É hora de os civis terem coragem

Para Francisco Teixeira da Silva, vivemos um momento único da história em que a política pode conduzir, com autoridade, os militares e sua visão salvacionista e patrimonialista de volta à caserna
Por Flávia Tavares
“A República deve ser agraciada com silêncio dos militares.” Essa é a conclusão de alguém que, por ofício, ouve o que os militares dizem e pensam. Francisco Carlos Teixeira da Silva é historiador. Por mais de 15 anos, tentou ensinar a novatos e veteranos a verdadeira história do Brasil. Encontrou a resistência de uma corporação que tem sua própria versão da história, que lhes atribui a missão de
fundar a nação e protegê-la de inimigos, inclusive imaginários, internos. Tudo pelo filtro de uma elite conservadora, agrária e patrimonialista. Chico, como pede para ser chamado, foi assessor do Ministério da Defesa no segundo governo Dilma.
Chegou a fazer uma proposta de reforma do ensino militar, discutida, em partes, com Darcy Ribeiro, com quem trabalhou. No currículo, haveria leitura obrigatória de 10 livros da literatura sobre a realidade brasileira, de Érico Veríssimo a José Lins do Rego, passando por Machado de Assis e Graciliano Ramos. “Não dá para formar oficiais que sejam bons funcionários públicos e guerreiros só com matemática binária”, ele acredita. Mas Chico encontrou uma oposição arrasadora — dentro da estrutura militar, mas também entre civis.
A tutela dos militares sobre os civis é secular, não começa pós-ditadura. Também não se agrava com a Comissão Nacional da Verdade, defende Chico. Ela é retroalimentada por militares que conservam sua mentalidade salvacionista nas 23 de agosto de 2023 academias. E por civis que recorrem às Forças Armadas para resolver seus problemas eventualmente. Conduzi-los de volta à caserna é um esforço que demanda coragem e autoridade. Mas, se houve na história um momento propício, é o atual. Professor titular de História Moderna e Contemporânea da UFRJ, crédito
que Chico mais se orgulha de ter por ter sido conquistado em concurso público, ele também ensinou na Escola de Guerra Naval (EGN), na Escola de Comando do Estado-Maior do Exército (Eceme) e na Escola Superior de Guerra (ESG). Conversa intensamente com oficiais, principalmente os “legalistas”. Diz-se respeitado nessa interlocução, mesmo com entrevistas e artigos frequentes em que descreve a visão de mundo equivocada dos militares brasileiros. Chico defende que é hora de civilizar o debate político brasileiro, no sentido de deixá-lo exclusivamente civil. “O Brasil não conseguiu institucionalizar uma relação com os militares que seja segura para a democracia.” Confira os principais trechos da entrevista.
O general Tomás Paiva, comandante do Exército, fala, em seu comunicado, que o Exército é uma “instituição coesa”. Então, é possível analisar Exército e Forças Armadas como uma instituição, sem fulanizar?
Ao perguntar se existe uma questão militar na República, é preciso abstrair os indivíduos e pensar a instituição. Me perguntam muito quantos generais do Alto Comando do Exército são legalistas, quantos são bolsonaristas. Essa não é efetivamente a questão. O ponto central é se perguntar se a República no Brasil conseguiu institucionalizar uma relação com os militares que seja segura para a democracia. A resposta é não. Não há uma relação saudável para a democracia no Brasil com o papel que os militares se auto-atribuem, e que algumas vezes os civis atribuíram a eles, indo buscá-los na caserna para resolver seus problemas. Essa relação não é republicana. Tem duas coisas que marcam profundamente o pensamento, ou melhor, o habitus dos militares na república brasileira. Em primeiro lugar, a noção de que eles são os fundadores da nação e da República. Isso se enraíza em dois mitos históricos: o de Guararapes, quando não existia sequer Brasil,
éramos uma colônia muito pouco povoada e eles expulsaram os holandeses e “salvaram” a unidade do Brasil. E o da proclamação da República, que teria sido feita por eles para encerrar um regime tradicionalista e escravista. Eles teriam sido a modernidade, o positivismo, a ordem e o progresso, e teriam derrubado o Império e assumido a tarefa de modernizar o Brasil.
É desses mitos históricos que nasce a pretensão das Forças Armadas de ser um “poder moderador”?
No Império, existia o poder Legislativo, no Parlamento; o Judiciário, nos tribunais; e o Executivo era exercido pelo primeiro-ministro, que no Brasil se chamava ministro do Império. Havia também um quarto poder, era o poder moderador, que residia no imperador e era muito forte, porque ele podia nomear governadores, dava títulos de nobreza — uma forma de fazer política — e dissolvia e convocava o Parlamento e as eleições. Esse quarto poder não foi recepcionado em nenhuma Constituição. Os militares entendem que eles são os herdeiros do poder moderador. E que podem
intervir na política republicana para restaurar princípios morais, principalmente na questão da corrupção, e ordenar as instituições a trabalhar nesse sentido de ordem e progresso. A segunda marca profunda na mentalidade militar, também ruim para a a vida republicana, é aquela que vem depois da Segunda Guerra, das relações com o Exército americano e da Guerra Fria: a ideia da existência de um inimigo interno. Não o combate a inimigos em fronteiras, que seria a função precípua das Forças Armadas. Dada a formação conservadora, mantida pelas escolas e academias
militares, esse inimigo interno é sempre visto em qualquer movimento com características de promoção e avanço social. Já foi o anarquismo, o comunismo, o varguismo, o trabalhismo, o social-desenvolvimentismo e agora é o petismo ou o bolivarianismo. Renomeado de comunismo.
Isso. Esses dois mitos deles, como fundadores da República e da nação e como os únicos capazes de combater o inimigo interno, fazem com que eles tenham uma visão sistêmica, para além dos indivíduos, sobre as relações deles, militares, com a política. Insisto no “para além dos indivíduos”. Nesta semana, escrevi um pequeno texto sobre o tenente-coronel Mauro Cid, que foi meu aluno na Eceme, e vários oficiais — eu converso com eles o tempo todo — disseram: “professor, não podemos falar em Forças Armadas ou Exército a partir de um indivíduo”. Esses são os que não estão cerrando fileiras em torno de Mauro Cid e tudo que ele fez e representa. São legalistas. Mas você vê que tem um problema de que qualquer crítica às Forças Armadas aparece como uma crítica pessoal.
Os militares não conseguem lidar com o fato de que não estamos preocupados com o general ou coronel tal. Estamos preocupados com o que permite que o coronel ou o general assumam um papel tão decisivo na República.
Essa mentalidade que o senhor descreveu é repassada tanto na formação quanto na atividade militar. A maioria dos professores nas academias são militares? Há espaço para alterar essas percepções?
Tanto na Escola de Guerra Naval como na Eceme, no Rio, já há uma maioria de professores civis, de alto nível, vindos por concurso público, sem nenhum pressuposto ideológico, e que orientam e dão aulas para militares. O programa de pós-graduação em assuntos marítimos da EGN e o programa de assuntos militares da Eceme são conduzidos largamente por professores civis. E as bancas de concurso foram formadas por professores advindos das universidades. Esse foi um momento único no segundo governo Lula, em que se deu uma ventilação nessas escolas.
Como é a receptividade dos militares com professores civis, especialmente de Humanas, que têm a pecha de serem de esquerda?
Olha, a universidade brasileira, nos anos 1980 e 1990, teve uma mutação ideológica muito grande. Os grupos que eram dominantemente marxistas dos anos 1960 e que fizeram oposição ao regime ditatorial foram convertidos, transformados em grupos pós-estruturalistas — isso imaginando que o Marxismo é uma forma de pensamento estruturalista. Principalmente, com o impacto de pensadores como Michel Foucault, eles alteraram a percepção tradicionalmente marxista, de esquerda. Isso é um pé de página, mas, de fato, os professores de História, Sociologia e Filosofia, para os militares, carregam um certo cartaz de “perigo”. Isso não se deve a um desvio ou uma postura de esquerda ou direita, mas sim porque trabalhamos com temas que são deixados de lado, sofrem apagamento. Um exemplo: esse mesmo Exército que cultua Guararapes não faz qualquer menção, em nenhuma escola militar, não tem um regimento, um batalhão chamado Zumbi.
Ora, o primeiro pedaço de território nacional que se torna independente, tanto de Portugal quanto dos holandeses, foi o quilombo dos Palmares. Esse reconhecimento das raízes populares, multiétnicas, o papel dos povos indígenas, negros, o problema da escravidão, nada disso é colocado. É um absurdo histórico que não haja um regimento Zumbi dos Palmares.
O que isso revela do conceito de heroísmo dos militares? É um pensamento da elite branca dominante proprietária de terras. Não é à toa que toda vez que se fala em reforma agrária, eles ficam desesperados. Mesmo a maioria absoluta dos militares não sendo proprietários de terra, eles incorporaram a ideologia da elite agrária do país. O MST, para eles, é o principal transtorno à vida
democrática do Brasil, e o MST sequer é um movimento socialista. É um movimento católico, cristão, radical, cooperativista, que aumenta a propriedade privada e a distribui, não acaba com a propriedade privada. Mas é difícil para eles entenderem.
