ENSINANDO A ODIAR: os planos de aula da SS sobre o judaísmo (Alemanha, 1937)
Professor Titular de História Moderna e Contemporânea/UFRJ
Professor de Teoria Social/UFJF
Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior/Eceme, do Exército  do Brasil

1.               Introdução: notícia historiográfica e arquivística.

Esse breve artigo  é uma análise de um dos muitos planos de aula produzidos pelo SD-Hauptamt da SS ( Serviço de Segurança/ Escritório Central das SS) entre 1933 e 1939 visando à formação dos quadros das SS, através de um programa especifico de  “Formação da Polícia” (“Polizeischulung”), bem como  “esclarecer” a população – em especial os que chamaríamos de “multiplicadores” tais como professores, empresários, funcionários públicos, etc…  As  “Conferências de Formação” ( “Schulungsvorträge”) deveriam apresentar as  razões dos expurgos e prisões massivas de judeus depois da tomada do poder de 1933, bem como a sua exclusão da vida pública, incluindo o comércio, serviços profissionais, o funcionalismo e as atividades culturais – da Alemanha. O texto é de 1937, portanto, anterior a 9 de novembro de 1938, a chamada “Kristallnacht, a “Noite dos Cristais”, quando cerca de 7500 lojas e estabelecimentos judeus foram destruídos,  bem como 267 sinagogas, incluindo suas escolas e bibliotecas,  saqueadas e incendiadas”. Nesta noite 91 judeus foram mortos e cerca de 30 mil presos e levados para campos de concentração, além de ser imposta uma odiosa multa coletiva aos judeus de um bilhão de marcos “por depredação, tumulto e desordem pública” [1]. Assim, no momento em que o documento em pauta foi escrito e começa a ser utilizado, ainda não tínhamos chegado aos ataques massivos, abertos e sistemáticos aos judeus.  A famigerada “Wanseekonferenz”, a Conferência de Wansee, onde as linhas centrais do extermínio judeu são estabelecidos, se dá em 20 de janeiro de 1942 (e retomada em 6 de março e 27 de outubro de 1942, desta feita já no escritório de Adolf Eichmann, o “Referat IV B4, da Gestapo na Kufurstenstrasse   115/116, no Centro de Berlim”.). Em Wannsee, parque e área verde nas imediações de Berlim, na antiga Vila Marlier, transformada em hospedaria do comando da “Sicherheitspolizei”, onde seriam traçadas as linhas básicas da “Solução Final” da chamada “Judenfrage”, a “Questão Judaica” no “Reich alemão”, os quadros superiores do SD  organizaram o Holocausto[2].

Entre 1933 e 1938, e o documento ora em pauta é datado de 6 de fevereiro de 1937, escrito em Berlim na sede do SD – ou seja, pouco antes da “Kristallnacht”, já ocorriam frequentes ataques e abusos contra a população judaica da Alemanha. Neste momento,  mesmo que ainda não se tivessem estabelecidas as linhas centrais do extermínio judaico, o clima de terror já era claro – momentaneamente “apaziguado” pela realização das Olimpíadas de 1936 em Berlim. Sem dúvida as violências, a perseguição, a humilhação, a exclusão e  assassinatos de judeus já estavam em curso – até mesmo antes de 1933, por parte das tropas SA. Mas, ainda não se tinham as diretrizes, como nos diz Christopher Browning, que levariam a Auschwitz e seus campos similares espalhados por toda Europa conquistada pelo Terceiro Reich. Já com a ocupação da Polônia, em 1939, os judeus começaram a ser eliminados em seguidos eventos de fuzilamento em massa.  Foi, contudo, logo após a invasão da União Soviética pelos alemães, em 18 de dezembro de 1940, que as perseguições constantes transformar-se-iam no extermínio sistemático de judeus, o Holocausto. O ano de 1941, imediatamente anterior à realização da “Conferência de Wannsee”, é marcado pela decisão de Hitler pelo extermínio dos judeus e as diversas decisões e medidas administrativas que levariam ao Holocausto. Nos territórios do ocupados na Europa Oriental – na Polônia iniciar-se-iam os programas de deportação e extermínio já em 1941 -, o começo dos assassinatos brutais pelas “Einsatztruppen”, companhias das SS especializadas no extermínio em massa população hebraica começam a assumir um desenho coletivo, massivo e sistêmico. Também as Waffen SS tomaram a inciativa, incialmente, na Polônia,  de eliminação das lideranças culturais e de seus judeus, e, com a invasão da URSS, a por em prática um programa organizado  de exterminar judeus, ciganos e funcionários comunistas da União Soviética. Tais medidas foram premeditadas, organizadas, em especial através do chamado “Kommissarbehfel” (“Decreto dos Comissários”), de 6 de junho de 1941, assinado por Hitler, autorizando a execução sumária de “comissários comunistas” e outros “resistentes” sem julgamento prévio, dispensando o aprisionamento e ordenando a execução imediata dos mesmos[3].

