Imperialismo, Etnocentrismo e Arabicidade perante a questão do Islã Militante
Professor Titular de História Moderna e Contemporânea/UFRJ
Professor de Teoria Social/UFJF
Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior/Eceme, do Exército  do Brasil

“Senhor, alivia-me o peito, pediu Moisés,

E facilita minha tarefa,

E desata um nó em minha língua

Para que todos me compreendam…”

(Moisés, citado no Santo Corão, Surata XX, Taha, Versículos 25-28).

Em meados do século XIX, a partir de uma literatura de viagem (mais tarde reforçada por uma antropologia colonial) saturada de evolucionismo e etnocentrismo, emerge uma, então, “nova” visão dos povos africanos, asiáticos, polinésios e australianos baseada nos princípios ditos “científicos” em ascensão na Europa.

Juntar-se-ia a uma já vasta coleção de textos e considerações, desde os primeiros momentos do “contato” que formaria uma coleção infindável de característica física e cultural, de ritos e costumes considerados bizarros e mesmo escatológicos sobre os povos “primitivos”.  Na sua grande maioria, buscavam, via comparação, comprovar a superioridade do homem ocidental, de sua cultura – incluindo aí sua religião, forma de governo (quando existentes-visíveis), economia e seus costumes e hábitos – e, claro, sua “raça” em relação aos demais povos. Com sua típica obsessão “cientifica” em catalogar e “tipificar” , exploradores, médicos, antropólogos, botânicos, zoólogos ou simples aventureiros (além, claro, de missionários) escreveram e publicaram imensos “catálogos das diferenças” que deveriam comprovar a originalidade de um “nós” europeu – branco, cristão e civilizado – e um “eles” – bárbaro, ou mesmo selvagem, com todos os caracteres daí decorrentes.  Algumas vezes, “selvagens” foram levados para Europa e exibidos em feiras e “mostras cientificas”, lado a lado, com animais e artefatos, para grande divertimento e espanto das novas classes médias ilustradas europeias, formando-se verdadeiros “zoológicos humanos”. “Aldeias” inteiras foram recriadas em Paris, Londres e Bruxelas para que a população europeia pudesse observar como viviam os selvagens, como no caso de jovens javanesas durante a Exposição Universal de Paris de 1889 ou hotentotes e boxímanos levados para Londres. Algumas vezes, como no caso do famoso “cowboy” Coronel William Frederick Cody, autodenominado “Buffalo Bill”, viajou com seu circo “Wild West Show” pela Grã-Bretanha, França, Alemanha e Espanha, em 1887, levando “peles vermelhas” autênticos, que participavam de espetáculos de roubos, cavalgadas, ataques e lutas contra diligencias e comboio de homens brancos na simulação de sua “civilizada” marcha para o Oeste americano[1].

Jovens Javanesas expostas durante a Exposição Universal de Paris, 1889. In: http://www.museudeimagens.com.br/zoologicos-humanos/.

A literatura de viagem, seja a pretensamente cientifica, seja a meramente “aventuresca”, e mesmo aquela nascida “nos trópicos”, algumas vezes com valor estético indiscutível – como em Joseph Conrad (1857-1924) ou Rudyard Kipling (1865-1936) – forneceram os elementos chaves para a construção desta díade “nós” / “eles” que permitiria o avanço, sem culpa, dos Imperialismos europeus (ou norte-atlânticos em geral, considerando os Estados Unidos, a partir da Guerra Hispano-Americana de 1898) e imposição de um modo de vida – capitalismo, cristianismo, família ocidental, direito positivo, propriedade privada, etc… –  que redundariam numa profunda desordem das formas “não-ocidentais” de organização da vida comum. Tratava-se de ver no “Ocidente”, contraposto a um “Oriente”, a única racionalidade possível na organização da vida e das instituições. Tal “contato” entre civilizações, ora brutal, conquistador e mesmo aniquilador, como na Argélia, Madagascar, Havaí ou Sudão, ora insidioso e desorganizador, como na Índia e Egito e, por vezes, informal e distante, mas capaz de impor sua vontade, como no Irã (antiga Pérsia) ou Tailândia (antigo reino do Sião) exerceu uma pressão suficiente para desorganizar as formas anteriores de reprodução social e criação simbólica e, ao mesmo tempo, impor formas e redirecionar outras, antigas e tradicionais, em função dos interesses do processo de enriquecimento das economias metropolitanas[2]. A violência e iniquidade das Guerras do Ópio (1839-1842 e 1856-1860) são, talvez, o exemplo mais visível, mas de forma alguma único, do brutal “contato” entre civilizações na Época dos Imperialismos.

A constituição, na Europa e América do Norte, de disciplinas “científicas” no século XIX – como a medicina, o higienismo, a antropologia e a sociologia e a psicologia, quase sempre com forte cunho de darwinismo social – viriam a dar suporte a estas “diferenças” básicas entre Ocidente/Oriente, valorizando a superioridade ocidental.

Tais colonialismos do século XIX entendiam, ora uma incapacidade inata dos povos genericamente ditos “de cor” ou “coloniais” em “evoluir” em direção ao “estado civilizado” europeu, possibilitando a sua pura e simples aniquilação – como no caso do genocídio dos hereros da Namíbia alemã entre 1904 e 1907 – ora, entendiam que tal “evolução” só se daria muito lentamente ao longo da adoção de instituições europeias por parte dos “nativos” – como na Índia. Em ambos os casos a presença colonial era, por isso mesmo, necessária, benéfica e justificada. Assim, a impunha-se a ideologia do chamado “The White Men´s Burden” (“o fardo do homem branco”), ou seja, o colonialismo e o seu “fardo” – a obrigação de viver nos trópicos tolerando seu calor e incômodos, longe de seus rincões verdejantes na Inglaterra ou na França – como escreve Rudyard Kipling incentivando os Estados Unidos durante a Guerra Hispano-americana (1899-1902) a tomar para si “o fardo de civilizar” as Filipinas[3].

Em alguns casos, como na China e no Mundo Árabe, era bem mais difícil justificar a ocupação e a presença colonial, posto que tais culturas já tivessem sido focos de brilhantes civilizações no passado, atestados na arquitetura e na literatura. Nestes casos, uma longa história de “decadência” e de “degeneração” se impunha como narrativa explicativa para uma civilização antiga, como a árabe, que tinha sido tão poderosa a ponto de ameaçar o Ocidente cristão, e que então, no século XIX, encontrava-se prostrada sob a tutela nominal do Sultão-Califa da Turquia Otomano.

