha.

O manual antiterrorista do comandante francês Roger Trinquier, que rapidamente alcança fama mundial como teórico da guerra contrarrevolucionária e subversiva, servirá de base – malgrado as críticas do defensores dos Direitos Civis – para a contra Insurgência na América Latina e Sudeste Asiático.  Assim, no âmbito de uma  “Guerra Moderna” no Ocidente, conforme o texto de 1961, vários cursos de Estado-Maior nos Estados Unidos adotarão tal versão, desenvolvida na Argélia  – para lidar com o terrorismo – , a noção de “contra insurgência” passará a ter pleno nas guerras do Iraque e do Afeganistão .

No entanto, historicamente, a ação terrorista na Batalha de Argel tornará a presença francesa no país impossível e a Argélia será independente em 1962. A aparente vitória militar do ocupante colonial francês não se traduziria numa vitória política, como no caso da Ofensiva do Tet, no Vietnã,  em 1968, ou recentemente na impossível permanência dos Estados Unidos no Afeganistão.

A outra forma de lidar com a questão é o uso da Inteligência financeira e a busca das fontes de financiamento das organizações terroristas – no caso específico de grupos “domésticos” ou instalados “indoor”, apresenta uma outra série de dificuldades, como poderemos ver no caso do IRA e Daesh/ISIS.

Desde que a crise étnico/confessional se agravou na Irlanda/Ulster, em 1969, o IRA ( Exército Republicano Irlandês ou Óglaigh na hÉireann) iniciou um processo de reação armada contra a violência policial protestante e das guardas monarquistas. Tais ações contaram com forte simpatia e apoio da população irlandesa dos Estados Unidos, algo em torno de 11,2% do total da população americana, ou seja, 34.5 milhões de americanos ( enquanto da Irlanda possui apenas cerca de 5 milhões de habitantes). O controle do fluxo de recursos e pessoas era praticamente impossível e o livre comercio de armas nos Estados Unidos – com a participação da Líbia – manteve o IRA permanentemente atuante[1]. Além disso, recorreram aos assaltos a

bancos e trens pagadores, além de uma ampla rede empresas de fachada para organizar as finanças da organização.

No caso do Daesh, o apoio de petromonarquia do Golfo Pérsico, que assim compram sua própria segurança, a venda de antiguidades – só aparentemente destruídas pelo Daesh – e a venda de petróleo roubado dos poços sírios e iraquianos, e contrabandeado pela Turquia – membro da OTAN! -, além da renda gerada por sequestros e extorsões, mantém o Daesh plenamente ativo.

A multiplicidade de formas de financiamento, ao contrária de organizações anteriores a Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria, muito dependentes de uma potência estrangeira – como a “Mão Negra” na Sérvia, ou as organizações pan-eslavistas no Entreguerras, 1919-1939, as organizações pós-Guerra Fria, utilizando-se de formas variadas de finanças, desde o narcotráfico – Califado Islâmico, com o ópio ou as FARC com a cocaína, até a venda de antiguidades e de petróleo como o Daesh, se autonomizam em relação às Grandes Potências e não ficam na dependência da “realpolitik” ou do jogo de poder sempre em movimento das relações internacionais.

Essa “liberdade estratégica” do terrorismo atual permite que tais organizações desempenhem, de fato, um papel central nas relações internacionais e acabem tendo suas reivindicações sendo reconhecidas e obrigando as grandes potências a negociações.