Em Belzec, em novembro de 1941, já estavam acontecendo vagas de extermínio com uso de gás, ora em furgões, ora em salas construídas especialmente para assassinatos coletivos, e em Kulmhof, em dezembro de 1941, já estavam em funcionamento os furgões de extermínio a gás[4].

De qualquer forma, em 12 de dezembro de 1941, as decisões necessárias para os assassinatos em massa estavam tomadas, faltando apenas a sua organização administrativa, o que se daria em Wannsee através da reunião dos líderes do SD. Naquela data, numa reunião de “Gauleiter” do Partido Nazista, no Salão Privativo da Chancelaria do Reich, em Berlim, Hitler afirma para seus seguidores, que perante a “guerra mundial” em curso, a “Questão Judaica” deveria ser resolvida definitivamente: “…o  extermínio dos judeus era uma consequência necessária da guerra mundial” (“… Bezüglich der Judenfrage ist der Führer entschlossen, reinen Tisch zu machen. […] der Weltkrieg ist da, die Vernichtung des Judentums muss die notwendige Folge sein”) [5].

Assim, no período que antecedeu a tomada de decisão, em 1941, e o começo da execução sistemática do Holocausto, em 1942, dominou nos territórios do Reich a violência institucional e individual contra os judeus, sustentada e nutrida por uma propaganda sistêmica do antissemitismo, incluindo a imprensa, o cinema e, o que nos interesse aqui, através de “aulas”, “palestras” e “treinamento”. Neste período, em especial de 1933 até… , quando podemos falar de uma fase inicial do nazismo, a “Gleichhaltung” – ou seja, a uniformização da sociedade alemã pelos projetos nazistas e que alguns autores denominam de “processo de fascistização”[6] – a difusão e imposição do antissemitismo como política de Estado era fundamental. O documento em pauta – as recomendações para “aulas” de antissemitismo a serem ministradas pelo SD –  é um testemunho, brutal, do antissemitismo estatal, enquanto politica oficial do Reich alemão.

A autoria institucional do documento, composto de 26 páginas, originais, datilografadas e com várias anotações à mão, e autenticadas, no estilo corrente dos documentos alemães da época, é do SD.-Hauptamt Abteilgund II – ou seja, do Serviço de Segurança – Escritório Central, Divisão II. O Serviço de Segurança (doravante SD) pertencia às SS e foi organizado em 1931, como um órgão de controle do conjunto das SS. Sofreu várias “reorganizações”, em especial depois da “tomada do poder”,  entre 1935 e 1937.  Sua chefia, e o cérebro organizador, foi o SS-Gruppenfüher Reinhard Heydrich, braço direito de Heinrich Himmler, o chefe das SS. Estava organizado, até 1942, em três escritórios – “Amt”, plural “Ämter”, que por sua vez eram subdivididos em várias “Divisões”, “Abteilung”, plural “Abteilungen” – com funções especificas: o “Escritório I” era dedicado à administração e aos cuidados de gestão do  “pessoal” do conjunto do SD; o “Escritório II” era voltado para a “Segurança Interna”, possuía várias divisões e foi estabelecido pelo SS Standartenführer Hermann Behrends, substituído em 1937 pelo SS Sturmerbannführer Franz von Six, um dos mais importantes “ideólogos” do Holocausto; o “Escritório III” cuidava da “Segurança Externa”, ou seja, a espionagem, inteligência e contra inteligência.