A formação militar é essencialmente na matemática tradicional. Isso foi muito bem representado uma vez com o general Mourão falando da televisão. Ele começou a ditar equações, fórmulas matemáticas para dar conta de uma situação social. Essa visão matemática é totalmente binária. Não ajuda a pensar a complexidade da sociedade brasileira. Mas os militares imaginam que são os únicos que conhecem a sociedade brasileira, porque já serviram em Benjamin Constant, no Oiapoque, em Tabatinga. Sem perceber que indo com essa visão, com essas lentes profundamente
elitistas, eles só confirmam o que já queriam ver. Além dessa ideia salvacionista, de que são os únicos que não são corruptos, eles têm também uma imagem da história do Brasil sustentada numa visão elitista, patrimonialista e agrarista da sociedade brasileira.
Corporativista também? Toda vez que há uma reação da sociedade civil para eles voltarem à caserna, eles condicionam o movimento a recursos, investimentos e benefícios.
Militares, quando juram a bandeira e se incorporam, têm a obrigação de morrer pelo país. Isso cria uma excepcionalidade na função militar. Além disso, eles vão morar, durante a sua juventude, enquanto estão se formando, num quartel. Depois, como tenentes, onde forem alocados. Como capitães, por mais 10 anos, vivem como num deserto — essa é a patente em que se prova se o sujeito vai prosseguir ou não. Pense naquele capitão que nunca conseguiu passar de capitão, reclamava de falta de dinheiro, das condições de trabalho… Como capitães, eles estão colocados em lugares precários, normalmente já estão casados e as famílias são obrigadas a ir junto, os filhos crescem trocando de escola a cada dois anos.
Decididamente, é um trabalho diferenciado, com exigências físicas, inclusive. Eles entendem que isso merece uma remuneração diferenciada. Agora, eles escolheram isso. Quando você escolhe, assume o ônus e o bônus de qualquer profissão. É necessário que haja essa diferenciação de aposentadoria integral, mais cedo, e quando se explica isso, a população em geral concorda com benefícios diferenciados, que deviam se estender aos policiais. Mas isso não quer dizer, de maneira alguma, que eles tenham uma superioridade de cidadania em relação aos civis. Não tem como transformar isso numa outra cidadania, na qual eles tenham todo um sistema de moradia, de alimentação, de saúde, de salários que vão se acumulando, a ponto de, no final do governo passado, haver generais recebendo R$ 300 mil por mês.
Mesmo porque os militares não estão enfrentando risco de morte.
Sim, desde 1943 o Brasil não vai à guerra. Esse exército começou a ser burocratizado e a promover uma série de atividades que são totalmente diferentes do fim precípuo de um exército, que é o combate. Felizmente, não combatemos desde a envio da FEB para a Itália há 80 anos. Eles começaram a substituir isso por funções públicas, civis, acumulando emolumentos, salários, cargos. Hoje, o exército consome a maior parte do seu orçamento em custeio, não em pesquisa, armamento ou modernização. Chegou ao ponto de, nos governos Lula 1 e 2 e Dilma, juntar a formação militar específica a MBAs de Finanças, Empreendedorismo e Administração, dados pela Fundação Getúlio Vargas, contratada pelo Exército. Isso aumentou a ideia de privatização das Forças Armadas em direção à gestão da coisa pública, como se o país fosse uma empresa, com os princípios hiper liberais vigentes nesses MBAs. E criou um soldado que hoje não é formado visando a luta, mas visando a gestão, a administração.
Além de instituição coesa, o general Paiva diz que o Exército está em estado de “permanente prontidão”. Se não há combate, que prontidão seria essa?
Isso deveria ser perguntado ao general. Até onde eu saiba, o Brasil não tem nenhuma disputa, nenhuma ameaça imediata ao seu território. A integridade territorial e a manutenção de soberania deveriam ser as duas funções precípuas das Forças Armadas, elas estão descritas na Constituição. Por que estamos em permanente prontidão? Por causa do inimigo interno? Quem tem de manter a
ordem interna são as polícias: a Federal e as polícias estaduais, civis e militares. Esse é o grande debate do artigo 142 da Constituição, que foi muito mal redigido. Foi uma exigência dos militares no processo de transição junto à Constituinte de 1988.
Ali, havia pelo menos 40 assessores militares no nível de coronel impondo sua visão. Existem duas formas de transição de ditadura para a democracia. Uma das formas clássicas é quando a ditadura entra em colapso. Foi o caso da Argentina após a guerra das Malvinas; de Portugal depois da guerra colonial; da Grécia depois da guerra em Chipre. Existem outros casos em que a ditadura ainda é forte e pretende guiar a transição. É o que chamamos de transição pactuada ou tutelada.
Foi o caso do Chile, que não consegue sair da Constituição do Pinochet até hoje; da Espanha; e é o caso do Brasil. Não conseguimos impor uma visão puramente civilista na Constituição de 1988. Uma das pessoas que participou da comissão que redigiu artigo 142 foi o então futuro presidente FHC. Mas, ao longo de seu governo, ele fez duas leis complementares ao artigo 142, que alteram inteiramente seu funcionamento.
De que maneira?
A lei complementar diz claramente que a Garantia da Lei e da Ordem só pode ser feita a pedido de um governador, do ministro da Justiça e autorizada pelo presidente. Não há, de maneira alguma, uma forma de um general ou um comandante de área ou região militar tomarem iniciativas. Eles não podem, porque são mandados, não mandam. Isso está claro nas leis complementares ao artigo 142, que ninguém lê. Ficam só naquele texto inicial, vencido, mas que causa esse malestar de intervenção ou tutela permanente da República pelos militares. Eles continuaram pensando com essa ideia de que são os garantes, para usar uma expressão diplomática. Não são. Isso é Polícia Federal que faz, como está fazendo agora. Nós vivemos um momento divisor de águas. Eu não sei, sinceramente, se os políticos, inclusive o núcleo político do governo atual, entenderam isso.
É um momento em que podemos dar um basta a essa história mais do que secular de tutela da República pelos militares. Ou podemos fazer o que vários políticos, como José Múcio, querem: virar a página da história. Mas vai ser virar as páginas de uma história que não foi escrita ainda.
Como civis podem impor essa autoridade aos militares?
Os militares foram os grandes responsáveis pela proclamação da República em 1889, mas não foram os únicos. Havia uma história republicana anterior. É só lembrar de Tiradentes, Frei Caneca, Garibaldi, todos esses republicanistas que lutaram pela república. Eram civis. Falar que a República é um fato militar é desconhecer a história. Depois de 1889, tivemos guerra civil até mais ou menos
1910. Em 1922, recomeça eh agitação militar com o movimento tenentista; temos a Revolução de 1930; o golpe de Estado de 1937; o golpe de 1945; o levante em 1954 que leva ao suicídio de Vargas; o levante contra Juscelino Kubitschek, em 1956; a oposição à posse legal de João Goulart em 1961; e o golpe de 1964. Vou parar por aí, mas dentro da própria ditadura teve, em 1977, a tentativa de golpe do Silvio Frota e do hoje General Augusto Heleno, então capitão, contra Geisel. Eles contra eles. É uma história já muito saturada. Ela precisa ser encerrada. Encerrar essa história implica em que os militares não sejam trazidos para a política — nem através de eleições. É muito bem colocado o projeto de lei do deputado Zarattini (PT-SP), que fala que todos os militares que participaram de vida política, com cargo administrativo civil, devem ir automaticamente para a reserva. Essa coisa de se apresentar como capitão fulano, general sicrano, acaba de vez.
E os militares que já estão nas funções civis?
Uma medida que foi fundamental no dia 8 de janeiro, e eu prezo que aí se acertou enormemente, principalmente pela ação do ministro Flávio Dino, do jornalista Ricardo Capelli e do jurista Wadih Damous, foi negar controlar aquela desordem com uma GLO. Mais que isso: nomear, pela primeira vez na história da República, um interventor civil, que foi o próprio Capelli — um jornalista. Ele colocou ordem, começou os inquéritos, as prisões e quando tivemos a crise no GSI ele novamente foi interventor. Mas aí voltou-se atrás. Em vez de nomear um civil para o GSI, voltou-se a nomear um militar. Temos que civilizar esse debate. Civilizar no sentido de deixar civil mesmo. O apagamento, o deixar para lá, não é uma resposta. Tem que dizer aos militares que eles podem perder seus salários, suas casas, seus benefícios. Eles não estão decididos a perder isso. O presidente francês, Emmanuel Macron, foi eleito sem ter nenhuma experiência militar. Na sua posse, o chefe do
Estado-maior fez uma declaração ruim, dizendo que o Macron nada sabia de assuntos militares. O primeiro ato do Macron foi a exoneração do general. “Quem fala pela França sou eu, quem foi eleito fui eu, os senhores não falam pelo país, se falarem serão punidos” — essa clareza é fundamental. O mesmo aconteceu com o Pedro Sánchez, o presidente do conselho de governo da Espanha. O general Paiva não tem de vir a público definir o papel do Exército, falar em prontidão, falar que o Exército é coeso ou democrático. Isso está na Constituição. Por que ele tem de lembrar seus comandados? Alguém questionou? Se sim, tem de ser punido. O melhor ruído que os militares podem fazer numa república democrática é o silêncio.