Para o terrorista não há um alvo estratégico único ou central a ser destruído, desmobilizando o inimigo e obrigando-o a negociar em posição de desvantagem – esta é a estratégia da guerra clássica, e nem mesmo aplicada na guerra atômica global e outras formas híbridas da guerra contemporânea. Trata-se, bem mais, no caso do terrorismo de massas contemporâneo, de romper o “consenso da opinião pública adversária” e atingir assim o centro de gravidade do inimigo: a coesão entre a população e o governo, o consenso necessário para a manutenção da luta, a confiança e a credibilidade das forças da ordem e, com isso, do próprio Estado. Desta forma, salta aos olhos as diferenças cabais, por exemplo, entre o ataque japonês às bases norte-americanas em Pearl Harbour, em 7 de dezembro de 1941, e os ataques às Torres Gêmeas, ao Pentágono e possivelmente à Casa Branca ou o Capitólio, em 11 de setembro de 2001;  aos restaurantes e discotecas de Paris em 13 de novembro de 2015. No primeiro caso, havia um claro estudo, pesquisa e conclusão do Estado Maior Nipônico que um forte ataque destruindo a maior parte da força naval norte-americana no Oceano Pacífico, embora não destruísse o poder americano, levaria o país a negociar com o Império Japonês em condições de inferioridade e, talvez, pedir uma acordo de paz. Há uma racionalidade e planejamento que reconhecem na frota e nas bases do Havaí como o centro de gravidade dos Estados Unidos numa região vital ao Japão – o Pacífico. Mesmo que o golpe possa ter falhado, como aliás altos oficiais japoneses admitiram desde logo, havia um planejamento visando levar o adversário às negociações em condições de inferioridade. No caso dos ataques de Nova York e Paris (como Madrid, Londres, Otawa etc.) trata-se, ao contrário, de esgotar a força e a vontade de lutar da população, lançando-as em uma vaga de isolacionismo e lassidão, retrocedendo sobre si mesma e optando por governos isolacionista.

 

Ou seja, a vontade de lutar numa terra distante, contra uma cultura estranha, que, entretanto, é capaz o suficiente para atingi-los no centro de suas cidades, como Paris, em subúrbios e pequenas cidades da Califórnia, nas ruas de Copenhagen e Istambul ou no Parlamento canadense cria confusão e instabilidade interna. Tal flexibilidade e capacidade de “desdobramento de força” impõe uma exigência política de união, maiores gastos e limitação de direitos ao adversário, que pode, e tem, influindo diretamente nas eleições, como nos Estados Unidos e na Europa. Uma campanha sistemática e continuada de terror poderia levar tais democracias, impulsionadas por uma população amedrontada e exausta de uma guerra “falsa” – “le drolê de guerre”, mas com vítimas civis em condições de grande exposição como na Estados Unidos, Espanha e França – a uma reação isolacionista, abandonando ao seu destino áreas consideradas “selvagens” e periféricas[2].

Entendemos, desta forma, que o terrorismo, com sua multiplicidade de alvos e diversidade de locais de ataque, não é um fenômeno irracional, “doentio” ou uma forma particular de culto ao “Princípio de Morte” – embora este esteja presente, explicações apresentadas sob o impacto e a emoção do horror terrorista após cada atentado. Para além de todas as possíveis explicações psicologizantes – com validade, sem dúvida para explicar a adesão/alistamento/radicalização de indivíduos a uma entidade terrorista e, chegando ao limite da ação kamikaze (o martírio em nome do Profeta, da pátria ocupada, do futuro melhor etc.) – não nos serve, contudo, como explicação para a ampla campanha de terror praticada, sua multiplicidade e simultaneidade de alvos em uma longa duração.

 

O terror é, acima de tudo, oportunista, no sentido bélico que Sun Tzu daria ao fenômeno. Um recurso fundamental é aproveitar-se da possível cobertura mediática já previamente estabelecida no local escolhido para o evento – jogos internacionais, festas, áreas turísticas – ou mesmo a garantia da presença de alguns poucos turistas e seus múltiplos equipamentos de som e imagem, já são suficientes para garantir a difusão, em escala global, do caráter “espetacular” do ato terrorista.  E escolher um ponto “mole”, roto, não encouraçado, na muralha de defesa do adversário para bater, com o menor dispêndio possível e auferindo o maior impacto desejado. Na maioria das vezes são atentados duplos ou mesmo múltiplos, para que se possa garantir sua filmagem “au chaud”, sem risco de perda do momento, e essencialmente, porque policiais, paramédicos, médicos, guardas civis e mesmo civis se amontoam para os primeiros socorros, potencializando o segundo ataque. Outras vezes são ataques múltiplos, esparsos, mas simultâneos no tempo, tornando as forças da ordem, em plena ação, desamparadas, como verdadeiro alvo.