Foi no âmbito do “Escritório II” que o documento em análise foi produzido, logo em seguida da organização das diversas “Divisões” do SD.  A “Divisão II/112” era dedicada exclusivamente a “Judenfrage” ou simplesmente “Juden” – outras divisões do mesmo “Escritório II” dedicavam-se aos maçons, marxistas, oposição, etc…  A organização da Divisão II/112 deve muito a Leopold von Mildstein, o “especialista” em questões judaicas da SS, na verdade um ideólogo do racismo,  e que dirige o serviço, no SD, em 1936.

A Divisão II/112 foi dirigida sucessivamente por vários oficiais superiores da SS. No momento da redação do documento estudado seu chefe era o SS Unterstürmerführer Dieter Wisliceny, não só um ideólogo do antissemitismo, como ainda um dos seus executores. Foi ele que indicou o colega SS Hauptscharführer Schröder (substituído em 1938 por Herbert Hagen, em 1940 por Hans Richter) para a função de “Referent”, algo como “Relator”, da organização da  documentação,   propaganda  e das orientações práticas ( “Rechtlinien”) do antissemitismo  no Reich alemão.

Dieter Wisliceny (1911-1948) com o começo da guerra foi transferido para a função de “Beauftragter für judische Angelegenheiten” ( “Responsável pelos Negócios Judaicos”), leia-se, a “Solução Final”, nos territórios da Eslováquia, Hungria e Grécia. Wisliceny, um antigo estudante de Teologia, que adere ao Partido Nazista em 1931, faz uma rápida carreira no interior do SD – em boa parte em virtude de suas relações pessoais com Adolf Eichmann, tornando-se um “especialista na Questão Judia”. Participou, como “Sonderkommando” na aniquilação direta  dos judeus de Solônica, além de organizar e informar o SD em ampla área da Europa central e do sul, sendo um dos organizadores da deportação dos judeus orientais para Auschwitz. Wisliceny compareceu ao Tribunal de Nuremberg, como testemunha, sendo deportado, então, para a Tchecoslováquia, onde foi julgado por crimes contra a Humanidade, condenado e enforcado em 1948 na cidade de Bratislava[7]. Já Herbert Hagen (1911-1999) era um jornalista, culto e falante de vários idiomas,  mas com sérias dificuldades financeiras, que se junta às SS somente em outubro de 1933, depois da tomada do poder.  Através de seus contatos com Franz von Six torna-se um espião a serviço de Heinrich Himmler, tendo desempenado um papel de monta nos assassinatos de membros da SA – incluindo aqueles mortos onde hoje funciona o Bundesarchiv Lichterfeld, onde o documento analisado foi encontrado – e outros oponentes do Regime Nazi na chamada “Nacht der langen Messer”.  A “Noite das Longas Facas”, em 30 de junho/1 de julho de 1934, deu-se  quando Hitler, apoiado pelas Forças Armadas alemães e pelo “establishment” político em torno do velho presidente Marechal Hidenburg, expurgou e assassinou  a oposição interna no Partido  Nazista – liderada por Ernst Röhm, chefe das AS. Coube as SS o papel central neste banho de sangue. Por seus “serviços”,  Hagen fez uma rápida carreira, sendo enviado, mais tarde, para França ocupada para chefiar o SD em várias cidades francesas, além de ações brutais contra judeus da Áustria e da Caríntia.

Em 1937 foi nomeado chefe da Divisão II/112 Judeus do SD, onde acumulou credenciais para as perseguições que colocaria em prática na França. Por isso foi acusado por um tribunal francês de organizar 70 comboios de deportação de judeus, com 70.790 judeus franceses ou refugiados na França, para campos de extermínio na Alemanha e na Europa Oriental.  Por tais ações foi condenado a prisão perpétua, mas as autoridades britânicas não o entregaram aos franceses. Preso na Alemanha acabou sendo libertado, morrendo num asilo em 1999.

