O Ministro e o “Estado Paralelo”: um “Estado inimigo” ocupa o Território do Brasil
Professor Titular de História Moderna e Contemporânea/UFRJ
Professor de Teoria Social/UFJF
Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior/Eceme, do Exército  do Brasil

Após pouco mais de quatro semanas de inação – exceto pela “batalha de notas de imprensa” entre o Ministério da Defesa e a Secretária de Segurança do Rio de Janeiro – a situação da (in)segurança da Cidade chegou ao seu ponto mais baixo na última semana. O traficante “Nem” teria decidido resolver uma disputa na Rocinha. Uma comunidade numa situação privilegiada da Zona Sul/Zona Oeste do Rio de Janeiro, com cerca de 70 mil habitantes, dividida por luta interna entre dois membros “familiares” da facção ADA (“Amigos dos Amigos”), dividida entre a facção  da própria esposa do traficante, Danubia Rangel – foragida da polícia, mas influente no tráfico local – e seu preposto e “sucessor” Rogerio Avelino da Silva, o “Rogério 157”, que teria expulsado Danubia da comunidade e tentado assumir sozinho o controle da venda de drogas na região.

A disputada entre os “familiares” de “Nem” teria sido a causa do conflito atual no Rio.

Do interior da penitenciária de segurança máxima em Porto Velho (RO) “Nem” teria ordenado – inclusive por áudio de whatsapp  que circulou por todo o Rio de Janeiro – a invasão da Rocinha e a perseguição de “Rogério 157”. Este assumira um papel de “dono da comunidade”, cobrando taxa do comércio local, controlando a venda de água, gás, carvão, sinal de tv além de pedágio de mato táxi, táxi e vans e serviços de entrega na Rocinha – claro tudo isso além do “negócio” principal das drogas.

A comunidade da Rocinha mantinha até o dia 17 de setembro, quando se deu a invasão e começaram os intensos tiroteios, uma guarnição de 700 policiais com uma UPP funcionando desde 2012. Nessa madrugada cerca de 140 homens fortemente armados saíram do Morro de São Carlos, onde também há uma UPP, percorreram cerca de 14 quilômetros pelo Centro urbano da Cidade do Rio de Janeiro, e iniciaram a invasão da Rocinha. Os policiais de plantão, no São Carlos, em vários pontos do percurso e na Rocinha, viram  todo a mobilização e nada fizeram – fato admitindo pelo próprio Secretário de Segurança Roberto Sá, 48 horas após o início dos enfrentamentos, e confirmado pelo Governador “Pezão” na Globonews, em 22 de setembro de 2017 em cadeia nacional[1].  Não houve previsão, inteligência, contenção ou qualquer forma de proteção prévia da população de 70 mil pessoas da comunidade, reféns, sem luz, água e transporte, da luta entre as facções rivais da ADA.

Também o Departamento Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça, não foi capaz de informar como o traficante “Nem” conseguiu, do interior de uma prisão de “Segurança Máxima” fazer gravações e dar ordens para instalar o caos na cidade distante 3.4 mil quilômetros de distância. Também a direção da penitenciaria e o pessoal em serviço na data da ação de “Nem” no interior do presídio não  foram ouvidas ou aberto um inquérito para apurar responsabilidades[2].

Entre 17 e 22 de setembro de 2017 a cidade do Rio de Janeiro viveu sob intensa tensão e paralisia: escolas fechadas, transporte paralisado, moradias invadidas, população aterrorizada, sem luz ou transporte e uma completa inação das autoridades locais, ora afirmando serem necessário apenas recursos financeiros da União, ora solicitando o patrulhamento de 119 pontos da cidade![3]

Após o paroxismo de uma Cidade literalmente dividida ao meio – a Zona Sul desconectada da Zona Oeste – e a população aterrozida e um governo, assediado por processos por corrupção e por uma brutal falência financeira e de seus serviços básicos, incluindo salários e equipamentos e material de segurança – e um macabro recorde de assassinatos de policiais que já ultrapassa o número de cem pessoas! -, o Governo do Rio de Janeiro “demanda” auxílio ao Ministério da Defesa nos termos do Artigo 142 da Constituição Federal, denominado “GLO”, para a Garantia da Lei e da Ordem – aliás, em vigor na Cidade desde 28 de julho de 2017, logo com tempo suficiente para a organização de um planejamento e organização de uma ação de controle e repressão ao crime organizado no Rio de Janeiro[4].

Após uma manhã inteira de terror, por volta das 15h30minhs, 950 homens das FFAA entraram na Rocinha.