A proximidade do mundo muçulmano em face da Europa e a precocidade da expansão europeia em direção ao Oriente (corretamente dito) Próximo produziu, desde meados do século XIX uma vasta literatura sobre a “inferioridade” dos árabes. A França, que iniciara a ocupação do Norte da África, pela Argélia desde os anos de 1830, deu a partida no processo de justificativa “científica” do colonialismo via a inferiorização do povo árabe.

Viajantes, diplomatas, comerciantes e mercenários que viveram em cidades muçulmanas e prestaram serviços às autoridades muçulmanas – árabes, turcas ou berberes do norte da África – criaram, desde os anos de 1830-1850, uma vasta literatura sobre o exotismo do mundo muçulmano, disputando entre si, via narrativas cada vez mais escabrosas, um público europeu ávido por folhetins escandalosos, numa época em que a imprensa vinha se tornando cada vez mais popular. Assim, narrativas sobre estranhos hábitos, em especial uma sexualidade lúgubre e uma devassidão generalizada, invadem a Europa a partir de 1850, quando médicos e “higienistas” franceses acompanham as tropas e os colonos que vão se estabelecer em Argel.

Na década de 1930, culmina na emergência de uma “escola” de psiquiatria francesa, dirigida pelo médico Antoine Parot (1876-1965), voltada para o estudo da “inferioridade mental dos povos árabes” do Norte da África, comprovando-se de “forma cientifica” sua incapacidade para o autogoverno. Defendia-se a tese de um inato “primitivismo” mental dos povos árabes -, o que provocará um forte, e decisivo, impacto no jovem médico Frantz Fanon e sua consequente ação modernizadora e emancipadora no hospital psiquiátrico de Bilda-Joinville, na Argélia [4].

Esta narrativa “primitivista”, muitas vezes expressa sob a forma de “infantilismo polar” do árabe, que oscilava entre a idiotia e a perversão do nativo, irá povoar os romances, os folhetins baratos e em seguida os filmes de aventura dos grandes estúdios cinematográficos, conformando as mentes de milhões de pessoas no Ocidente sobre a “natureza” do árabe  e resumindo-se em tudo que poderiam saber sobre o “Oriente” [5].

A história, e visão dos árabes, desde então, passou a ser uma espécie de negativo da vida pretensamente regrada e civilizada do europeu, emergindo daí uma clara dicotomia entre Ocidente/Oriente numa díade positivo/negativo sempre desfavorável à emancipação e a independência dos países coloniais, que deveriam, por razões cientificas, ficar sob controle colonial[6]. Ainda no auge dos Impérios coloniais – apenas a Alemanha havia sido despojada do seu em Versalhes em 1918-19 – Hollywood estreia o modelar “O Ladrão de Bagdá” (The Thief of Bagdad, 1924), dirigido por Raoul Walsh (1887-1980), apresentando ao grande público – o imenso público de cinema de então – os diversos pastiches do “Oriente”, seus encantamentos – tapetes voadores, lâmpadas mágicas, gênios, cavernas dotas de vontade e, claro, uma população de ladrões, vagabundos, mentirosos – e suas figuras arquetípicas, normalmente os políticos – califas, “vizires”, chefes de guarda sádicos e princesas, comerciantes sórdidos, mentirosos e aproveitadores com os quais qualquer negócio é duvidosos. O filme de Walsh, com a colaboração inestimável de construção corporal de personagem de Douglas Fairbanks (1883-1939), criaria – e trata-se a bem da verdade de uma “invenção” na história – de uma Bagdá mítica, sensual, perigosa e encantada onde princípios éticos “fundamentalistas” convivem com a traição, a magia, a pobreza e a honra com a humilhação. O caminho aberto por Walsh/Fairbanks fará história, pautando com seu filme – sem dúvida a obra mais coreográfica e cinematográfica até então realizada – a visão do público ocidental sobre este “Oriente” mostrado por esta Bagdá de papelão e gesso colorido[7].

O cinema do século XX, talvez bem mais que a literatura do século XIX, foi o responsável pela popularização dos traços centrais da “explicação da degenerescência” que a civilização árabe tenha sofrido e, por esta via, explicar-se-ia sua decadência. Ao seu lado  dá-se a invenção, por comparação ao legionário europeu, o colonizador, o lanceiro de Bengala, e demais tipos, um “contra-tipo” árabe infantilizado, lascivo, mentiroso e cruel.

Poucas vezes o cinema ocidental buscou uma representação digna do mundo árabe. Talvez a única exceção – e assim mesmo para valorizar um personagem europeu por “entender” os nativos – tenha sido no grandioso filme de David Lean (1908-1991), “Lawrence da Arábia”, de 1963, onde as intrigas e os interesses colonialistas britânicos, o racismo explícito dos oficiais, ficam nitidamente desmascarados, evidenciando o caráter pérfido da política europeia em relação aos povos coloniais do Oriente Médio. Mas, de qualquer forma, os árabes, mesmo quando lutam – em “Lawrence da Arábia” são aliados -, não possuem objetivos ou regras, se comportam como salteadores e ladrões, sem quaisquer relações com a honra e a disciplina militares, observadas por Lawrence com certa tristeza. Muitas  o oficial britânico mostra-se perplexo pela ausência honra militar de seus protegidos, exceto na mais alta nobreza dos hachemitas.

Assim, da literatura do século XIX, com Rudyard Kipling (1865-1936) com sua genialidade etnocêntrica e culturalista, até a massificação fílmica do século XX, o mundo colonial, e em especial árabe, surgiu sob um conjunto simples e facilmente identificável de traços culturais apontando para a ignorância, infantilização, fanatismo, pobreza, credulidade e sensualidade.

Com Frantz Fanon a “infantilização” assumiria condição de conceito  psicanalítico – incluindo aí traços de perversidade, vaidade e indisciplina –  elementos constantes na construção do “outro” árabe em face de um “europeu” adulto, racional, sensato e responsável. Assim, essa “infantilização do homem árabe”, seja o “idiota” fanfarão, sexomaníaco, fanático, seja o fanático e perverso, é incapacitado e distanciado dos valores “universais” de um “Ocidente” adulto e racional, e portanto claramente considerado incapaz[8]. Tal “infantilização” é bastante evidente, por exemplo, no clássico, hollywoodiano, “Gunga Din”, de 1939, dirigido por George Stevens (1904-1975), a partir de um poema de Rudyard Kipling, onde um jovem nativo – o personagem título Gunga Din – de idade incerta, infantilizado como um “scort” da tropa – , sonha em ser “um soldado da Rainha (Vitória)” e só vê sua realização como indivíduo, enquanto pessoa, no Outro absoluto, no colonialista que ocupa e saqueia o seu próprio país – literalmente – o seu próprio povo. Nesse espelho perverso,  o exército colonial britânico é a única realização possível de Gunga Din enquanto persona. O poema de Kipling, neste caso, encaixa a perfeição, no processo descrito por Frantz Fanon de “interiorização do colonialismo” na realização do Eu exclusivamente enquanto projeção do colonizado no colonizador. Neste sentido o filme de Stevens, mais uma vez com a participação primorosa de Douglas Fairbanks, é uma obra-prima da aniquilação do Eu como um processo fundamental do fenômeno colonial e da negação dos aspectos mais brutais do Imperialismo[9].