Francisco Carlos Teixeira, sobre a PEC dos militares: ”Sinto que se perde o momento histórico”

PEC dos Militares e a Página em Branco da Nossa História, por Francisco Carlos Teixeira da Silva*, via Jeferson Miola,

Entendemos que o Governo Lula queira avançar em tópicos de interesse nacional, como o combate à fome ou ao Desemprego e a (Re)Industrialização do país. E assim, fugir da pecha de ser o Governo que sobreviveu ao golpe.

Por tal razão, evita-se o envolvimento nas apurações legítimas dos atos golpistas, antes e depois do 08/01/2023.

No entanto, quando o governo atua contra a oportunidade única de “reescrever” o “manual” das relações militares e política no Brasil, abolir a “Doutrina da Tutela ( as FFAAs como um “Poder Moderador” e a “missão” de combater o “Inimigo interno”), sinto que se perde o momento histórico.

A consolidação da Democracia no Brasil é uma pauta tão importante quanto a fome e o desemprego.

Sem Democracia a erradicação das posições de mando das elites antipovo será impossível e seremos sempre um país da fome cíclica e a República dos Privilégios.

Não lutar contra os golpistas em seus nichos é um baita desconhecimento da nossa História.

E, no limite, não fazer o enfrentamento didático das Direitas trabalha contra o fortalecimento da própria Democracia entre nós.

O núcleo político do governo, sua comunidade de Inteligência e seus órgãos, bem como o Ministério da Defesa, trabalham com um diagnóstico “equivocado” da natureza da atual crise brasileira, do momento nacional e da ascensão mundial da Extrema-Direita e dos Fascismos.

A Abin e o GSI mostraram-se incompetentes para construir um diagnóstico real das instituições brasileiras e do alcance do golpismo no interior do Estado.

Tal fragilidade transferiu para os acadêmicos e alguns jornalistas investigativos a faina de desvelar a ampla trama envolvendo políticos, magistrados e militares contra a República.

Vive-se ao “Deus dará” de confissões e delações, do trabalho incansável da PF, emergindo uma situação de “sustos” e alertas em busca de delações – o que não seria o fio condutor das investigações caso a Abin e o GSI cumprissem suas missões institucionais.

Bem ao contrário vemos que tais órgãos constituem-se em nichos privilegiados de golpistas, centro de construção de “narrativas” que buscam o apagamento do 8 de janeiro, seus antecedentes e consequências.

Ao contrário do núcleo político, palaciano, do governo, apenas o Ministério da Justiça, a Advogacia Geral da União, e o STF, avançam nas investigações.

O diagnóstico da crise institucional continua precário junto ao núcleo político, que insiste em que:

1. A eleição de Lula e a inegibilidade de Bolsonaro são evidências do fim da crise política e institucional;

2. Consideram o bolsonarismo, inclusive na Magistratura e nos quartéis, em refluxo confundindo personagem e as fontes profundas dos movimentos sociais das Direitas;

3. Nunca entenderam, por isso mesmo, o conceito de “Insurreição fascista”, como estabelecido com a “Marcha sobre Roma”, de 1922, e sua repetição midiática e reticular, em Kiev em 2014, em La Paz em 2019 ou no Capitólio em 2021;

4. Ao contrário de Lula da Silva, consideram o fascismo no Brasil como metáfora e hipérbole, mantendo-se na compreensão cinematográfica do fenômeno “fascismo histórico”, sem atentar para os movimentos mundiais de ascensão dos novos (neo)fascismo;

5. Acreditam que todo poder político se exerce no Congresso Nacional, desvalorizando a presença do povo nas praças, ruas, universidades e sindicatos como topoi de Resistência ;

6. Não entenderam o processo de unificação das Direitas brasileiras pela hegemonia fascista;

7. Consideram a oposição fascista com as mesmas lentes que enfrentaram antes a oposição do (quase)finado PSDB , não percebendo a “debacle” do Centro Histórico da política republicana;

8. Não consideram mobilizar, por não entender o caráter “de massas” do fascismo (amplas classes médias, funcionários civis e militares, as classes rentistas, o lumpenproletariat em busca de um líder substituto, mito e mistificação, da falsa concretização psicológica e histórica), os núcleos populares, trabalhadores, para se manifestarem nas ruas, praças, universidades e sindicatos contra o golpismo (sequer tivemos uma manifestação popular em condenação ao golpe);

9. A busca de base de apoio do governo leva a tratativas que poderiam ser melhor explicadas e balanceadas com a mobilização popular;

10. Estão “economizando” Lula , o único grande comunicador à Esquerda, nas suas relações com as bases trabalhadoras;

11. Não distinguem o bolsonarismo, uma forma de Neofascismo, do conservadorismo nato da sociedade brasileira , racista, misógina e patriarcal, combatendo só os personagens “Bolsonaro” e os chamados “patriotas”, que entalados em bandeiras depredaram as instituições da República, deixando de lado o núcleo duro do Bolsonarismo na política, magistratura, ministérios, inclusive o Ministério da Defesa, no afã de blindar militares golpistas;

12. Por fim, estão decididos a “deixar quieto” os núcleos radicais nas FFAAs , no intuito de “virar a página” da História. Assim perde-se a percepção da profundidade e enraizamento do golpismo nas instituições da República e na cultura política brasileira, suas raízes históricas, no escravismo e no patrimonialismo, seus métodos sempre violentos, buscando “virar a página” de uma História ainda não escrita.