À noite, o Ministro da Defesa se dirige à Nação para explicar as operações em curso. Desde logo declara “a Rocinha pacificada”, o que será desmentido pelos tiroteios e vítimas fatais – incluindo crianças – em vários pontos da cidade, irradiando-se da Rocinha[5]. Não contente em fazer uma afirmação tão temerária e açodada, o Ministro parte para um balanço ou análise “político-sociológica” do crime organizado no Rio de Janeiro de forma superficial e totalmente equivocada. Na sua fala se refere ao crime organizado como “Estado Paralelo”, equiparando em grau de igualdade o Estado brasileiro – uma construção jurídico-constitucional emanada da vontade geral da Nação – com um bando organizado para delinquir, no mínimo, por si só tipificado como crime na Lei 12.850/13 – Art. 24 e no art. 288 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 do Código Penal. Ou seja, o Ministro não conseguiu perceber a diferença do longo percurso entre a construção do Estado de Direito – centrado em Locke, Montesquieu e Thomas Hobbes – e uma organização de bandidos montada para delinquir. Mais do que isso, de vontade própria, sem qualquer pressão, o Governo do Brasil, através do seu Ministro da Defesa, portanto um porta-voz bastante e autorizado, reconheceu a existência, em território nacional, de uma “ente” Estatal estranho à Soberania Nacional ocupando território nacional, portanto armas e obstaculizando a ação do Poder Público constituído conforme a “Vontade Geral” da Nação. Assim, ao contrário do Governo da Síria, que jamais reconheceu o “Califado islâmico” como “Estado” em plena guerra, ou Israel que se recusa a reconhecer a “Autoridade Palestina” como um “Estado” de pleno direito, o Ministro da Defesa do Brasil, do nada, sem qualquer necessidade, declarou em cadeia nacional, que um bando de criminosos – a saber, 140 homens armados – “um Estado Paralelo”. Além disso, na mesma fala, concluiu que estamos “em guerra”, criando uma situação “direito internacional”: um “Estado” com o qual “estamos em guerra” ocupando partes do território nacional.

Não ocorreu ao Ministro da Defesa denominar o crime organizado de “Poder Paralelo”, de “Poder usurpador” e a luta contra o crime de simplesmente “combate”. Talvez empolgado pelas metáforas do cargo lançou-nos numa guerra que transforma quadrilhas de criminosos numa “poder estatal”.

Essa seria exatamente uma grande vitória para as FARCS que o Governo da Colômbia sempre se recusou a reconhecer. Nós o fizemos em pouco mais de 8 horas de “de guerra”. Como se não bastasse o reconhecimento, na mais alta instância da República, de um “ente” estatal em guerra no território brasileiro – não ocorreu ao Ministro da Defesa que o narcotráfico possa ser um “Poder Paralelo” jamais um “Estado”, uma organização que usurpa poderes do Estado legal-racional, como estabelecido por Max Weber, e por isso mesmo uma organização criminosa que disputa o monopólio legal da violência com o único ente de Direito a exercer tal recurso em todo o território nacional, o Estado Soberano brasileiro – o Ministro avançou. Fez, “loquitur sine modo”, graves afirmações. Afirma estar preparado para dispor de todos os meios do Ministério  para enfrentar o “Estado Paralelo”, que então merece uma definição: [temos os meios] “… para enfrentar o estado paralelo, que é o estado que foi capturado pelo crime organizado” [6]. Ora, quais as “partes” ou “instituições” do Estado brasileiro que foram “capturadas” pelo crime organizado? Nenhuma explicação, nada. Apenas uma nuvem de desconfiança para o população: sua Polícia, sua Justiça, sua Administração ou seriam seus próprios dirigentes que teriam se unido ou sido capturados pelo crime organizado para formar o “Estado Paralelo”? Ou talvez o Ministério da Justiça que não consegue explicar como “Nem” numa Penitenciária de Segurança Máxima em Porto Velho comanda o tráfico no Rio de Janeiro?

Em suma, estaríamos, conforme a análise sócio-política do Ministro da Defesa vivendo no país a existência de dois Estados – como na teoria leninista de poder dual, onde o Estado revolucionário emerge e engloba o velho poder, aplaudiria Mao ou Marighella  – e as instituições já foram “capturadas” pelo “Estado narcotraficante”.

Uma simples consulta a ferramentas do curso de graduação em teoria politica, como o Dicionário de Ciência Política de Norberto Bobbio et alii pouparia o país e população de tamanha desilusão e desalento[7], além de conferir a criminosos comuns, decerto espertos e cruéis, mas claramente fruto do desmonte do Estado e deboche das autoridades, o status de um “ente” político.

Ou então, esperemos que o Ministro da Defesa demande ao Papa ou a ONU negociações imediatas de paz.

[1] Ver: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/nem-ordenou-invasao-da-rocinha-de-dentro-de-presidio-federal-em-rondonia.ghtml. .  Consulta em 23/09/2017.

[2] Ver: https://oglobo.globo.com/rio/apos-visita-presidio-advogado-de-nem-nega-que-traficante-tenha-ordenado-invasao-rocinha-21844878. .  Consulta em 23/09/2017.

[3] Ver: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/ministro-da-defesa-diz-que-falta-planejamento-da-secretaria-de-seguranca-para-atuacao-das-forcas-militares-no-rj.ghtml. .  Consulta em 23/09/2017.

[4] Ver:  https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/temer-assina-decreto-que-autoriza-forcas-armadas-a-atuarem-na-seguranca-publica-do-rio.ghtml. .  Consulta em 23/09/2017.

[5] Ver: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/09/23/rocinha-volta-a-ter-tiroteio-na-madrugada-deste-sabado.htm. .  Consulta em 23/09/2017.

[6] Ver: https://g1.globo.com/pernambuco/noticia/ministro-da-defesa-afirma-que-forcas-armadas-estao-a-disposicao-do-rio-de-janeiro.ghtml.  Consulta em 23/09/2017.

[7] Bobbio, Norberto et alii. Dicionário de Ciência Política. Brasília. Editora da UNB, Verbete “Estado Contemporâneo”, pp. 401 e ss., v.1,  1997.