Outra forma de tratar o “Oriente”, era ignorá-lo: houve um tempo do silêncio; o tempo das independências dos países árabes, em especial entre os anos de 1950 e 1970, quando praticamente as grandes aventuras do cinema se deslocaram da região. Com a guerra de independência da Argélia e o nasserismo campeando no Egito, e o pan-arabismo por quase todo O Oriente Médio, foi difícil manter a visão de credulidade e ignorância ingênua apostas ao homem árabe. Algumas produções, poucas em verdade, na maioria das vezes em circuitos alternativos, deram uma visão alternativa, dura da luta pela libertação do colonialismo. É desta época, 1966, o incrivelmente tenso filme de Gillo Pontecorvo (1919-2006) “A Batalha de Argel”. Agora, o árabe, no caso o argelino, organizado e combatente, surge com uma imensa capacidade política, engenhosidade, sangue frio e sentido de coletividade. O traço de violência desloca-se do perverso, infantil e fanático, para a luta coletiva pela liberdade e o cálculo político, abrindo um debate que envolveria os grandes nomes da filosofia e da política contemporânea, como Jean-Paul Sartre, Merleau-Ponty, Marcel Camus e o próprio Frantz Fanon sobre a mística do Terrorismo e que irá, em pouco desembocar, via a emergência do movimento negro antilhano, nos “Panteras Negras” nos Estados Unidos[10].

Mais tarde, por um curto espaço de tempo – a ilusão duraria pouco – os mujahidins, os chamados combatentes da liberdade pelo então presidente Ronald Reagan (1981-1989), foram chamadas às telas para ilustrar o “valor” combatente muçulmano. Eram tempos da “Segunda Guerra Fria” (1979-1991), quando o Presidente Reagan valia-se do fundamentalismo islâmico para combater o “Império do Mal” no Afeganistão – referência à invasão do país pelos soviéticos em 1979.  Talvez, os mujahidins ou “combatentes da liberdade” afegãos fossem um tanto bárbaros e fanáticos na sua luta contra os soviéticos, mas ciosos da sua liberdade e da sua filiação ao lado do “Ocidente”, como no fanfarão filme Rambo III (direção de Peter MacDonald, 1988), traz para o grande público ocidental uma mensagem positiva de um guerreiro muçulmano antissoviético, bastante adequado para a propaganda americana. Mais uma vez trata-se de um indivíduo indisciplinado, reunido em pequenos grupos, que não luta num exército disciplinado e não obedece a regras, mas usa sua ferocidade na defesa da terra e da sua fé, perverso na luta, limitado e preconceituoso. Só que agora não importava, posto que matasse comunistas.

Tal ilusão duraria pouco. Logo após 11 de setembro de 2001, ou mesmo antes, quando de ataques muçulmanos a alvos americanos como o desastre de uma missão na Somália em 1993 – origem de “O Falcão Negro em Perigo”, de Ridley Scott, em 2002 – ou os ataques contra as embaixadas no Quênia e Uganda em 1998, o muçulmano, e em especial o árabe, passa a ser visto como o substituto ideal para o “soviético” impiedoso das franquias cinematográficas e series televisivas do tempo da Guerra Fria[11].

A partir deste momento, a fala árabe – e de outras culturas – tornou-se, para o Ocidente, a fala do radicalismo islâmico. A publicação, primeiro como artigo e depois como livro, de “Choque de Civilizações”, de Samuel Huntington, em 1996 (o artigo é publicado na revista “Foreign Affairs”, em 1993) veio aprofundar ainda mais a díade Ocidente/Oriente como construções identitárias opostas e retroalimentadas.

Mesmo que bons intelectuais na Europa, em especial em países com forte presença muçulmana, como França, Inglaterra e Alemanha, tenham ainda por um tempo, apostado no multiculturalismo, à chegada ao poder de partidos mais “nacionais” ou a conversão de antigos partidos universalistas a uma posição mais “nacional”, em especial frente à maré conservadora e xenófoba em ascensão (em especial na Inglaterra, França e Alemanha, com o “Front Nationale”, a “Alternatif für Deustschland”, o fenômeno do “Brexit”, etc…), o fosso entre uma visão do “nós” e o “eles” aprofundou-se e espraiou-se por amplas camadas populares.

A expansão e intensificação dos atentados terroristas do ISIS/Daesh, entre 2016/2018, só veio ampliar tal fosso e construir uma imensa “zona cinza” de relacionamentos mutuamente povoado de incompreensão, desconfiança, raiva e preconceito entre cidadãos de origens árabes e europeus. Esta “zona cinza” é ainda mais perigosa posto ser mais concreta, real, nas relações diárias entre as camadas sociais mais populares (e atingidas pela crise econômica e o desemprego decorrentes da Crise de 2008) que colocam face a face camadas médias de brancos europeus e europeus de origens árabes, turcos e demais procedências muçulmanas. Assim, nestes grupos, no dia-a-dia a possibilidade da emergência do desafeto é crescente e o preconceito se enraíza.

Ante a desconfiança e o preconceito os grupos de “beurs”, turcos, “blacks” e outros tendem a se refugiar em suas identidades originais, muitas vezes reconstruídas e imaginadas. Jovens, filhos da imigração, passam a usar véus ou a jalaba e muitos se convertem a formas mais integristas do Islã, buscando uma comunidade imaginária onde se sintam parte integral de algum passado e encontrem uma solidariedade e uma história que de sentido a toda uma vida marginalizada. Normalmente, e eis que aqui a “fuga” para uma identidade reconstruída emerge como um novo problema, tal reconversão se dá em direção a um Islã que não consegue conviver com uma sociedade envolvente laica, consumista e permissiva.

Abrem-se as portas para grandes e trágicas possibilidades de choque. Principalmente porque o Islã integrista não reconhece um elemento central da construção das modernas sociedades ocidentais: a distinção das esferas do agir público e das escolhas da vida privada.