Leopold von Mildenstein (1902-1968), engenheiro e jornalista, alista-se no Partido Nazista em desde 1929 e torna-se membro das SS desde 1931. Era considerado um “especialista na Questão Judia” , tendo feito inúmeras viagens para a Palestina britânica, e defendido a expulsão dos judeus para aquela região, mantido contatos constantes com o “Hagana”, em negociações – envolvendo grandes somas de dinheiro – para a autorização de migração para a Palestina. Em 1936 dirigiu a Divisão II/112 Judeus, tendo então entrado em atrito com Heydrich, voltando-se para Joseph Gobbels, com quem vai trabalhar no Ministério da Propaganda.  Tornou-se rapidamente próximo da “Gehlen Organization” (organização estabelecida em 1946 pelas autoridades americanas para alistar nazistas que seriam úteis para a Inteligência antissoviética)[8], não sendo acusado pelos aliados depois da guerra, indo trabalhar na empresa “Coca-Cola”, como cobertura para atividades de espionagem no Oriente Médio para a CIA[9].

Hans Richter (1903-1972), formado em Direito, com ambições artísticas – estudou música em Berlim – adere ao NSDAP em 1932, como uma alternativa ao desemprego e pobreza que o atingiu a crise de 1929, atuando como informante e depois de 1933 como responsável por presos e delações.  É contratado para a Divisão II/111, onde se torna responsável pela repressão dos maçons, passando rapidamente – e com a ajuda de Adolf Eichmann – para a Divisão II/112 Judeus, onde desenvolve intensa atividade, não sendo, entretanto, acusado depois da guerra[10].

Wilhelm Spengler (1907-1961) foi chefe, durante longo tempo do “Escritório III K”, do SD, responsável pelas questões culturais – daí uma íntima relação com Joseph Gobbels – e pela propaganda e censura no âmbito da vida cultural do Terceiro Reich, incluindo, claro, a propaganda antissemitismo.  Com uma profunda formação em engenharia e Germanística – história, literatura e arte alemã – distinhuia-se no SD como um guia cultural e ideológico da instituição de Himmler. Aderiu ao SD em 1933 e chegou a fazer parte do “Einsatzgruppen IV” (EGR) na Polônia, nos Bálcãs e na URSS, especializando-se no assassinato de funcionários públicos, professores, judeus e doentes.  Depois de um curto internamento, na zona de ocupação britânica, entre 1945 e 1947, Spengler une-se ao grupo “Stillen Hilfe”, de ajuda aos prisioneiros nazistas, atuando claramente como uma liderança nazista na República Federal Alemã[11].

Também parte do círculo restrito do SD voltado para a “Questão Judia” apontamos o SS  Brigadeführer Frans Six (1909-1975), talvez o mais influente de todos os funcionários do SD. Six adere ao NSDP em 1930, entrando para as SA em 1932, indo trabalhar diretamente no SD-Hauptamt, no setor de Jornalismo – era pós-graduado em jornalismo, lecionando na Friedrich-Wilhelm-Universität Berlin, trabalhando ativamente na “logística” da Solução Final, compondo, com os colegas acima, o dito “Eichmannreferat”.  Como membro do “Vorkommando Moscou” participou ativamente dos assassinatos do gueto de Smolenski, na URSS. No imediato pós-Guerra integrou-se a “Gehlen Organization”,  mas, mesmo  assim, acusado de crimes contra a Humanidade é condenado a 20 anos de prisão, em 1948, nos Nuremberg Einsatzgruppenprozess. Contudo, já em 1952 é posto em liberdade por intervenção direta do governo americano[12].

Já o autor direto, aquele que escreveu as primeiras “orientações” do  “plano de aula”, Kuno Schröder,  não temos informações claras depois de 1945, sendo citado, numa obra geral sobre as SS, como um “jovem dinâmico e dedicado” à Questão Judia[13].