Da mesma forma, as vagas de migrantes (1 milhão de refugiados na Europa em 2015,   mais de cem mil  2016 e maré de 1.300 mil sírios que Angela Merkel aceitou em 2017, mesmo  com a reprodução crescente de cenas dolorosas de “boat people” abandonado no Mar Mediterraneo) que chegam à Europa decorrente das lutas na África do Magreb e do Sahel e da crise no Oriente Médio e da destruição do “Regime dique” de Muamar Kadhafi na Líbia,  satura as condições humanitárias e econômicos europeias e fortalece os partidos de Extrema-Direita e todas as formas de desconfiança frente ao “estrangeiro”. A xenofobia, sob a forma de uma cruel “Islamfobia” cresce em todo o eleitorado europeu, dando esperanças aos neofascismos na França, Áustria, Alemanha ou, mesmo tendo alimentado uma boa parcela dos argumentos pro-“Brexit”, em 2017. Tal processo, ainda em curso, já aponta suas consequências com a formação de um novo eixo de poder no Indo-Pacífico entre EUA+Austrália+Reino Unido que resultará na chamada “Otan do Pacífica”, a AUKUS, ainda em setembro de 2021, causando um forte desequilíbrio nos pactos de segurança na Europa, em detrimento da França, e no Indo-Pacífico visando o “cerco” da China Popular.

migração massiva, em uma época de crise de econômica, marasmo e desemprego, surge como uma ameaça ao cidadão médio.  Além disso, a presença de jihadistas ou da “radicalização” de alguns emigrados, potencializa a desconfiança em relação ao “outro” próximo – muitas vezes dotado da mesma nacionalidade já por duas gerações -, mas diferente na cor, no cabelo, na religião. Tal medo acentua a rejeição popular massiva do “outro” e impulsiona o ímpeto de construir, frente à invasão “bárbara”, a mítica “Fortaleza Europa”.

Os atentados terroristas de Nova York 2001 e Paris 2015 assemelham-se mais à lógica contida na “Ofensiva do Tet” vietnamita em 30 de janeiro de 1968 (incluindo seu caráter kamikaze), durante a Guerra do Vietnã, do que a racionalidade e engenhosidade japonesa de 1941: buscavam a derrota política do adversário e não uma vitória militar decisiva, uma batalha que desse ao vencedor condições de negociação em superioridade. Para o terrorismo não há uma batalha decisiva, somente uma rotina desgastante e cruel de ações contínuas para o esgotamento do adversário, para fazê-lo desistir. Neste caso um cenário comparativo, mais próximo, é tipicamente derivado da Guerra de Libertação da Argélia, onde a FLN não possuía meios reais de impingir uma derrota às forças francesas, porém causava um desgaste, inclusive internacional, à própria França. Mas, onde o terrorismo (e contraterrorismo de Estado) tornar-se-iam uma ferramenta constante na guerra, resultando numa profunda divisão da sociedade. A mesma situação repetir-se-ia na Irlanda do Norte com o IRA. Nestes casos, nem mesmo o sucesso do ato terrorista é fundamental. Somente sua tentativa terrorista, com a interrupção do fluxo normal da vida cotidiana, os avisos quase diários de possibilidade bombas e tropas desdobradas, já são condições desmoralizantes para o adversário estatal. Além, é claro, do custo financeiro das medidas de segurança. Contudo, e isso é capital, em ambos os casos – o terror e a guerra -, há um planejamento, racional e sistêmico.  Buscam-se resultados políticos que caracterizaram o “ir além da política tradicional” ou “fazer a política por outros meios”, conforme ensina Clausewitz[3]. Mas, diferentemente da FLN argelina ou do IRA na Irlanda do Norte, os atos terroristas no caso  do Daesh não desembocam numa possibilidade de retomada do trinômio clausewitziano: política+guerra=negociações (em superioridade), ou seja, a retomada da política. A pauta do Daesh, a criação de uma vasta entidade estatal de caráter fundamentalista sobre o território de Estados-Nação pré-existentes (Síria, Iraque, Líbano, Líbia) ou em fase de gestação (um possível Curdistão), além da libertação de “Lugares Santos” em vários outros estados impede, de fato, a negociação. O ataque ao aeroporto de Cabul, em 20121, logo após a vitória do Talibã explicita isso: americanos e talibãs são alvos iguais para esta organização.