É aí, na profunda interconexão, ou mesmo indistinção, entre agir público e vida privada, no caráter exteriorizado, quase “codificado” do Islã – o que explica a relevância da adoção da “Charia” [12]-, que surgem as diferenças culturais mais valorizadas por proeminentes representantes, radicalizados, do “contato” ou “choque” entre Oriente/Ocidente. Um ponto polêmico, e sempre explorado, reside na certeza do integrismo muçulmano – e de todo fundamentalismo –  de que não é possível a salvação da alma individual com descompromisso com as condições materiais e do agir público do próprio fiel, com sua vida cotidiana e sua relação com a sociedade envolvente, com o todo. Um só ato “haram”, pecaminoso, um ilícito, ou um indivíduo que insiste neste ilícito, pode prejudicar toda a comunidade. A escolha individual, a prática religiosa própria e adequada de cada um, não é para tais rigoristas o suficiente: toda a comunidade, a “ummah”, deve ser igualmente “temente” e isenta da presença do ilícito – o que explica a insistência em converter todos em sua volta[13].

A própria presença da noção de “haram”, podendo ser traduzido para além de pecado por “lícito”, evidencia a íntima relação entre o Direito, incluindo o Direito Público e Constitucional, e a religião no mundo arabo-muçulmano. Aqui reside uma das incompreensões básicas na percepção do Ocidente sobre o Islã, muitas vezes esquecendo-se do papel do Direito Canônico, da primazia do papel da religião nas sociedades de Antigo Regime no Ocidente e mesmo nos países coloniais – o padroado, no Brasil, por exemplo, ao menos até o século XVII e as soluções encontradas nos chamados Tratados de Vestefália de 1648.

O Islã, ao contrário, indistingue a esfera pública e a esfera privada na sociedade, buscando no agir político uma integralidade evidente com a fé, a partir do que se define o licito (“halal”) e o ilícito (“haram”). Assim, um poder político que permita o “deboche” – uma referência aos costumes e formas de comportamento públicos considerados excessivos ou imorais, como no Ocidente -, os vícios e o relaxamento dos costumes – muito especialmente em relação à família heteronormativa, no mais das vezes patriarcal e autoritária  – não poderia, nunca, ser um regime considerado justo e temeroso à Deus pelos islâmicos[14]. A principal fonte do debate não reside, por exemplo, na origem ou no caráter democrático de um regime político, mas no fato de ser, ou não, temente à Deus. Para os rigoristas o principal mérito de um Estado é ser pio, submetido à vontade Divina e seguidor das regras estabelecidas conforme o Corão e a Charia e os Hadidts. Evidentemente, eleições diretas – como no Irã e recentemente no Egito e Tunísia, são plenamente aceitáveis, dentre condições que não permitam colocar em risco ou renegar a fé do Profeta, impondo-se, desta forma, um controle superior, religioso, à expressão da vontade popular.

A ideia, de origem europeia, racionalista e iluminista, consolidada no Ocidente do século XVIII, de separação entre a esfera da vida pública, onde vigem critérios laicos, e a vida privada, de livre escolha do indivíduo e de não intervenção do Estado, por exemplo, na educação dos filhos ou na gestão doméstica – no âmbito esfera privada está a casa, a família, a religião – não seria, para estes setores rigoristas do Islã, aceitável[15]. Eis aí as bases de um forte debate. Mas, note bene, um debate interno ao Islã, onde correntes ditas “moderadas”, “progressistas”, que muitos denominam – conforme a imprensa egípcia incialmente o fez nos anos de 1930 – de “Islã das Luzes”, colocam-se claramente contrários à imposição estatal da fé e dos costumes daí derivados, através do código legal-religioso da Charia. A imposição da Lei Islâmica, na forma da Charia, tornou-se, contudo, o imperativo básico dos movimentos rigoristas, desde os Talibãs, até a Al-Qaeda, passando por entidades como o Boko Haram, na Nigéria, e o autodenominado “Califado Islâmico”, na Síria-Iraque.

Desde o século XIX, no entanto, primeiramente no Império Otomano, depois na Pérsia e no Egito, surgiram movimentos favoráveis à adoção de uma legislação civil, não religiosa, abrindo um amplo debate nas sociedades muçulmanas contemporâneas. Particularmente no âmbito do Direito Constitucional, onde estão as regras que vigoram na relação do Estado com a cidadania, e no âmbito do Direito Civil referente à família, dá-se um forte embate entre as correntes religiosas mais rigoristas e o Islã modernizante. Tal debate, desde os anos de 1920, levou, também, a emergência de forma reativa de entidades rigoristas, contrárias à superação da Tradição, passando uma boa parte da intelectualidade (e da população) a rejeição de qualquer tipo de “modernização” ou “inovação”, considerando tais “importações”, identificadas com o poder colonial imperialista e a intervenção estrangeira, como “bid´ah” (“inovação” indevida), e, portanto, ilícito, “haram”[16]. Não há, entretanto, de forma alguma, uma visão única, homogênea, neste debate e nem mesmo os rigoristas são unificados sob uma única corrente de opinião ou mesmo majoritários.

No Ocidente a emergência da diferenciação entre público e privado foi, exatamente, uma resposta às terríveis guerras de religião que sacudiram a Europa entre 1517 (Proclamação das Teses de Lutero) até o século XVII. A resposta de intelectuais e políticos (muito especialmente depois dos Tratados de Vestefália, de 1648) foi deixar para esfera das escolhas privadas a questão religiosa, mantendo-se uma noção superior à pertença religiosa: primeiro de “leal” súdito e, com advento das Repúblicas, de “cidadão”. Contudo, mesmo nos dias de hoje, setores influentes nos Estados Unidos e na Europa – e agora no Brasil – exigem uma postura regressista do Estado sobre casamento, aborto, união civil de gays, condição feminina, etc.. o que viola a clássica noção de um Estado laico, acima é indiferente às escolhas religiosas de seus cidadãos e sua incidência na vida particular de cada um. Assim, muitos rigoristas, na confluência com os fundamentalismos, defendem que seja regulada e imposta pelo Estado normas e costumes ao conjunto dos cidadãos, mesmo aos não religiosos ou aqueles com entendimento religioso diverso, impedindo a livre escolha dos indivíduos. Na verdade, em vários países ocidentais e em jovens nações africanas de dominância evangélica (e onde agem missionários ocidentais) a liberdade de escolha sobre família, costumes e gênero é fortemente combatida[17].