O documento –  que objetivava ser um conjunto de  “orientações” para as SS, é decorrente de uma série de conferências de chefes de Divisões da SD realizada para “25-30” líderes, na sede do SD no Prinz-Albrecht Straβe, em Berlin, a partir de 6 de fevereiro de 1937  ( repetindo-se em 12 de março de 1937  devendo estar completas a proposta até 31 de setembro de 1937) – está depositado no Bundesarchiv, Abteilung Massenorganizationen ( na Finckensteinallee 63), sob a cifra, manual, de R 58/623, com as páginas numeradas de 42 até 63, sendo as paginas 62 e 63  um apenso, escrito em gótico cursivo com os pareceres de Wisliceny e do colega Schütt sobre a qualidade do material e a “pedagogia” a ser aplicada. O objetivo principal era a formação  do conjunto dos policiais da Divisão II/112 Judeus.

O documento é parte de um amplo acervo – o Fundo RSHA – depositado no Bundesarchiv/Lichterfelde/Berlim após os acordos de Reunificação Alemã, entre 1989 e 1991.  Haviam sido transferidos, em 1945, para Moscou, dados a riqueza de nomes e ações descritas nas fichas de milhares de militantes, informantes e simpatizantes do nazismo, e de lá para Berlim Oriental, na antiga República Democrática Alemã. Com a unificação os documentos vão para o prédio em que funcionava, entre 1873 e 1919, a Academia Militar alemã, extinta pelo Tratado de Versalhes, em 1919, passando ser uma escola depois dessa data. Em 1933 passa ser a sede do “Leibstandarte SS Adolf Hitler”. Em 1934 foi o local do assassinato de vários oponentes de Hitler durante a “Noite das Longas Facas”, em 1934.  Tomada pelas tropas aliadas em 1945, passando depois do ano de 1951, a abrigar o arquivo federal e para onde foram destinados os documentos tomados pelos soviéticos em 1945.

Todos estes, e mais alguns, foram muito corretamente denominados de “o Grupo de Eichmann”.

2.               O “Programa”:

Nas 11 páginas da “Disposition” do SD-Hauptamt sobre a “formação de policiais sobre a questão da Raça” tem-nos uma programação, num estilo comum de programas de disciplinas, estabelecendo os temas e a cronologia dos “estudos judaicos” necessários para a formação do público escolhido. Assim, já na página 69 do documento, as temáticas são claramente definidas em ordem cronológica:

  1. História dos judeus de 70 d.C., até 1933;
  2. A natureza (das Wesen) dos judeus;
  3. Livros Religiosos e as Leis Judaicas;
  4. O sionismo desde o começo (sic) até o presente;
  5. As organizações judaicas na Alemanha;
  6. A organização internacional dos judeus;
  7. As leis (anti)judaicas desde 1933.

Mais à frente, no apenso em gótico cursivo, surgem outras preocupações, notavelmente mais complexas que aquelas acima. Essas, muito possivelmente propostas por Kuno Schröder – de certa forma linear e bastante óbvias para a finalidade prevista, são fortalecidas ( em uma numeração falha ou completada por outro documento, no caso perdido) e claramente de autoria do SS Untersturmerführer Wisleceny, traduzindo seu pedantismo e uma formação universitária típica do “idealismo” vigente nas universidades alemães. Assim, Wisleceny propõe:

  1. A natureza ( das Wesen ) dos judeus em comparação com a natureza dos arianos.

Para este item propõe, de forma clara, o estudo do “Mein Kampf’, citando as páginas 329 e seguintes.  De certa forma traduzindo sua contrariedade com o caráter “escolar” do programa proposta, aponta a necessidade de uma temática introdutória sobre

  1. “A História dos Judeus como parasita ( “Parasit”) dos povos.