Da mesma forma, a estratégia do Daesh difere largamente do modus operandi da Al-Qaeda. Enquanto a Al-Qaeda busca atos espetaculares de largo impacto – o que o Daesh também faz -, com longo planejamento e meios financeiros custosos, o Daesh não desdenha, muito ao contrário, os pequenos ataques, com uma ou duas vítimas. A degola de um padre na França, o esfaqueamento de um policial em Londres, o ataque a um museu ou uma sinagoga, são alvos legítimos e incentivados pelo Daesh. Assim, em especial na Europa, corre-se o risco de transformar  num processo de “israelização” da vida cotidiana, com uma securitização duvidosa das instituições e dos espaços públicos.

O Daesh não luta para vencer os seus adversários e negociar uma paz em melhores condições. Sua luta é pelo extermínio do adversário.  Neste sentido começamos a distinguir entre “segurança” e “securitização”. Não há como garantir em grandes espaços abertos a segurança de todas as pessoas. Por exemplo, em metros, parques de diversão, áreas de embarque antes do check-in, rodoviárias, universidades etc. Tais áreas são no máximo “securitizadas” com a presença de guardas de segurança e o treinamento de funcionários e avisos sobre “pacotes”, lixeiras e estranhos. Enquanto isso, serão “seguros” locais que passem por revistas e tenham detectores de metais e revistas, como embarques de aeronaves, áreas restritas de parlamentos, aeroportos etc. Assim, implantar, por exemplo, detector de metais ou revistas em metro ou supermercados é impraticável, seja pelo fluxo de pessoas, seja pelo custo. Assim, teremos de aceitar que são áreas “securitizados”, ao máximo, porém não são áreas completamente seguras.

Desta forma, a segurança deve ser feita de forma prévia, via Inteligência, de forma a não permitir a organização do grupo terrorista, evitando a necessidade da ação “just in time”.

 

A questão do “Lobo solitário”:

Os “Lobos Solitários” não fazem o juramento, não aceitam comandos ou reconhecem uma autoridade e tomam iniciativas sem nenhum incentivo externo necessário. Não estão perdidos em busca de um “lugar”, bem ao contrário, acreditam fortemente que sabem seu “lugar” na sociedade que, no mais das vezes, combatem.  São “lobos solitários” clássicos o terrorista Theodor Kaczynski (1942), um gênio matemático, formado na Universidade de Harvard e denominado de “Unabomber”, que agiu nos anos de 1990. Ou o responsável pelas cartas com antraz logo após o 11 de setembro de 2001 pelo também cientista Edward Bruce Ivins ou, mais próximo de nós, aparenta ser o caso do jovem Wellington Menezes de Oliveira, na Escola Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, em 2011, responsável pela morte de doze adolescentes.