O Islã, para os clérigos mais conservadores e integristas, em face dos graves vícios e danos da vida moderna (mais uma vez a ênfase recai na família arcaica normativa ) duvida da resposta gerada no Ocidente e na sua capacidade de forjar pessoas íntegras e felizes, apontando para a disseminação do uso de drogas, o sexo pré-marital e de doenças como o sintoma de uma crise terminal. Muito especialmente o divórcio e o adultério, ao lado da homossexualidade, são vistos como fontes da infelicidade e de ofensa à “ummah” – o conjunto dos fiéis, além de imperdoável “deboche” nos costumes. Neste sentido para estes segmentos religiosos o Islã tornou-se uma forma de ação política, já que define tarefas para o Estado, remetendo a uma antiga polêmica sobre a natureza da primeira comunidade de fiéis em Medina após a vitória do Profeta sobre os idólatras de Meca.

Já naquele momento, em 630, colocava-se a questão da união, na pessoa do Profeta, do poder político – comandando do Exército, Juiz, distribuidor de ajudas e do butim de guerra – com a figura do “pregador enviado por Deus”. A questão, colocada pelo teólogo Ali Abdemaziq, em 1925, sobre a natureza da comunidade de Medina e o papel do Profeta – voltando-se para uma passagem do Antigo Testamento, aceita e incorporada pelo Corão onde se afirma: “… os Profetas são eleitos de Deus, poucos reis o são” – implicava em abrir em brecha a unicidade do poder espiritual e secular no Islã (e assim na própria natureza do califado), prometendo, por esta via, uma ampla reforma do Islã. Este compreendido como a soma do Corão, da Charia e dos Hadiths, mas afirmando que enquanto o Corão é “dinâmico”, a Charia e os Hadiths, logo a Tradição ou “Suna”, são históricos. Como obras históricas são interpretáveis, ao contrário da dinâmica de um Corão “incriado”, eterno e divino. Textos históricos, são obras de um grande número de homens que viveram nos três séculos após a morte do Profeta, são, portanto reformáveis e passíveis de interpretação. Aqui residiria a chave da “Grande Discórdia” – a chamada “Fitna Kubra” [18]-, aberta pelas reformas na Turquia Otomana, na Pérsia e na emergência do “Islã das Luzes” no Egito e Síria, contra os quais se ergueriam a autoridade dos “antigos”, os “Predecessores das primeiras gerações” de seguidores do Profeta, os denominados “salafi” ou salafitas, os antigos[19]. E em primeiro lugar os “antigos” da Arábia Saudita, recém-fundada, onde a família Saud – para garantir seu trono contra a família Hachemita de Meca – alia-se estreitamente ao “salafismo” de tipo “wahabita” ultra ortodoxo, mas voltado para o cumprimento da Charia do que para uma interpretação solidária e generosa do Divino Corão – é opção pela conservação em face da caridade. Uma versão “teocrática” da “ummah” de Medina, desde 630, é atualizada, tornando a história do Islã “presentificada”, imóvel e inspirada num conjunto de obras que são, indevidamente, ditas como “reveladas”: o Corão, a Charia e os Hadiths, com ênfase nos dois últimos corpos de leis (a “Fiqh”) – o que os teólogos “das Luzes” do Islã não poderiam aceitar.

O Corão jamais poderia estar em igualdade com a Charia e os Hadidts.

Para estes “antigos”, desde os primeiros tempos da expansão muçulmana, a política num país convertido é islâmica ou então estranha ao Islã, e logo ímpia. Uma política pia, centrada na Charia, seria a única possibilidade de evitar a perda das pessoas frente a um Estado moralmente relaxado. O Estado laico seria visto como um Estado sem Deus, onde o vício poderia instalar-se livremente. Para o Islã não basta uma alma limpa, mas busca-se junto o corpo limpo do conjunto da “ummah”. Para o verdadeiro “muslim”, devem-se executar as leis de Deus na terra. Como “leis” entendendo-se não somente as regras do Corão reveladas pelo Profeta, como ainda o vasto corpo de prescrições da Charia, construído de interpretações ao longo de três séculos após a morte do Profeta e, ainda, a coleção de “Hadiths” [20].  Este seria seu verdadeiro papel e não a conformação com as leis dos homens, expressa pelo Estado laico, e produzidas por assembleia eleita. Neste sentido, a busca de um Estado verdadeiramente muçulmano, pio, implicava na recusa da intromissão colonial e neocolonial do poder político do Ocidente bem como os Estados árabes afastados da Tradição (como nas suas formas de socialismo, pan-arabismo ou liberalismo) e, ainda, da completa independência do Estado face à Religião.

Desta forma, desde o início da expansão do Imperialismo na região (a França já em 1830 na Argélia e a Grã-Bretanha com o Canal de Suez em 1869), religião e política estiveram profundamente associadas na luta anti-imperialista travada por alguns setores religiosos árabes[21]. Foi um processo natural que um seguimento importante do Mundo Árabe associasse com a religião muçulmana enquanto trincheira da resistência contra a ocupação de seus países e contra a relação espoliadora com o Ocidente (em especial depois da descoberta do petróleo e a intromissão dos ingleses no Irã e dos americanos na Arábia).

Contudo, este não era o todo do Mundo Árabe, havia outros seguimentos, outras falas. Muitos buscaram uma modernização das instituições, voltando-se bem mais para as características solidárias e generosas do Corão – garantido como “Livro Revelado” – e abandonando ou relativizando o papel dos “Hadiths” e da Charia, enquanto criação humana, datada e com uma história presa ao passado Inúmeros pensadores, em países como Egito, Síria e Marrocos, propuseram processos diversos de “aggiormnamento” do Islã, muito antes do Concilio Vaticano II (1961-1965) voltar-se para atualização do cristianismo.

Há todo um “mundo” árabe e muçulmano negado pela visão homogênea do lugar de fala imperialista e orientalista.

A experiência colonial, o trauma da ocupação e depois o “Nakba”[22], além é claro, a vigência de regimes obscurantistas e tirânicos no pós-independência, favoreceram a prevalência em mesquitas, escolas e universidades de um clero conservador, reativo a quaisquer mudanças e que, em troca do controle das instituições religiosas, da instrução (tão precária) e de várias instâncias jurídicas, aceitavam regimes profundamente corruptos e ditatoriais, como na Arábia Saudita, Tunísia, Marrocos, etc…

Assim, a “especificidade” da história árabe, e daí por diante do próprio Mundo Árabe, comportariam uma originalidade – mais uma vez a tese do “sonderweg”, ou seja, das vias únicas de desenvolvimento histórico de determinado país ou sociedade – tão diferente do Ocidente que seria incapaz de gerar uma classe média numerosa e próspera (no Ocidente uma “burguesia”) e consequentemente uma sociedade civil capaz de mediar os temas religiosos e o Estado, não eclodiu no mundo árabo-muçulmano. Daí produziu-se diagnósticos de arcaísmos atávicos que marcariam a literatura ocidental sobre o Islã e suas sociedades, mal disfarçando as justificativas (neo)colonialistas e a continua intervenção ocidental. A única saída para evitar a intolerância, proteger minorias, seriam governantes fortes, autoritários, capazes de controlar as massas e evitar que o clero muçulmano impusesse  uma ditadura religiosa. Neste sentido, a ditadura pessoal, militar ou regimes semifascistas, de qualquer forma considerados modernos – posto que laicos – seriam preferíveis ao Ocidente. O exemplo da Revolução Iraniana de 1979 e a fundação da República Islâmica no país comprovariam a tese da inaptidão dos muçulmanos ao regime democrático e a preferência do Ocidente por longos e “estáveis” regimes tirânicos, como do Xá Reza Pahlevi (1941-1979).