Nesse caso, o novo item do programa, que substituiria o Item 3 anterior ( “Livros Religiosos e as Leis Judaicas”), Wisleceny volta a propor o “Mein kampf” como fonte fundamental do “Programa”,  citando dessa vez as páginas 338 até 358 para caracterizar o  “parasitismo judaico”.

Assim, os Itens 1 e 3 do “Programa”, sobre a longa história dos judeus e seus Livros Sagrados, deveriam ser substituídos – aparentemente por sua obviedade – por dois outros itens que mais diretamente caracterizariam os judeus como “inimigos” não só do povo alemão, como também dos “povos” mundiais. Em seguida, introduz um complexo tema, como Item 2 do Programa:

  1. Considerações Racistas;
  2. Os judeus como força destrutivana vida dos povos desde a Antiguidade (Bíblia, Império Romano, a destruição do Templo);
  3. A infiltração do Judaísmo na Europa;
  4. O judeu por ocasião da Revolução Francesa( o “Aufklärung/Iluminismo”, a emancipação dos judeus);
  5. Os Rothschilds;
  6. Os judeus como dirigentes do Capitalismo e do Marxismo;
  7. A eficiência dos judeus durante a (Primeira) Guerra Mundial ( a formação do Lar Nacional judaico na Palestina);
  8. A Revolta judaica e [a natureza] da sua “sub-humanidade” ( “Untermenschentum”);

Aqui, no Item 11, voltamos a ter uma forte intervenção e uma chamada de atenção, sublinhando a forma na qual o item do “Programa” deveria ser redigido:

  1. Formas de aparência e meios de luta do judaísmo ( espiritual-terror-“objetivos” para outros povos, egoísmo para si. Imprensa; boicotes; maçonaria; marxismo; Protocolos);
  2. Os pontos centrais do judaísmo mundial (judaísmo religiosoortodoxo);
  3. O sionismo como força política no mundo;

Mais uma vez o SS  Untersturmerführer intervém, no Item 14, para reforçar uma temática que considera importante:

  1. Combate ao judaísmo desde sua mais antiga manifestação;

As reações de Schröder e Spengler face ás observações, de fundo críticas, de Wisleceny, traduzem irritação e uma clara disputada, não muito diferente daquelas que as universidades e outras instituições acadêmicas alemães viviam, então sobre a chamada “Questão Judaica”.  O debate sobre o Item 2 do “Programa”, já na página 62 do documento,  sobre a natureza – ou essência – do “ser judeu”, acrescido por Wisleceny de “…em comparação com a natureza dos arianos”, merece uma resposta irritadiça por parte dos autores: além da advertência de serem  os itens  somente “Indicação Preliminar” destacam especificamente este Item 2. Assim, afirmam que “a aula 2 pode ser ampliada  com diversos exemplos sobre a descendência racial dos judeus”.  Em seguida afirmam que a questão possui “pouco material do ponto de vista cientifico” e que só poderia ser remetido “após pesquisa da literatura especifica”.  Recepcionam a proposta de Wisleceny de comparar com a “natureza ariana”, propondo a utilização de diversos discursos e trechos literários de autores Dubnow ( de Simon Dubnow, 1860-1941, historiador); Graetz (Heinrich Graetz, 1817-1891, historiador); Buber (Martin Buber, 1878-1965, filósofo); Rathenau ( Walter Rathenau, 1867-1922, industrial e político); d´Israeli ( Benjamin Disraeli, 1804-1881, líder conservador e primeiro-ministro da Grã-Bretanha)… sem, contudo citar os Rothchilds.

O clima de intriga e querelas, muitas vezes em clara disputa de “erudição” em “assuntos judaicos”, o que representava ascensão na carreira e melhores condições de galgar as posições de liderança no interior do SD. As “ausências” assinaladas, de forma crítica, por Wisleceny são respondidas de forma direta, como decorrentes da “falta de tempo […] não é possível manda-los escrupulosamente”.

Por fim, os autores originais deixam claro, já na página 60 do documento, que precisavam, queriam em verdade, potencializar a “Divisão IV/112”, o que representava aumento de poder no interior do SD: “…caso deseje mais aulas sobre o posicionamento do cristianismo e do judaísmo  e o desenvolvimento do antissemitismo, podem ser remetidas desde que nos dê tempo e pessoal para estes trabalhos especiais”.