*Francisco Carlos Teixeira é historiador e cientista político, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autor de livros sobre conflitos e mudanças sociais, entre eles “Atlântico, a história de um oceano” (com colaboração), Prêmio Jabuti de melhor livro do ano de 2014.

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O Pênis e a Lei: alguns apontamentos sobre as relações quotidianas entre Cultura e Inconsciente.

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Francisco Teixeira[1].

 

Atoum se manifesta en tant que masturbateur dans  la ville de Heliopólis. Il saisit son membre et y suscita la jouissance.

Texto das Pirâmides, §1248, Antigo Império, 4500 a.C.

 

Uma sociedade minimamente civilizada deveria ter, mesmo entre nós e mesmo no atual momento de profunda crise econômica e política – bem como de crise dos saberes e do agir coletivo -, condições de construir mediações sociais, para além da indesejável instituição manicomial, dotadas de fala e ação,

 

numa forma de amparo, para o sofrimento psíquico que servisse, minimente, de anteparo social para indivíduos duramente atingidos por forte sentimento de des-pertencimento, anomia, que viesse a tornar-se sofrimento emocional. Nos deparamos hoje, na experiência quotidiana, com uma comum incompreensão sobre o tipo de mal-estar que o indivíduo na condição contemporânea enfrenta na sociedade (pós)moderna, não conseguindo distinguir minimamente o que se trata de um Problema, e portanto experimentado na esfera da vivência exclusiva do próprio Individuo nas suas relações com o Outro – o “Mitwelt”, que pode muitas das vezes parecer desde difícil até aterrador, ao limite do pânico, daquilo que poderíamos chamar de uma Questão, que mesmo sendo vivida, experenciada, por um Individuo, é comum a um vasto conjunto de entes, caracterizando-se por um mal-estar coletivo, no qual o “Eigenwelt”, o próprio do Indivíduo, na sua condição ontológica, assume um claro aspecto ôntico, referindo-se ao conjunto de dificuldades, medos e recusas, das relações coletivas do ente com o “Umwelt”, o conjunto do seu mundo vivenciado[2].

É sabido, mesmo que de forma muito impressionista e empírica, que a crise, que já atinge profundamente as condições emocionais, o ânimo, de milhares de pessoas – e não é só uma crise “nacional” como podemos ver nas expressões vivenciadas em sociedades como a americana ou a alemã -, na sua expressão de mal-estar se expressa em metonímias e metáforas de variadas intensidades em variadas condições.   Entre nós apresenta uma face inteiramente nova: a exteriorização sob a forma de ódio de classe, de gênero, de raça, credo e orientação política de um difuso sentimento de perda, uma falta de alguma coisa não sabida, que se queria existente num outro tempo e não existe mais. Sentimento lacunar de perda incomunicável, uma coisa que existiria em um “” – “o da” fora e para além do “sein”, uma falta na possibilidade de um momento à frente, que passa por isso mesmo a ser temido como um futuro assustador e incompleto. Esse futuro não sabido e oculto é, contudo, ocupado, no mais das vezes somente enquanto possibilidade, por um Outro, tornado por isso mesmo inimigo, estrangeiro ao Eu, de quem subtrai uma parcela da sua própria possibilidade futura de existência, roubada em algum tempo do não-sabido no passado.  No espaço do quotidiano esse Outro é identificado como o migrante, o negro, o pobre ascendente, a mulher emancipada, o gay, ou o tudo-isso-junto transformado no Outro, ao mesmo tempo necessário, conveniente e temido, posto que o sentimento lacunar precisa de um Outro, ou ver-se-ia perante o Nada. Em alguns desses casos o delírio neurótico, claramente defensivo, embora de extrema agressividade, acaba por constituir a totalidade da narrativa possível perante o “estar-aí”, o mundo “lá-fora” – o “Umgebung”, hostil e incompreensível, onde o Indivíduo é lançado – “Geworfenheit” -, como puro projeto em branco. Ao escapar enquanto fala neurótica instrumentalizada, o ódio enquanto narrativa contemporânea, atende assim a realização do sintoma do sofrimento como realização de uma (com)pulsão primeva, antiga e aterradora. É o espaço da “falta-lá” comprimido num passado que se recusa a passar – esse é o seu significado, sintoma de um trauma -, inalcançável ao sujeito, lacunar e, de forma aterradora, repetitivo. Em outros casos/momentos pode assumir, no seu limite, um agir prático, tornando a narrativa em ato, uma fuga à frente em busca de dotar de um sentido um “estar-aí” esvaziado de uma existência, incapaz do passo à frente, do “pode-ser” em direção à transcendência.  No entanto a transcendência será sempre uma transcendência metafisica presa à palavra, impossível de realização prática posto que descolada de qualqyer de projeto de vida.

 

A multiplicação dos casos de depressão e a ocorrência de suicídios, ao lado da xenofobia, da exaltação do racismo e das fobias e o cultivo carinhoso do ódio, são todos a ponta, ainda imprescrutada, da crise geral de uma sociedade de massas, modernizada enquanto técnica e paralisada enquanto projeto humanista.

 

O outro conveniente: Escolha aleatória e padronizada.

 

pós-modernidade quando do insucesso da oferta globalista depois de 2008. A outra ponta, é a sucessão de atos de agressão, inclusive homicidas, contra aqueles apontados como o Outro conveniente. A  aparente escolha aleatória desse Outro,  guarda em si um padrão informada pelo racismo estrutural e institucional, que inventa e reinventa permanentemente a mesma pergunta: quem é o nosso judeu?

 

É uma escolha aleatória no sentido que o investimento de todo a energia pode ser direcionado a qualquer indivíduo, parte da humanidade comum. Possui um padrão estrutural e institucional, entanto, no sentido que o investimento do discurso do ódio, e seu agir, se dá em direção àquela aparcela da humanidade que, em meio à crise, decidiu-se por um projeto de transcendência  material em face ao “estar-aí”, recusando a repetição  – a mimesis como projeto de futuro – e buscando um novo topos nas hierarquias existentes e tomando o passado como diegesis.

 

Ao negar o “estar-aí”, propondo-se, lançando-se em direção a um “poder-ser” que realizar-se-á ou não numa “Existenz” autêntica, preenche as lacunas narrativas de perda – de uma subtração de alguma coisa que não é dita –  daqueles que vivem o sofrimento. Assim, as mulheres – essas primeiras e principais ameaças a opacidade de um mundo assentado no “estar-aí” imóvel e imutável –, os grupos que exigem acesso pleno à cidadania, tais como negros e outros etnias submetidas em outras condições sociais ao risco do extermínio ( como os rojingas, só para ampliar a margem de submissões opressivas ou as minorias chinesas durante a pandemia de covid-19 ), os homossexuais na transgressão do corpo em busca do gozo, são apontados como o Outro conveniente – um inimigo que objetivamente carrega a culpa pelo fantasma que ronda muralhas do Castelo de Elsinore e, como a peste, apodrece os fundamentos do Reino da Dinamarca. A exterminação desse Outro, um ritual propiciatório de derramamento de sangue para a manutenção da velha ordem, as muralhas protetoras do Ego, é o preço para garantir a paz sem transcendência formal – que se dá na metafísica, através da repeticação de velhas formulas mágicas, que acalmam e mantem o mundo em seus gonzos[3].

Eis aí a matéria-prima dos fascismos.