A esta pretensa excepcionalidade, ou impermeabilidade do Islã ao modernismo e a democracia, juntar-se-ia uma boa dose de evolucionismo e eurocentrismo, marcando as obras dos historiadores e cientistas políticos. Por esta via, o mundo arabo-muçulmano seria obrigado a repetir a história do Ocidente e organizar-se conforme as regras oriundas das Revoluções ditas “burguesas” da Inglaterra (1698), dos Estados Unidos (1776) e da França (1789). A possibilidade de um desenvolvimento original não é considerada, mesmo quando a partir de 2011 as chamadas “Primaveras Árabes” sacudem os antigos regimes tirânicos apoiados (Egito, Tunísia, Líbia, Bahrain, Marrocos) ou malvistos (Síria) pelo Ocidente e, malgrado as adversidades, continuam a produzir novos cenários políticos (Tunísia, Egito).

Um debate contemporâneo, já 2003, conduzido por Abdou Filadi-Ansary – importante cientista político marroquino radicado em Londres e responsável por boa parte do relançamento do debate sobre o “Islã das Luzes” – colocava os pontos centrais das principais teses ocidentais sobre o Islã e sua pretensa “excepcionalidade”. Tratava-se de insistir na questão sobre a necessidade, capacidade e possibilidade de se reformar o próprio Islã internamente em direção à democracia. Neste sentido, as teses de grandes pensadores e cientistas sociais ocidentais, como Ernst Geller e Maxime Robinson, sobre a religião muçulmana e sua (não)aptidão para o regime representativo são colocadas à prova em conformidade com textos clássicos de pensadores muçulmanos, como veremos mais à frente. No âmago de debate reside o risco historicista, sempre presente, de acolher um momento da história – onde o Islã tornou-se o principal traço de identidade do árabe, nos anos finais da vida do Profeta em Medina – e considerá-lo como permanente, ahistórico e insuplantável. Praticamente todos os observadores fizeram isso após o impacto da Revolução Iraniana de 1979, desconhecendo o debate interno entre as diversas percepções do Islã. Os grandes atentados terroristas organizados sob a égide da “nebulosa Al-Qaeda” desde 1991 (e acentuados de forma “espetacular”, massiva e cruel depois dos 11 de setembro de 2001) teriam confirmado a inevitabilidade do Islã militante e integrista como fala única e legítima do Mundo Árabe. A capacidade de ver as especificidades, de ler as diferenças e de dar voz aos mais diferentes agentes das sociedades árabes desaparece nesta visão homogeneizante e imutável do “outro” – o árabe muçulmano terrorista. Esta leitura, infelizmente presente em trabalhos de grande relevância, mostra-se ainda uma vez herdeira da tradição colonial e acima de tudo a continuidade da sobredeterminação dos sistemas de interpretações sociais pela história, num excesso historicizante onde o tempo vivido é absolutizado como experiência insuperável, permanente. Assim, a “mouvance” islâmica das décadas de 1970 e 1980 do século XX acaba por ser toda a possibilidade de mobilização social no conjunto do mundo árabe, visto como homogêneo e atemporal[23]. O que as mídias ocidentais mostram, e destacam, é quase sempre a reação ultraconservadora, salafita, ao impacto da “Grande Discórdia”, deixando de lado os amplos setores reformistas e a imensa maioria de crentes estranha ao debate. Mas, o caráter “espetacular” da ação fundamentalista acaba por identificar todo o Islã, como antes o “exotismo” do Orientalismo, como a face revelada do mundo muçulmano.

Esta “especificidade” das sociedades arabo-muçulmano foi, claramente, exposta como a material básico de grande parte da literatura ocidental sobre a temática por Edward Said, sob a forma de “Orientalismo”, base sobre qual se ergueram institutos, departamentos e carreiras acadêmicas, tudo isso sem consideração do “impacto” das relações – “choque” sim, como querem alguns culturalistas imperialistas, mas também como cooperação, empréstimos, difusão, integração e complementaridade. A escolha de um ou outro destes fenômenos para caracterizar o Islã ou as sociedades muçulmanas depende inteiramente do momento e do “lugar de fala” de cada especialista[24]. E estes nem sempre estão em condições de avaliar seus próprios lugares neste longo debate. Desde a moderna intrusão do Ocidente no Oriente Médio – e podemos datar isso com a tentativa de conquista do Egito por Napoleão, entre 1798 e 1801 – as relações Ocidente-Islã (tão ricas no campo da filosofia na Idade Média, nas técnicas e no comércio na Idade Moderna) tornaram-se conflituosas e marcadas pelos fenômenos do Imperialismo e do Colonialismo.

Devemos destacar que poucas vezes a história da conquista, ocupação e partilha do Oriente Médio, com o primeiro “Nakba”  – a Partilha da Grande Síria -, conforme a expressão original do historiador árabe George Habbib Antonius, 1891-1942[25] – é considerada e muitas vezes a repetição das intromissões ocidentais, mesmo que sob motivos ditos humanitários, como aqueles derivadas do instituto do “RtoP” – ou seja, a “Responsabilidade de Proteger” grupos minoritários – redunda na reatualizarão da história, presentificando de fato ou no imaginário das populações arabo-muçulmanas fenômenos como as Cruzadas ou a Conquista colonial do século XIX.

Não sendo bastante, um segundo “Nakba” virá na esteira da derrota na Guerra dos Seis Dias, de 1967 – enquanto para os árabes não-palestinos aparece apenas como “an-Naksah”, a Derrota -, com a ocupação da Palestina histórica e uma nova leva de refugiados – ao menos 711 mil refugiados – tendo que abandonar seus lares. Hoje, com a longa ocupação e a ameaça constante de nova partilha da Palestina, desenha-se o “terceiro Nakba”, a inviabilização de um Estado Palestino factível ao lado do Estado de Israel.