Contudo, os casos clássicos de “Lobos Solitários” são de Timothy McVeigh (1968-2001), que explodiu o prédio da administração federal de Oklahoma, em 1995 (168 mortes, incluindo dezenas de crianças de uma creche), simpatizante de uma organização neonazista norte-americana, e Anders Breivik (nascido em 1975), que matou 77 pessoas, em 2011, na Noruega. Breivik também é um neonazista e afirmou, incluindo saudações hitleristas no tribunal quando de seu julgamento, que lutava por uma Europa branca e contra a islamização do continente. Por sinal o tiroteio organizado por David S., um adolescente de origem teuto-iraniana, num MacDonald de um centro comercial de Munique, em 22 de julho de 2016, se deu exatamente no dia do aniversário do ataque de Breivik, de quem ele colecionava material de jornal e livros. Assim, tanto McVeigh, Breivik e o adolescente David S. agiram sozinhos, com uma clara premeditação, sigilo e cuidados, enquanto Omar, Bouhlel e o jovem Ryiad, entre outros, fizeram questão de se dizer “combatentes” do Daesh, prestaram o juramento e atenderam ao mandamento: “…façam o que for o melhor! ” No caso de Kaczynski e Ivins é interessante notar que eram militâncias individuais, anti-civilização de consumo e antiguerra, sem manter quaisquer tipos de ligações, organizações ou discípulos – sempre contrários a qualquer forma de “sistema” -, enquanto McVeigh, Breivik e o jovem David S. pertencem a ala de extrema-direita da topológica política moderna. Estes são os “lobos solitários”. Compõe uma cena de atos “desconectados”, sem um incentivo externo, comando ou promessa de redenção. Da mesma forma, nenhum deles se apresenta como mártir dispostos a morrer: McVeigh empreendeu uma longa fuga, que fora previamente planejada; Breivik organizou também um recuo após ataque e sabia claramente que não haveria pena de morte e o jovem David S. remete a uma situação de “mass killer” diferenciada, de tipo repetitivo nas escolas americanas e se aproximaria da situação do jovem Wellington, da Escola Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro.

A “mouvance” terrorista global do Daesh comporta também uma situação específica. Trata-se da situação de “latência” – como o foram os Irmãos Tsarnaev, em Boston em 2013- , são como as “células adormecidas” como em San Bernadino e cada vez mais se encaixa no perfil de Bouhlel  – já estão no local de ação ou em suas proximidades –  esperam um comando ou uma ordem direta, que vem através do sítio eletrônico do ISIS, em especial a AMAQNews ou mesmo através de contatos diretos, via viagens aos seus países ancestrais (Arábia, Marrocos, Chechênia por exemplo) ou mesmo via a peregrinação do Hajj. Não são escolhidos, acolhem o chamado do Daesh “ bateremos no coração das cidades dos cruzados” e buscam agir da “melhor forma possível”. Ao contrário do que afirma a polícia e demais autoridades, e a imprensa repete apoiada pela contrainformação de familiares, não se trata de uma rápida e inesperada “radicalização”, quase um ato de loucura. Percebemos, com as novas investigações que apontam para sinais, indícios ou sintomas que veem se desenvolvendo desde longo tempo. Mais uma vez, Bouhlel, os irmãos Kuachi, Coulibaly, os Tsarnaev e Omar Seddiqq, bem como os “primos” e amigos em torno de Adel Kermiche – o degolador da Normandia – planejaram, se conectaram, receberam o aceite como “combatentes” e se puseram em marcha.

Os inquéritos em curso na França sobre o assassinato do Padre Jacques Hamel, na sua Igreja na Normandia, por Adel Kermiche e um cumplice dão um exemplo bastante bom da inadequação da denominação de “lobo solitário”. Não só o jovem Adel Kermiche havia feito ao menos duas viagens para a Síria, onde entrou em contato com o Daesh, como ainda recebeu apoio e fez contatos em vários pontos da França e no exterior, na Áustria mais especificamente, explicitando uma rede bastante ampla de planejamento. Assim, o ataque “solitário” de Kermiche se mostra, cada vez mais, um dos casos de “faça o que puder e da melhor forma ao seu alcance”, dentro da estratégia de atos isolados, cruéis e constantes visando espalhar o medo, a discórdia e ódio na “Zona Cinza” da sociedade francesa. Havia ali uma estratégia, nada que aponto para um ato solitário ou um surto momentâneo de loucura[4].