Trata-se de uma forma revolucionária, violenta, de conservação do mundo, na qual a palavra, apostrofada, emergindo de um trauma, desempenha o papel central no ordenamento do mundo. Não se trata da palavra decifrada, na chave do desvelamento, mas na palavra tomada como realidade do mundo.

Muitas vezes, ao nos debruçarmos com algum cuidado sobre a narrativa dos atores em presença – os odiadores e suas vítimas – , ou mesmo na fala construída sob a forma de “posts” em redes sociais, onde podemos perceber  o ódio  como tônica da expressão coletiva atual, emerge uma narrativa desconexa e repetitiva – a novilígua sob a forma de fala apostrofada –   contudo costurada num corpus discursivo retalhado, fragmentado, e novamente costurado por alusões persecutórias delirantes através de um liame comum de exclusão do Outro, numa linguagem dual do “nós contra “eles”, onde a ação dialógica, comunicativa, é substituído pelo insulto.. Tal presença falsamente dual – a fala fragmentada e a costura do ódio são, em realidade, falas  perempetórias – explicitam um deslocamento profundo do ser-no-mundo, na sua capacidade de entender a si mesmo e de dar sentido a sua existência-no-mundo, que passa a ser ameaçada pela existência do Outro, vista como pura ameaça – ameaça que ele mesmo não consegue definir ou entender para além do próprio existir negativado, invertido, em especial em um existir-que-se-faz-Outro. Ou seja, o Eu-sendo só existe enquanto versão negativizada do gozo do Outro, esse diferente, e que de alguma forma expressa o gozo interditado, mesmo que seja um gozo imaginário ou apenas antevisto e auto-negado[4].

O Outro que ousa gozar ali onde eu sou impotência/vicío/nojo é votado à exclusão e, se possível, ao extermínio. É assim que mulheres, homossexuais, pretos são os fantasmas a rondar as muralhas de um Eu que não consegue parar de falar em buruco/cú/rosca e, por outro lado mimetizar próteses corporais de exytensões penininas.

A narrativa fragmentada, desconexa, costurada por repetições delirantes de ódio – a novilíngua apostrofada – , volta-se para um passado utópico, imóvel e onde só o experenciado – a utopia imaginária na ditadura que não houve, na tortura que não aconteceu, ou os desaparecidos que não desaprecerem –  possui valor: nada de valoroso existe para aquém do passado, cada vez mais mítico, um tempo comprimido e interrompido por um trauma, que pode ele também ser real ou mítico, erigido à posição de evento fundante e, por isso, presentificado. O passado interrompido pela “canalha” esquerdista/comunista/petista/bolivariana deve ser revivido/retornado/retomado num esforço constante como se a história fosse um exercício masturbátório de um gozo interrompido que pode ser retomado bastanto para isso rever as imagens gozosas que estimulam o prazer: a ordem do mundo perdido.

O presente-agora, “Jetztzeit”, por tanto, é estreito, um tempo de decepções e de perdas,  posto que esse tempo presente não possui mais o passado vivenciado, que foi perdido em brumas distanciando-se do hoje, e torna-se um tempo de corropções onde o inimigo, o Outro é o dominante, portanto, incapaz de acessar qualquer impulso vindo do passado gozado para construir o futuro. No presente, o Indivíduo para-o-sofrimento só vive o passado enquanto repetição/mimesis – sintoma de um sentimento de onipotência, posto que na repetição compulsiva/masturbação da história buscar reconstruir no presente o passado mítico –  no entanto resulta sempre em repetição empobrecida a qual ele não alcança a fruição total, não possui acesso, tornando impossível qualquer gozo no presente ou projeto para o futuro, condenando-se, numa onipotência impotente, a uma repetição sucessiva e dolorosa de um ato que não mais controla. Não há futuro possível, apenas a possibilidade de gozar numa imagem que já-foi.

Assim o que era utopia regressiva, banzo,  se aprofunda em desprazer e se expressa em mal-estar, em “. algo[que] me aconteceu, não posso continuar duvidando. Veio como uma doença, não como uma certeza ordinária nem como uma evidência. Instalou- se pouco a pouco, eu me senti estranho, algo incomodado, nada mais [itálico nosso]. E agora cresce.[5]” Mas, ao contrário do personagem na biblioteca (até por que nossos personagens não freuqnetam bibliotecas) o homem estranhado da sociedade de massas brasileiro – que existe TV aberta, programas do “Ratinho”, Sílvio Santos, em grande parte frequente uma igreja evangélica e não possui o hábito da leitura – quer atribuir a um Outro o sentimento que o invade e sequer sabe que o invade.  

Seja como náusea, “la nausée” de Sartre, seja o “Verfremdung”, a alienação, do primeiro Marx, em especial nos “Manuscritos Econômico-Filosóficos”, de 1844, seja o “Unbehagung”, o Mal-Estar, de Freud, em o “Mal-Estar na Civilização”, há na sociedade industrial de massas, atomizada, anomica, em meio a uma grave crise, um sentimento difuso de perda e vazio no “estar-aí”, um caminhar sempre em frente em busca de um “falta-lá”, a possibilidade do “pode ser”, num vazio escuro. Esse homem ve-se  na obrigação de dotá-lo de sentido sem sequer saber o que significa “der Sinn der Geschichte” – essa busca de sentido na História, esse mal  que atinge milhares de indivíduos, causando forte angustia[6].  Mesmo assim, os atinge. Mas, de forma diferenciada, não exatamente como massa uniforme, o que já foi dito, mas conforme a ontologia de cada um, ou conforme o próprio Freud afirma são os fatores predisponentes – aqueles de tipo constitutivos e por isso uma ontogênese -, que torna o sofrimento de cada um, uma experiência vivencial única – uma necessidade singular de dotar a vida de sentido quando não se vê sentido algum em estar-no-mundo. Franz Neumann, o historiador, diria, que a forma como cada um é atingido e responde pelo mal-estar é a forma como se faz a História[7].

No entanto, esse mesmo fenômeno, o sofrimento solitário único numa sociedade desprovida de sentido e cada vez mais massiva é, por paradoxo, cada vez mais coletivo, e, portanto, histórico.  Daí proliferam razões fundadas em irrazões na qual os sujeitos, por regressão, abandonam o doloroso processo de dotar o Ego de um projeto de sentido, a transcendência, pela simples e menos dolorosa adoção do projeto de sentido do Outro, de um ente/individuo ou instituição poderoso e salvacionista: as religiões messiânicas, o homem-mito, o consumismo, a intoxicação química ou não. Muitos, no entanto, com um Superego muito mais severo, não se deixarão enganar tão facilmente. Estes sofrerão[8].

 

Procuramos nestes primeiros apontamentos, a partir de um caso, estabelecer as possibilidades, e os limites, do diálogo entre o método das ciências sociais, em especial do paradigma indiciário conforme proposto por Carlo Ginzburg, e a Psicanálise, conforme classicamente foi formulada no método por Freud e seus seguidores, em torno da aparecência do mal-estar no tempo presente [9].  

Entre a situação calamitosa do sistema penitenciário – no Brasil há uma terrível penalização na condição prisional, para além da “pena de privação da liberdade” envolvendo hoje mais de 711 mil indivíduos, inscrita nas condições sub-humanas dos presídios, resultando em chacinas frequentes, muito próximas de uma condição de “crime de Estado”[10]. Tal situação, uma premissa externa a estes apontamentos, é de conhecimento geral, sendo objeto constante de reportagens e tema de filmes e mesmo de novelas de televisão, e com certeza informou desde sempre o ator principal do nosso caso em pauta[11].