O próprio desconhecimento da obra, e da vida, George Antonius é um sinal da incapacidade da historiografia ocidental em ler o pensamento arabo-palestino em suas próprias formulações[26].

Historiador e diplomata Georges Habbib Antonius/ 1891-1942.

Além disso, o impacto do Imperialismo, ou “Primeiro Nakba”, dois importantes fenômenos históricos, de caráter processual e longe do episódico, são, frequentemente descartados da análise da “especificidade árabe”. De um lado, a longa tolerância do Islã com outras religiões, sua convivência pacífica e tolerante com o Cristianismo e o Judaísmo – religiões ditas “do Livro”, como denomina o Corão, a Bíblia e a Torá. O fato de que a vida cotidiana de judeus e cristãos na sociedade muçulmana – os chamados “dhimmi” – só sofreu problemas sistêmicos e impactantes depois do ataque pelo Ocidente com as Cruzadas (1096), com sua incrível violência (como a chacina da população muçulmana, judaica e mesmo cristã de Jerusalém em 1099) [27]. Mesmo depois das cruzadas, cristãos e judeus tiveram papel de destaque na Síria, Iraque e na própria Turquia Otomana. Historiadores como Marc Ferro insistem na imbricação das comunidades judias, cristãs e muçulmanas sob a administração turco-otomana até avançado o século XIX, inclusive no Al-Andalus ibérico, com tradições e ritos muitas vezes comuns e de mútuo respeito. Foi a penetração ocidental, sob a forma do Imperialismo e do Colonialismo, ao largo do século XIX, que levou a demarcação forçada e extrema entre Islã e Cristandade, distinção animada e reforçada pelos missionários e as ordens religiosas interessadas em constituir-se em “protetores” das recém-inventadas “minorias” – cristãos de variadas confissões, armênios, yazids, drusos, coptas, etc… – no Oriente. Nega-se, assim, uma história secular de convivência – na Síria, no Iraque, no Egito, no Al-Andalus em favor de uma história presentificada no terror do Califado islâmico, um simulacro de história.

No momento em que tais minorias constituíram-se em ferramentas de penetração, desestabilização e partilha do Estado multiétnico e multireligioso otomano tornar-se-iam também em alvos preferenciais da repressão estatal otomana e das ações de reforço identitário muçulmano (em especial contra cristãos armênios, desde os massacres de 1895-1897 e gregos a partir de 1897, culminado no Genocídio Armênio, Medz Yeghern, de 1915-1917 ).[28].

O Outro fenômeno foi a repressão contínua que franceses e ingleses praticaram contra toda liderança árabe – muçulmana ou não! – capaz de contrapor-se ao domínio colonial, destruindo as bases laicas e nacionalistas árabes. Assim, as lideranças árabes laicas, progressistas e dispostas ao diálogo com o “aggiormnamento” do Islã – enquanto ferramenta de resistência anti-ocidental – foram sistematicamente combatidas no Líbano, Síria, Iraque, Argélia e Egito chegando, muitas vezes, a intervenção direta do poder (ex)colonial desde o século XIX como no caso do Egito e Sudão e no século XX no Iraque, por W. Churchill em 1924 com seus ataques aéreas contra aldeias curdas, por exemplo[29]; ou no Irã, contra o primeiro-ministro Dr. Mohamed Mossadeqq, em 1953; contra  o “raíz” Gamal Abel Nasser, no Egito em 1956 ou de forma permanente pela França na Argélia, no Tchad e no Mali depois dos anos de 1960[30].  Em suma, o Ocidente trabalhou ativamente na destruição de lideranças anticoloniais que não fossem religiosas e, ao mesmo tempo, valorizou como o “muçulmano bom”, a resistência muçulmana, religiosa e conservadora e terrorista[31].  No caso, seria mais uma vez a mesma estratégia – como foi no Afeganistão – de apoiar radicais islâmicos contra regimes moderados, laicos ou de Esquerda que contrariassem os interesses ocidentais[32].

Assim, durante décadas, antes e depois da Guerra Fria (1946-1991), o Imperialismo podia esgrimir o argumento da tolerância e da “especificidade árabe” para apoiar ditaduras extremamente cruéis, posto que a única alternativa fosse o Islamismo radical. A negação do Imperialismo e da sua história, no Mundo árabe, é parte fundamental do atual processo de revisionismo histórico e da construção de um Outro como o mal absoluto.

[1] LEUTRAT, Jean-Louis. Le Western. Paris, Galimard, 2001, p.13.

[2] FANON, Frantz. Les Damnés de la Terre. Paris, Maspero, 1961, p. 22 e ss.

[3] Originalmente o poema de Kipling teria sido escrito para festejar o Jubileu de Diamante do reinado da Rainha Vitória (1837-1901), mas o autor teria refeito o texto e publicado no “The New YorK Sun”, em 1899, incentivando os Estados Unidos a assumir o controle das Filipinas. Ver: MAMA, Amina. Beyond the Masks: Race, Gender, and Subjectivity. Nova York, Routledge, 1995.

[4] Ver: KELLER, Richard. Action psychologique »: french psychiatry in colonial North Africa, 1900-1962, Rutgers University. The State University of New Jersey, 2001, 310 p

[5] SAID, Eward. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, Companhia de Bolso, 2007, p. 18 e ss.

[6] LA COUR GRANDMAISON, Olivier. Coloniser, Exterminer. Sur la guerre et l´état colonial. Paris, Fayad, 2005, p. 60 e ss.

[7] Ver ASSIM ERA HOLLYWOOD. In: https://assimerahollywood.wordpress.com/2013/04/30/filmes-o-ladrao-de-bagda-1924/. Consultado em 16/02/2017.

[8] FANON, Frantz. Les Damnés de la Terre, 1961, éd. La Découverte poche, 2002,

[9] NEUMANN, Franz.

[10]MATHIEU, Anne. Jean-Paul Sartre et la Guerre de l´Algerie. In: file:///C:/Users/FranciscoCarlos/Downloads/ESSF_article-4479.pdf, consultado em 16/01/2017.

[11] Ver: Qui sont les prophètes et les envoyés de Dieu ?In: http://comprendre-islam.com/contact/. Consultado em 16/01/2017.