Nada aponta para um repentino rompimento das regras sociais, um lapso momentâneo da razão ou uma síndrome dissociativa. Devemos lembrar ainda, que o continuo a agir violento prévio de tais perpetradores, pode estar, também, associado ao uso de drogas, cada vez mais comum nos combatentes do “califado islâmico”.

Nestes casos há uma conexão e esse conexão está diretamente vinculados aos episódios maiores da “guerra convencional” na frente de operações, como no caso a luta contra os Daesh e engloba uma estratégia global de guerra do Daesh.

E naquela semana dos ataques em Paris, com o Daesh sendo batido em Alepo, Raqqah e Mossul, deu-se a chamada para o ataque aos Estados Unidos e seus aliados.  Na semana da matança em Orlando o acompanhamento no AMAQ News avisava:  “. Ações nos Estados Unidos e seus aliados”, como uma senha. O Daesh não define, assim, alvos ou dia/local, apenas diz “façam” o que está ao alcance de vocês e confiem em Allah. Muito possivelmente não precisa de contato ou pertença direta, basta o “juramento” de submissão. Embora tenhamos que registrar que o odiador de Orlando fez o “Hajj” à Meca e ficado lá algum tempo, o que pode muito bem ter sido o tempo para os contatos. Mas, verdadeiramente não é preciso, a Internet, através dos sítios mantidos pelo Daesh, cuida disso[5].

Temos que reconhecer, desta forma, que o “Califado islâmico” recobre dois espaços simultâneos, agindo de forma global em ambas: de um lado, a passagem da condição de uma “organização islâmica” (“al-Jama´at”) para um Estado de tipo westfaliano (“al-Dawla”), territorial e dotado de meios modernos – sendo hoje batido fortemente pela coalização ocidental e pela frente russo-xiita. Por outro lado, o Daesh se expande em todo o mundo como uma rede global, controlada de forma frouxa, com uma grande variedade de fluxos materiais e imateriais. No primeiro caso, o experimento do Califado como Estado westfaliano, pode ser destruído pelas forças coligadas antiterroristas – o que ainda não aconteceu…  Contudo, a rede terrorista global não precisa, de forma alguma, de uma base territorial para agir e continuar sua luta terrorista.

Vemos, desta forma, uma ampla rede, frouxa, fragmentada, mas diretamente conectada a um forte sistema de comunicações do Daesh – com cerca de mil homens empregados, com recursos financeiros bastante adequados – utilizando-se de equipamento de ponto e de meios eletrônicos eficientes e com uma linguagem audiovisual muito próxima dos vídeos-games (de fácil conexão com os jovens adolescentes) suportando toda uma rede de predicadores, alistadores, suporte (“pessoal de escritório”), finanças, apoio e observação “militar” até os terroristas suicidas.

Em suma, o terrorismo do Daesh é uma rede de novo tipo, capilar, não hierárquica e não linear para a qual os serviços de inteligência do Ocidente ainda não dispõem de uma resposta eficaz.

O perfil do “odiador” de Orlando era racista, misógino, falocrata e agressivo conforme emerge de depoimentos e entrevistas realizados pelo FBI e, como vemos nas muitas fotos (“selfies”) apreendidas, profundamente narcisista, o que nos diz muito da dificuldade de falar com “outro” (e, ao mesmo tempo, emula muito a “firmeza”, “Mateen”, e vaidade exposta no calor da hora pelo pai e sua capacidade de exercitar a “taqiya”). Este, talvez, seja uma traço central entre todos estes perpetradores: a incapacidade de investimento afetivo no outro, com um forte déficit de relacionamentos. A personalidade narcísica de Omar Mateen ou Bouhlel, suas relações múltiplas e falhadas, se expressa claramente na “necessidade”, verdadeira hiância – este espaço vazio entre dois parênteses exigindo seu preenchimento – que retorna sob a forma de culpabilização do outro, do diferente – infiel, hipócrita, apóstata, gay, “cruzado” ou “sionista” – por seu próprio fracasso.