É contra este quadro de fundo que queremos refletir, em termos precários, sobre a vulnerabilidade da cidadania e da dignidade do outro, a propósito de um caso especifico: o chamado “Estuprador do Ônibus”, corrido no final de agosto de 2017 em São Paulo. A própria denominação do caso – o “Estuprador do Ônibus” – gerou, desde o final de agosto de 2017, uma intensa, e por vez bastante virulenta, polêmica pública em especial nas chamadas “Redes Sociais”[12].  Desde o primeiro momento a expressão “ejacular” ou “masturbar-se” utilizadas pela mídia, e reproduzida nas Redes Sociais, foi fortemente criticada por movimentos feministas, com a participação de Juristas esgrimindo a Lei como elemento definidor do “ato” que fora de fato praticado, para caracterizar o cometido em pleno transporte público na Avenida Paulista – note-se a mais movimentada da maior cidade da América do Sul –  e, enfim, tipifica-lo como “estupro”. Mesmo não havendo o clássico intercurso sexual, acompanhado de um gesto de força levando a submissão de sua vítima, os diversos movimentos feministas, bem como expoentes dos Direitos Humanos, exigiram do delegado que efetuou o registro da queixa, a imposição do instituto de “estupro”. A resistência “técnica” do titular da 78ª. DP (bairro dos Jardins), apoiada na letra da Lei – posto não ter havido “coação” da vítima -, causou espanto e fúria entre militantes em defesa da dignidade e da integridade psíquica e mental da vítima. No seu conjunto, a opinião pública, ficou inteirada de meandros da “letra” da Lei e passou a opinar fortemente sobre o tema e da polemica sobre a natureza do crime de estupro.

Para além da necessária historicização do ato, da prisão e do registro policial do perpetrador da ofensa – doravante Diego F.N., paulista, solteiro, “ajudante de serviços gerais”, de 27 anos-, a tematização da resistência policial em fazer o registro da ofensa (ao final feito o registro como injuria sexual, pela inexistência do delito estupro, mas, note bene, somente neste momento) é parte fundamental da discussão que se segue.

Sabemos, de bastante tempo, da negativa conservadora e sistemática da Polícia brasileira, acompanhada pela ação da Justiça, em registrar os casos de racismo e/ou injuria racial como tais, quase sempre descaracterizando o fato para simples “injúria” ou outras formas de ofensa –  como foi de fato na condição de “Ultraje Público ao Pudor”[13]. Da mesma forma, mesmo na existência da Lei 13.104, do Feminicídio e da Lei Maria da Penha, há ainda, entre várias instancias policiais a resistência clara – de cunho machista e falocrata – em realizar o devido registro de crimes contra mulheres, invertendo, por vezes, a situação de vítima da mulher. Assim, a pronta ação da militância feminista foi, e continua sendo, fundamental para que a legislação existente, produto de amplas lutas sociais, seja empregada[14].

Neste caso, devemos sublinhar a diversidade e a dificuldade nos dois primeiros dias do evento – 29 e 30 de agosto de 2017 – da mídia nomear o evento ocorrido no interior do ônibus: desde um anódino “assédio”, passando pela descrição do ato – masturbação, ejaculação: termos que a grande mídia reservou, de início,  para o interior do texto noticioso, negando-se a titular a matéria com a clareza do evento – até estupro, este, infelizmente, comum no noticiário e, portanto, passível de titulação fácil. Somente após um amplo debate de cunho jurídico a nomeação “estupro” irá se impor no caso de Diego, continuando os demais eventos a serem descritos como “masturbação” e na sequência da multiplicação dos atos, posto que ação de Diego no dia 29 de agosto de 2017, abre uma verdadeira “epidemia” de masturbadores públicos, torna-se comum a titulação “ejaculação”.

Assim Diego passa de “masturbador do ônibus”, de forma concreta ao descrever que tipo de “assédio” havia ocorrido, a “estuprador do ônibus”. Este processo de renomeação do ato e do seu perpetrador é de extrema relevância para a análise em questão, em particular por ser um ato repetitivo contra, na maioria das vezes, mulheres trabalhadoras obrigadas a utilizar ônibus, trens e metrô em horários do chamado “rush”[15].  Desde então vão se multiplicar as denúncias de casos similares, culminando na ocorrência de “ejaculação” de um indivíduo sobre uma passageira de avião numa linha doméstica.[16]

A disputa pela “nomeação” do evento – assédio, “importunação ofensiva ao pudor”, ultraje ao pudor, ejaculação, masturbação, estupro – é, assim, simultaneamente parte fundamental do próprio evento e das lutas e resistência das mulheres contra o machismo e a falocracia estruturais da nossa sociedade e entendido, por esta via, a estrutura constitutiva central da própria predisposição personológica de Diego F.N., tornando-se assim base constitutiva do próprio evento[17]. Freud, num texto famoso sobre a questão, afirma que a masturbação não sendo nada definitivo – em ambas as fases do desenvolvimento da personalidade de um indivíduo descritas no texto – afirma mais não ser que [a masturbação] um “nome”, não um agente real, que recobre um amplo leque de atividades sexuais caracterizadas, num traço unificante, por sua limitação[18].

Todo o caso de Diego é marcado por um viés de repetição, uma limitação. Após sua prisão e identificação policial na 78ª. DP se sabe, inicialmente, que o perpetrador já tinha outras cinco passagens pela polícia sob a mesma acusação. Os eventos anteriores compunham, com mais esta prisão, um quadro comum, envolvendo as mulheres vítimas, o transporte coletivo e as condições de transporte vigentes no país: longas viagens, sono, proximidade física forçada. Nos casos em que Diego foi pego, e houve queixa policial – e sabemos que em alguns casos isso não aconteceu multiplicando os eventos repetitivos –   foram considerados “leves”, enquadrados como “importunação ofensiva” ou “ultraje ao pudor”, uma contravenção penal. Ou seja, não houve crime, mesmo havendo a repetição do evento. O estupro – Artigo 213 do Código Penal – implicaria em constrangimento violento e impossibilidade de reação por parte da vítima. No caso – como em outros em transportes coletivos em várias cidades do país – a vítima estava dormindo, desapercebida, não havendo necessidade da violência constrangedora, componente bastante do instituto “legal” do estupro[19].

Importunação versus constrangimento e violência/submissão por um lado e dignidade da mulher, choque e sentimento de humilhação, por outro, entram em disputa de narrativas sobre o nome e de condições para a imputação de Diego. No entanto, a disputa narrativista se detém perante o nome e não rompe a carapaça do punitivismo, não indo além do sintoma para buscar as estruturas constitutivas de um fenômeno personológico que corre o risco de caracterizar uma epidemia social desapercebida.

O Delegado de Polícia, bem como do Juiz de Custódia, este último claramente vagando entre o despreparo para tal caso ou, no mínimo, displicente perante o histórico do agressor e de forma transparente cego às condições de assédio e de agressão das mulheres no Brasil, não dão qualquer importância ao elemento comum no conjunto dos eventos narrados – e que podem ser extrapolados de uma condição singular para o nível de um fenômeno social -, voluntariamente confessado, por Diego: a repetição[20].

Não se trata aqui de discutir as tecnicidades do Direito e de suas operações pelos agentes do sistema de Justiça – aliás, de grande rigor hoje no país, conforme as cortes de primeira instância e o próprio STF, quando se fala da defesa de patrimônio, seja público ou privado, ao contrário das ações em defesa da vida e dignidade humana – tais como Racismo, Feminicídio, Homofobia, tortura, trabalho escravo por exemplo -, marcadas pela flexibilidade e a dificuldade de enquadramento por parte da Justiça. E, muitas vezes, por total descaso por parte da ação executiva, ou seja, a execução da pena. Também não se trata de defender a penalização e a maior intensidade do “punitivismo” que avança entre nós – em especial entre as classes médias bastante amedrontadas pela insegurança pública e acossada pela crise econômica[21] –  ao lado de ideologias extremistas, que defendem o aprisionamento de todo e qualquer comportamento dito delituoso, abarrotando prisões já abarrotadas, transformadas em depósitos “sub-humanos” – sem maiores protestos de grande parte da sociedade[22].