3. O “judeu” como objeto de aula:

Desde sua primeira página ( número 42) o documento do SD-Hauptamt seus autores estabelecem, com nitidez, o seu objetivo: “O Judaísmo como adversário mundial do Nacional-Socialismo”. Tendo isto em vista, fazem uma clara observação de tipo “militar”: para combater o adversário é preciso conhecer suas particularidades do “ponto de vista do NS”.  A naturalização da oposição judeu-ariano, um fato nem sempre claro para um país onde a presença judaica era, então, já multissecular. Assim, desde logo, a tarefa imediata é diferenciar a “condição” judaica e a natureza diferenciada dos arianos.

O documento aponta a existência, em 1933, de 16.5 milhões de judeus no mundo ( o Anuário Judaico Norte-Americano apontava, em 1933, cerca de 15.5 milhões de judeus), sendo que 6.5 milhões nos Estados Unidos; 2.3 milhões na “Rússia Europeia”; 6.8 milhões nos demais países europeus e 0.9 milhão nos demais continentes ( enquanto o Anuário Judaico fala, na sua edição de 1933, 5.5 milhões na Polônia e União Soviética)[14]. O documento afirma existir, ainda, em 1937  cerca de 390 mil judeus identificados na Alemanha, sendo que desde 1933 outros 105 mil já haviam emigrado. O Anuário Judaico, no entanto, fala em cerca de 500 mil judeus alemães. A maior concentração vivia nas grandes cidades como Berlim, com 160 mil judeus, Frankfurt com 26 mil e Hamburgo com  17 mil cidadãos de religião judaica ( na verdade era identificado pelos avós, conforme a nova legislação nazista)[15].

De qualquer forma, além do número discutível de judeus na Alemanha em 1933, nunca foram mais de 1% da população alemã, então em torno de 67 milhões de pessoas. A própria compreensão destes números obrigava os autores do documento a duas análises complementares para comprovar o “perigo” judaico. De um lado, argumentava-se, já na página 42, sobre a desproporcional concentração de judeus em alguns setores da vida alemã, redundando num “Pensamento Orientador” a ser implementado em todo o país: “…Repressão da influencia judaica na Alemanha – restrições da possibilidade de existência”. Em  seguida são descritos os setores onde a desproporcionalidade fosse evidente na Alemanha, tais como “na vida política… no comércio e nas áreas artísticas”. O documento sugere ainda que sejamT apresentadas estatísticas da “…influencia judaica por grupos específicos… e a atividade arianas e judaicas”.  Por outro lado, mesmo sendo 1% da população total da Alemanha – estatística não apresentada pelos planos de aulas – a presença dos judeus seria perniciosa por si mesma dada sua natureza “destrutiva”.  O documento considera que “a invasão judaica na vida íntima popular de uma nação demonstra um efeito negativo”. Junta-se a isso a natureza “biológica” do judeu, considerado como “…em sua totalidade [é] um bastardo”. Neste sentido, e a novidade do antissemitismo nazista, os judeus seriam, conforme a página 47, biologicamente uma raça diferente, o que seria provado por pesquisas cientificas de conhecidos cientistas “higienistas”, tendo  uma origem mestiça, misturando “egípcios, babilônios, assírios, filisteus, cananeus,  moabita e, mais tarde também, kasares”[16].