No caso de Omar, havia, no seu passado recente, como vimos, relacionamentos e “amizades” com “drag queens” e gays, incluindo a ida a espetáculos em locais LBGT e saídas para beber (álcool, um muçulmano praticante!), na própria boate “Pulse”. Depois que começa a frequentar a Mesquita de Port. Saint-Lucie, e muda o nome emulando o pai, em 2006 (ele se torna “forte”, “firme”, ou “Mateen”, como o pai) passa a odiar a cena gay de forma explicita, embora não cessem as visitas noturnas a “Pulse”, evidenciando os diversos níveis que compõe a “personalidade autoritária”, como apresentada por Adorno. E na sua capacidade de conter, revelar, negar, inclusive a si mesmo, o que cada um pode ou não aceitar, pensar e sentir abrindo um vasto leque de reações “potenciais”, já residentes na consciência de um indivíduo ou, nas palavras de Adorno “… precisamos reconhecer que o indivíduo pode ter pensamentos “secretos”, que ele não revelará a ninguém, em nenhuma circunstância, se puder evitar. Ele pode ter ideias que não admite nem para si mesmo “. A explicitação de seu horror homofóbico extremado – o beijo gay “público” – emerge como uma forma de perdão e de remissão de seu passado “takfir”. Muito possivelmente, este arrependimento se dá através de uma confissão-conversão feita à esposa, muçulmana praticante, que chega a acompanhá-lo numa visita à boate “Pulse” (e na compra de armas e munições que serão utilizadas na ação terrorista). E nesse processo o pai desempenha um papel central, em face da primeira esposa (que  enfrenta e denúncia ao pai) e ao próprio pai, muito possivelmente identificado pela primeira esposa como fonte dos distúrbios de Omar, ela mesmo vítima de agressões contínuas. Já a segunda esposa, aliada ao pai, emerge como complementação da vontade do pai em trazê-lo de volta ao mundo de Deus. O perfil bate diretamente com os atacantes do “Charlie Hebdo”, de Paris e de Bruxelas: ódio, pequenos delitos, álcool (e drogas), uma “vida oculta” em pecado (lembremos o caráter dos sítios de pedofilia dos Irmãos Kuachi) e, então, são atraídos para um centro islâmico para a “cura”, a “(re)conversão”.

Pelo menos um psicólogo, mas arguto e dedicado, pode fazer uma ligação muito firme sobre o papel da família como uma espécie de “agente recrutador”, ou ao menos um membro próximo – primo, cunhado, sogro e, claro, um pai – que faz a “(re)-conversão” do indivíduo “perdido”. Nem sempre se trata de uma conversão para o ato terrorista, mas um retorno ao âmbito da “mouvance” islâmica que acabará redundando no ato terrorista, dadas as condições de fragmentação/imaturidade narcísica do eu do indivíduo. Voltamos aqui aos diversos níveis “potenciais” de consciência, do grau de maturidade e de capacidade de formular opções razoáveis a um estado crítica, ou como afirma Adorno “… é a prontidão para conduta antes que a própria conduta”.

O terrorismo nas primeiras décadas do século XXI continua como uma arma, e uma forma de guerra, fundamental para se alcançar “fins políticos por outros meios”.  A sua “geografia” não é necessariamente “colada” a geopolítica de suas origens, na mesma razão de que o terrorismo, como afirmamos, precisa de “público”.  Cerca de  75% de todos os “ataques terroristas” registrados no mundo nas duas primeiras décadas do século XXI, se concentraram em dez países: Iraque, Afeganistão, Índia, Paquistão, Filipinas, Somália, Turquia, Nigéria, Iêmen e Síria. No entanto, países tão distantes como a Noruega, Alemanha e Bélgico podem vir a serem palcos de eventos terroristas em função do auditório buscado e baixa frequência, e mesmo do abandono, de tais países concentradores dos eventos terroristas pela mídia global.

Neste sentido, a convivência com os atos de terror parecemo-nos que será ainda uma constante.

 

Bibliografia:

CLAUSEWITZ, Karl von. A Arte da Guerra, Lisboa, Martins Fontes, 1999.