Por isso, falamos, desde as primeiras linhas, em espaços, ações e atos de mediações e amparo.  Somente o Juiz que deveria julgar a “ofensa” – nomeada então “ultraje público ao pudor”, cometida por Diego, via o TJ-SP e o MP-SP, perceberam o caráter social do ato repetitivo do perpetrador. Assim, o TJ-SP liberta Diego com o seguinte assento nos autos: …segundo o juiz, ele necessita de “tratamento psiquiátrico e psicológico para evitar a reiteração de condutas, que violam gravemente a dignidade sexual das mulheres, mas, que, penalmente, configuram apenas contravenção penal”[23].

Entretanto, nenhuma providencia ou iniciativa na área de saúde (e saúde mental)

seria tomada e Diego, inevitavelmente, repetiria o evento mais uma vez.
É neste sentido que podemos, mesmo de longe, perceber que o agressor estava em sofrimento psíquico grave, estava pedindo ajuda – a repetição ritualizada do ato de ejaculação pública sobre mulheres (o “Wiederholung”), é/era um pedido inconsciente de punição – uma repetição obsessiva, pública e sequencial de um ato que valeria, de uma forma qualquer, quando praticado em público, uma punição[24]. A repetição emerge “…naturalmente sem saber que o [o lacunar, o que não satisfaz] está repetindo”[25].  Aí residiria um núcleo de culpa já identificado por Freud na masturbação e merecedor de um largo debate entre 1910 e 1912, registrado ora, como a ausência de satisfação decorrente do ato [o lacunar, o “Falta-lá”, o impossível de satisfazer], daí impondo sua repetição compulsiva na busca do preenchimento impossível do “falta-lá”, ora por fatores sociais cuja a etiologia está ligada a economia do Superego, inclusive a própria agressão punitiva contra o Ego e claro, contra o ego  de suas vítimas[26].

De qualquer forma Freud destaca a existência de um “pequeno fragmento de excitação não descarregada” que impulsiona a repetição enquanto forma aceitável de conciliação, de qualquer forma precária[27].

Há, destaquemos, no ato praticado de forma repetitiva por Diego, um componente diferenciador, a masturbação, a qual vincula-se o fenômeno do exibicionismo, com a exposição do pênis em local público, em meio a dezenas de pessoas e sem maior cuidado de ocultação. Mesmo sabendo, ainda com Freud, que os sintomas de diversas neuroses possam se mesclar e sobrepor num mesmo indivíduo, ocorrendo até mesmo em personalidades ditas com vida “sadia”[28],  devemos sublinhar qual o traço marcante, definidor, do ato singular perpetrado por Diego e, simultaneamente, quais as motivações e a etiologia de seu imbricamento com uma outra ação, neste caso, o exibicionismo. A masturbação, enquanto a realização de uma/várias fantasia(s) centrada num eixo comum marcado pela condição lacunar, assume em Diego o papel central estruturante da personalidade, explicitando uma regressão a um estágio infantil pré-edipiano. No entanto, a masturbação conserva sua característica de atividade transitorial – uma transitoriedade que expressa uma conciliação própria do ato masturbatório entendido nas regras vigentes e, portanto, “…uma atividade sexual sujeita a certas condições limitantes”[29].  Tais limitações operam uma conciliação precária, e dolorosa em razão do caráter negativo e “infantil” atribuído a masturbação, entre o Princípio do Prazer, permitindo através da fantasia auto-erótica, regressiva de tipo sádico-anal, o escoamento de uma energia recalcada – causa de sofrimento – e o Princípio de Realidade, castrador da possibilidade da realização plena do gozo[30]. Mesmo enquanto conciliação trata-se ainda de uma supressão insuficiente da pulsão, precária e instável, logo geradora de ansiedade[31]. Em Diego tais limitações regidas pelo que Freud denominou de “regras vigentes” constitutivas de uma Superego severo e punitivo entraram em colapso.[32]

A questão seguinte que se coloca é a clássica escolha da neurose: quais as condições para a irrupção de uma síndrome de espectro neurótico em Diego? Neste sentido, duas séries de fatores devem estar presentes e imbricados. De um lado, as chamadas causas predisponentes ou constitucionais, inatas ao indivíduo  e que pertencem a sua existência, o “Eigenwelt” – e inato aqui abriga desde condições fisiológicas até suas experiências na infância – e, de outro lado, as causas precipitantes ou acidentais, derivadas do ambiente que o envolvem, o “Umwelt”, do indivíduo ou nas palavras originais “…os determinantes patogênicos que estão envolvidos nas neuroses […] aqueles que uma pessoa traz consigo, para sua vida, e aquele que a vida lhe traz”[33], e que resultam na capacidade de desenvolver uma teia de relacionamentos com o Outro, o “Mitwelt” – neste caso um Outro que pode ser assustador, amedrontador, o inferno, quando somos obrigados a estar perante a uma relação comunicativa e não possuímos os códigos – Jaspers diria “as cifras” de tal comunicação, transformando o Outro num muro invencível[34]. Ou ainda forçados a um compartilhamento indesejado vemos no Outro o nada, um vazio sem reflexo, talvez disponível para acalmia de um sintoma muito além dos limites Lei.

Para Freud os fatores constitutivos dominantes no processo de organização patogênica, mesmo reconhecendo a imbricação de ambos os fatores, de forma dinâmica e intercambiante, não pode ser descartada, podendo se constituir num “registro bilíngue” revelando uma natureza composta da neurose[35]. Para a psicanálise existencial, por sua vez, é no “Mitwelt”, o entendimento do conjunto das relações humanas onde estão realmente sendo vividas e que cabe tão somente a ele mesmo a decisão de dar sentido a própria existência – Dasein, enquanto método de superação.

Ora, o exibicionismo – a mostra pública do pênis em público – aparece, além da razoabilidade instrumental para a realização do ato de ejaculação sobre o objeto de investimento –  um complemento personológico direto do sentimento de “Falta-lá”, de incompletude, de impossibilidade de cessação da  ausência presente no ato, que assola o exibicionista, obrigando-o a uma reiteração afirmativa pública e constante da integridade do próprio pênis enquanto integridade do Eu, afastando o fantasma da castração decorrente da insatisfação da pulsão primária,  incapaz de escoar toda a energia pulsional, reafirmando a precariedade da conciliação regida pelo Superego [36].

Devemos, ainda, afastar a possibilidade – aventada pela leitura leiga imediatista das testemunhas e de parte da mídia que classificam Diego como “tarado”, “maníaco” e “doente”, no sentido que daríamos a “perverse” – de um caso dominante de perversão. Na verdade, Diego não nega a natureza do ato (masturbação seguida de ejaculação sobre a vítima), não apresentando uma narrativa de denegação típica de uma condição resposta perversa, mesmo que de feitio protetivo[37]. Ao contrário, parece disposto, ou mais, disponível, para a confissão do(s) ato(s). Na verdade, dá-se a confissão dos diversos atos, da repetição encarada como culpa, um jorro narrativo estruturado em forma de uma história razoável e plausível, e autocomplacente, no qual os pais acreditam e, no primeiro momento, as autoridades policiais também dão crédito. O discurso do neurótico é parte do sintoma sob a forma de um delírio que por sua vez é deslocamento libidinal realizado em possibilidade de gozo substituo.