4. A luta contra os judeus:

Coube a “Divisão V/112 Judeus” do SD-Hauptamt a construção de uma tese de combate ao “judaísmo” que anuncia claramente o que atualmente chamaríamos de “pós-verdade”. Para justificar a culpabilização dos judeus e seu caráter destrutivo como um problema mundial, os “intelectuais” da “Divisão”, em especial Six, utilizando-se do “Mein Kampf” como fonte, afirma o caráter “mundial” e “dissimulado” do judeu ( “Judentum”) que dominaria as grandes potencias: a União Soviética, através do bolchevismo; a Grã-Bretanha, através da infiltração na elite dirigente do país e nos Estados Unidos, através do controle das grandes finanças. Este era um tema comum dos fascismos. Mesmo Benito Mussolini já havia falado e criticado a improvável divisão do mundo entre a “Roma Negra”, o catolicismo, e a “Roma Negra”, o bolchevismo em Moscou. A lógica da argumentação – reunindo notórios rivais entre 1933 e 1941 como a Grã-Bretanha e a URSS, além, claro, dos Estados Unidos, não precisava ser comprovada. Bastava afirmar a sagacidade, o egoísmo e a dissimulação dos judeus. O aparente paradoxo da afirmação acima era explicada, já na páginas 47/48, pelo natureza do “Volkstum” ( a essência do povo) judeu: “…um povo diversificado que nem sempre precisa ser unificado. Ao contrário , pode-se  concluir que, durante os séculos, os judeus sempre tentaram assimilar seu “Volkstum” aos povos hospedeiros”.

[1] Ver para análise da “Kristallnacht”: Browning, Christopher . Collected memories: Holocaust history and postwar testimony. In: Mosse, Mosse Series in Modern European Cultural and Intellectual History, Madison,  University of Wisconsin Press, 2003,

[2]Mommsen, Hans. “Auschwitz, 17. Juli 1942”. In: Frei, Norbert e Henke, Klaus. Der Weg zur europäischen „Endlösung der Judenfrage“. In:  München, DTV, 2002.

[3] Martin Broszat:  “ Kommissarbefehl und Massenexekutionen sowjetischer Kriegsgefangener”. In: Anatomie des SS–Staates. Band 2. Org. Hans Buchheim, Broszat, Hans-Adolf JacobsenHelmut Krausnick. Freiburg 1965, S. 163–283 – e ainda  Dtv, München 2005. Para o texto original completo ver: https://de.wikisource.org/wiki/Kommissarbefehl.

[4]Mommsen, Hans. Op. Cit., pp. 113/150.

[5] Goldmann, Guido. Holokaust, Hamburgo, Goldmann, 2001.

[6] Poulantzas, Nicos. Ditadura e Fascismo. Lisboa, Editorial Estampa, 1970.

[7] Richard OveryInterrogations: The Nazi Elite in Allied Hands 1945 Allen Lane, The Penguin Press, London 2001

[8] Höhne, Heinz; Zolling, Hermann (1972). The General Was a Spy: The Truth about General Gehlen and his spy ring. Nova York: Coward, McCann & Geoghegan.

[9] Joseph Verbovszky: Leopold von Mildenstein and the Jewish Question. Case Western Reserve University, Cleveland/Ohio 2013,

[10] Ver: Michael WildtGeneration des Unbedingten. Das Führungskorps des Reichssicherheitshauptamtes, Hamburg, HIS Verlag, 2002.

 

[11] Para a atuação das autoridades norte-americanas no alistamento de nazistas para a CIA ver: Boghardt. Thomas. America’s Secret Vanguard: US Army Intelligence Operations in Germany, 1944–47. In: CIA Files: https://www.cia.gov/library/center-for-the-study-of-intelligence/csi-publications/csi-studies/studies/vol-57-no-2/pdfs/Boghardt-Secret%20Vanguard.pdf, consultado em 21/11/2016.

[12] Hachmeister, Lutz Der Gegnerforscher. Die Karriere des SS-Führers Franz Alfred Six, Munique, 1998

[13] Weale, Adrian. The SS: a new history. Londres, Abacus Ed., 2011.

[14] Ver em: https://www.ushmm.org/wlc/ptbr/media_nm.php?ModuleId=0&MediaId=270, consultado em 21/11/2016.

[15] Ver em: https://www.ushmm.org/outreach/ptbr/article.php?ModuleId=10007687.

[16] Ver Black, Edwin. A Guerra Contra os Fracos. São Paulo, Editora Girafa, 2003, em especial p. 449 e ss.