[12] Para a terminologia teológico-juridica muçulmana utilizamos, além da GOLDZIHER, Ignaz, Muhammedanische Studien. Halle, Universitätsverlag, (1890), 1961, os seguintes autores: GULLAUME, A. The Tradition of Islam, Oxford, University Press, 1924; BOUSQUET, George-Henri. Le Droit  musulman, Paris, Armand Colin, 1963;

[13] As referências aos termos árabes, todos “codificados” na tradição muçulmana serão repetidos ao longo do texto. Assim, cabe uma definição que será aperfeiçoada ao longo do texto. A saber: “Charia” (também “sharia” ou “sharīʿah”): trata-se do imenso acervo de jurisprudência do Islã, caracterizando a especificidade da religião nas sociedades arabo-muçulmanas como a indistinção entre religião e Direito, daí a expressão de uma religiosidade codificada; “haram” (ḥarām): o ilícito, proibido ou pecado, advém de uma expressão pré-muçulmana, incorporado no Corão (o contrário de “halal”, aquilo que é licito); “ummah”: a comunidade ou nação dos fiéis, unidos na crença ao monoteísmo de Allah, no papel do profeta e no Juízo Final, independente de raça, nacionalidade ou gênero, dando ao Islã seu caráter de universalismo.

[14] Boa parte do material desta introdução advém de uma entrevista realizada pelo autor com o “sheik dos fiéis” no Brasil, Dr. Ahmed Amim, publicada em: TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. A Voz do Islã no FSM, In: CARTA MAIOR. http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/6, Belém, 2009.

[15] Devemos lembrar que grandes potências, como no Japão Imperial até 1945, a ideia de uma comunhão do sagrado com a vida política, centrada na crença da divindade do Imperador, eram plenamente aceitáveis e que mesmo, na região, as relações entre Estado e Religião são estreitas, como no caso do moderno Israel.

[16] “Bid´ah”, em árabe, inovação, é uma expressão, no campo religioso, que se aplica às tentativas de modernização ou de reinterpretação racionalista do Islã, na maioria considerada como uma doutrina herética.

[17] EL PAÍS. “Africa persigue a los homosexuales”, 06/02/2011, p. 36.

[18] DIAIT, Hichem. La Grande Discorde: politique e religion dans l`Ilam des origines. Paris, Gallimard, 1989.

[19]MARTIN, Richard ( Ed.).  Encyclopedia of Islam and the Muslim World, Londres, Macmillan Reference, 2004, v.2, p.609. Ver ainda a nota 2.

[20] “Hadiths” ( em árabe, “hadith, sendo o plural correto “ahadith”) são o conjunto das “narrativas”, feitas por próximos do Profeto ou próximos aos próximos do Profeta, sobre a vida de Mohammed, de onde se deduziriam regras e ensinamentos para o bom fiel. Ver: AL-BUKHARI, Mohammed Ismail (810-870). Les Traditions Islamiaues. Paris, A. Honda et W. Marcais Ed., 1903-1904 e para uma análise dos textos: The Canonization of Al-Bukhari and Muslim: BROWN, Jonathan. The Formation and Function of the Sunni Hadith Canon.Leiden, BRILL, 2007

[21] Para um amplo debate sobre o tema temos duas obras básicas: MARIN GUZMÁN, Roberto. El fundamentalismo islâmico em El Medio Oriente contemporâneo. San José, Editorial de La Universidad de Costa Rica, 2001 e ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus. São Paulo, Cia das Letras, 2001. Deve-se ter sempre, para este debate, em mãos e em mente, o texto fundante e de onde são retirados, muitas vezes de forma acrítica e sem os devidos cuidados, os próprios termos do debate: The Koran. Oxford, Oxford World´s Classics, 1964.

[22] “Nakba” ( ou al-Hijra al-Filasṭīnīya ), a “catástrofe”, termo que designa o êxodo de cerca de ( no mínimo) 711 mil palestinos de suas casas após a Guerra Árabe-Israelense de 1947-1948, sendo deslocados para campos de refugiados. Ver Relatório da UNRWA In: http://www.unrwa.org/search/google/userfiles%20reg%20ref%202%20pdf.

[23] É essa a principal crítica de Filali-Ansary aos textos de Ernst Geller e dos demais especialistas ocidentais sobre o Islã, assumindo que a história só seria um devir constante no Ocidente enquanto para o Oriente o tempo seria morto, paralisado, simplesmente presentificado no momento de sua descoberta pela ciência social ocidental, residindo aí a característica básica do Islã, sua “especificidade”. Ver FILALI-ANSARY, Abdou. Réformer l´Islam? Paris, Découverte, 2003, pp. 59 e ss.

[24] Ver para isso o trabalho seminal de SAID, Edward. Cultura e Orientalismo, São Paulo, Companhia das Letras, (1993), 2011.

[25] Sob a denominação de “primeiro” Nakba nos referimos a partilha do Oriente Médio, em especial da Grande Síria, logo após a Grande Guerra Mundial, em 1920, em decorrência do acordo colonial Sykes-Picot, entre a França e a Grã-Bretanha, dando origem a Síria, amputada de boa parte do seu litoral, o Líbano e o mandato Britânico da Palestina, que daria origem a Israel e Palestina. Ver:  KRAMER, Martin. Ambition, Arabism, and George Antonius.  In: KRAMER, Martin. Arab Awakening and Islamic Revival: The Politics of Ideas in the Middle East. New Brunswick, Transaction, 1996, 112-23.

[26] ANTONIUS, George. The Arab awakening: the story of the Arab national movement. Philadelphia, J.B. Lippincott Ed., 1939 e PICAUDOU, Nadine.1948 dans l’historiographie arabe et palestinienne, 2010, In: https://www.sciencespo.fr/mass-violence-war-massacre-resistance/fr/document/1948-dans-lhistoriographie-arabe-et-palestinienne, consultado em 13/07/2019.

[27] MICHAUD, J. F. e ROBSON, W. History of Cruzades. New York, Bibliofile, 2009, pp. 61 e ss.

[28] FERRO, Marc. Le choc de l´Islam. Paris, Jocob Odile, 2002, PP. 20 e 21. Ver ainda para a questão das minorias e a intervenções ocidentais: RENOUVIN, Pierre. Histoire des Relations Internationales. V.6, Paris, Hachette, 1955, p. 192 e ss.

[29] TOYE, Richard. Churchill´s Empire. Londres, Macmillan, 2011.

[30] Ver: POLLACK, Kenneth. Arabs at War. Lincoln, University of Nebraska Press, 2002 e LONG, David E. e REICH, Bernard. Middle East and North Africa. Oxford, Westview, 2002.

[31] Ver: FROMKIN, David. Paz e Guerra no Oriente Médio. Rio de Janeiro, Contraponto, 2008.

[32] EL PAÍS. Fetulá Gülen, de mentor de Erdogan a acusado de ser su verdugo, In: http://internacional.elpais.com/internacional/2016/07/16/actualidad/1468694404_803312.html, 17/07/2016, consultado no memso dia.