ADORNO, Theodor.    The authoritarian personality. Nova York, Harper and  Row        Frenkel-Brunswik, E., Levinson, D. J., & Sanford, R. N., 1950.

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GIRARD, René. Rematar Clausewitz além `Da Guerra`. São Paulo, Editora Realizações, 2007.

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ROSENTHAL, Franz. “Dawla”. The Encyclopedia of Islam, New Edition, Volume II: C–G. Leiden and New York, 1991.

SARTRE, Jean-Paul. « Comment faire face au terrorisme », entretien avec Gilles Martinet, France-Observateur, no contexto da Guerra da Argélia  ( 1954-1962),  18 mai de 1961.

The Khoran. Oxford, University Press, tradução do árabe por Arthur J. Arberry. 1998.

[1]  Grupo de Informação de Jane estimou que o armamento desativado em setembro de 2005 incluiu: Um AG-3, variante norueguês do Heckler & Koch G3 . Mais de 50 deles, de um lote de 100 roubados do Exército norueguês , acabaram no IRA. [209]RPG-7 , obtido pela primeira vez pelo IRA da Líbia em 1972 [210]

 

[2] Neste sentido assume grande importância o debate, aparentemente acadêmico, entre especialistas e políticos sobre a formula “Guerra ao Terror”, como inaugurada por George Bush depois do 11 de Setembro de 2001, e retomada, em 2015, pelos presidentes François Hollande, Vladimir Putin e mesmo Xi Xiping,  Nesse contexto, as posições de muitos juristas e, mesmo, humanistas de que não se pode declarar guerra a um “não-Estado” ficam presas ou a um formalismo juridicista já ultrapassado – o Japão em várias ocasiões atacou sem uma declaração de guerra, a Alemanha nazista igualmente e na Guerra do Vietnã nunca houve uma declaração formal de guerra entre as partes; outros autores acompanhando, um pacifismo no limite irresponsável, insiste num diálogo civilizacional, com quem não considera o “outro” uma civilização.. Assim, as posições de especialistas como Alain GARRIGOU, da Université Paris I, considerando a guerra uma fórmula jurídica ou de Giles Dorronsoro, do CNRS, que nos fala de uma “drole de guerre”, perdem a percepção dos novos contextos mundiais, do papel da mídia e do terror numa “sociedade do espetáculo”.  Bertrand BADIÉ, da Faculté de Sciences Politiques, armado de um vasto arsenal da Teoria Política clássica, portanto de viés etnocêntrico – desconhecendo os novos debates sobre a variedade e a polissemia que envolve o termo “guerra” –  recusa a noção de uma “declaração” de guerra ao Daesh. Por outro lado, o conhecido filosofo Étienne BALIBAR não recua diante deste passo decisivo: mesmo não aceitando a tese de “clash of civilization”, Balibar fala de um “proto-Estado” que de fato declara a guerra e caso não seja batido tornar-se-á um Estado de direito pleno, com o qual os adversários serão obrigados a negociar diplomaticamente em condições cada vez mais dificies. Ver: LE MONDE. Sommes-nous en guerre? 16 de novembro de 2015, http://www.liberation.fr/debats/2015/11/16/sommes-nous-en-guerre_1413889, consultado em 10 de dezembro de 2015.

[3] Clausewitz et la guerre populaire. Bruxelas, Aden, 2004, p.54 e ss e ver ainda: GIRARD, René. Rematar Clausewitz além `Da Guerra`. São Paulo, Editora Realizações, 2007.

[4] LE FIGARO. Adel Kermiche, un ado perturbé devenu terroriste. In: http://www.lefigaro.fr/actualite-france/2016/07/27/01016-20160727ARTFIG00342-adel-kerniche-ado-perturbe-devenu-terroriste.php27/07/2016, consultado no mesmo dia.

[5] Ver: AMAQ News. Jihadists Disseminate Instructions for Starting Grassroots Operations around the World, consultado em 8 de junho de 2016.