Neste emaranhado de falas o aspecto de exibicionismo que compõe parte visível e a mais comumente punível do ato permanece desapercebido tanto pela confissão espontânea do perpetrador quanto do registro da autoridade judicial, sublimada em fala. Ou seja, a ejaculação pela sua nobreza falocrata oculta o exibicionismo e atrai sobre si todas as atenções, que solicitam do perpetrador a repetição oral detalhada do ato, realizando na economia pulsional de Diego um “mais-prazer” do falar, ele mesmo exibicionismo gratificante. O detalhamento para a “Lei” e seu escrutínio, seguidamente, não é estranho, por sua vez, ao gozo passivo dos agentes do Estado em sua vontade de saber-mais, em detalhar, medir e registrar o gozo de Diego. Mesmo na confissão há um traço agressivo, violentador, repetitivo que atrai para si a admiração dos “agentes” da Lei no registro crescentes dos atos ejaculadores de Diego, expressando, ainda que preso, uma vontade de poder[38].

Toda essa narrativa do gozo do maníaco, do “tarado que ejacula em público sobre mulheres”, rompida a carapaça moral inicial da mídia, será transformado em mercadoria consumida vorazmente nas redes sociais, que a reproduziriam – incluindo retratos de Diego. Os “posts” multiplicam-se aos milhares, inclusive em linguagem chula, que a grande mídia se poupou, com as mais diversas sugestões do que se deveria fazer com Diego, todas propostas centradas na díade ejaculação-sobre-alguém = a castigo, o clímax de um vídeo pornô, permitindo a liberação de parcelas pulsionais coletivas perversas atribuídas ao próprio Diego e claramente invejosas da ejaculação do auxiliar de serviços gerais[39].

Então, a presença do medo da castração e a compulsão de “provar” a integridade e potência do pênis são menosprezados, acalmados, enquanto registro personológico, sublimados em fala, ante a ação disruptiva da regra maior, a ejaculação pública sobre a vítima, revivida novamente enquanto discurso, alivio momentâneo para Diego, mercadoria sob a forma de gozo alheio para outros[40].

Mas, devemos sublinhar, de forma simétrica, para Diego também não há nenhuma gratificação especial em demonstrar sua potência e capacidade ejaculatória à vítima – explicitando a ausência do clássico “mostro o meu e você mostra o seu!” componente da expectativa fantasista do exibicionista – posto que parte das vítimas, aleatoriamente, podem estar dormindo nos ônibus ou metrô ou, de forma variada, desapercebidas da ação. Não se estabelece uma relação clássica de poder/submissão contida na pulsão sádica onde o “outro” deve estar consciente de sua submissão, como nos descreve Deleuze. No caso, o traço exibicionista faz o seu registro de forma complementar à neurose obsessiva, quando esta procura descarregar em um jorro o sofrimento e, com este, a culpa centrada na prática masturbatória. A falta e a incompletude permanecem nessa “falta-lá” fonte imperiosa da repetição.

No registro composto, bilingual, emerge no perpetrador, durante todo o processo de aplicação da Lei quando da sua prisão, uma postura passiva perante todos aqueles que representam autoridade: os homens que o detém no ônibus, os policiais, o delegado e o juiz, e que nos remete, mais uma vez, ao “bilinguismo” da escolha da neurose, com tal aspecto centrado numa fase anterior ao investimento genital, fixado num momento sádico-anal, predominante embora possivelmente não único, mas presente, composto. Ao exibicionismo, seu não-elaborado sentimento de incompletude, soma-se a fixação da culpa masturbatória num registro de dupla linguagem reforçada num momento para além da fase sádico-anal, mas dominada por esta. O único traço restante do componente exibicionista é a confissão, que de resto se realiza enquanto possibilidade passiva da repetição e, simultaneamente, condensa em si, o resquício sádico pré-edipiano, reduzindo as vítimas ao nada.

Em face do sofrimento o perpetrador deseja a punição e almeja para isso a confissão, prazer bilingual, que é feita, no caso de Diego, sem nenhuma pressão, incluindo os detalhes e cronologia dos atos anteriores, gozo das autoridades. Diego – que conhece práticas médicas derivadas do seu internamento por acidente de trânsito – almeja mais do que tudo a confissão – um ato de poder –  que permitirá, enfim, no seu imaginário, a cessação da culpa. Ou – aí reside um nível que não podemos chegar com o material disponível e que apenas apontamos como possibilidade – a realização da punição na condição de preso por “estupro”. Na direção da maioria dos neuróticos, Diego desloca durante a confissão para o sintoma – plenamente identificado nos atos agressivos contra suas vítimas – a origem do seu sofrimento, desviando, numa prática discursiva funcional e racional, do núcleo original da neurose e, assim, protegendo o “segredo” neurótico[41]. Para a Lei – expressa nos seus aparelhos formais do Sistema Público de Justiça, as Polícias, os Tribunais e Presídios – a confissão de Diego, centrada narrativa fluente e razoável dos seus sintomas, é o bastante e a verdade, encerrando o caso, mantendo-se na absurda superfície do delírio neurótico tomado enquanto ersatz, o substituto apaziguador, da verdade de validade jurídica[42].

Para o perpetrador, de qualquer forma, mesmo sabendo que seu ato é passível de punição e de alto risco – na ocasião da prisão de Diego na Avenida Paulista levantaram-se vozes populares pedindo o linchamento do perpetrador da ofensa – a repetição é incontornável, impossível de controlar, invade seu cotidiano e já define sua rotina, chegando a impedi-lo de uma vida produtiva. Por isso insistimos em diferir tal masturbação pública de outras formas de exibicionismo falocrata (presente em nossa sociedade e que são ubíquos socialmente e mesmo incentivadas), e dotá-la de um conteúdo mais profundo:  algo para além do prazer [43] .

Dá-se sob a forma de uma necessidade imperiosa, uma compulsão, capaz de reduzir a ansiedade/estado de sofrimento que se descarrega provisoriamente na ejaculação pública sobre Outro e, contudo, não consegue preencher aquilo que “Falta-lá”, e que reside na origem do próprio sofrimento, obrigando-o a uma repetição constante, e traz em si, necessariamente, a possibilidade da punição como realização, bem além do gozo masturbatório imediato. Ou seja, na sua repetição incansável, perigosa, e que já dirige a vida útil de Diego, a masturbação pública não busca a realização do gozo e sim da punição, anunciada por um Superego que se identifica com a Lei.

Diego repete a ação três dias após a sua libertação: há agora no ato de se masturbar publicamente até a ejaculação um novo conteúdo[44].

O ato de Diego sintetiza uma busca continua por uma punição para além do gozo. Sabendo-se o risco de linchamento e, em outra hipótese, o destino de estupradores nas prisões brasileiras, o ato repetitivo de Diego traduz-se ao fim como pulsão de morte.   Em Diego o ser-em-si abandona qualquer possibilidade de futuro, desiste de um projeto – Entwurf – posto que o presente não é transito possível para o futuro tornando-se apenas a repetição lacunar do passado, nega a realização de ser-para-si antevendo-se somente enquanto um ser-para-morte [45].

A masturbação masculina, embora universal, merece no processo educativo um imenso investimento repressivo e uma grande gama de punições, imaginárias ou não, impostas de fora e interiorizadas ao longo das fases de socialização do indivíduo, sob a forma de culpa, compondo parte central do processo de “educação” dos meninos (e claro, também no caso das meninas), desde tenra infância[46]. Freud protestou perante a tentativa médica de etiquetar sob o rótulo de masturbação somente o universo de experiências e ensaios praticados durante o período da puberdade, preferindo ampliar e projetar formas diferenciadas de masturbação para um universo muito mais amplo de sensações e experiências gratificantes da criança desde seus primeiros meses de vida, o que nos dá a chave de compreensão da fixação de Diego.[47]

Na sua recepção social concordamos que a masturbação é algo que, malgrado a universalidade, e, mesmo, a continuidade na vida adulta, sempre negada em etapas avançadas da maturidade masculina (e a partir da puberdade, via uma interiorização onde ora a abstinência mostra-se prova de masculinidade, ora as relações sexuais duais são entendidas como as únicas verdadeiramente “valorosas”) “…continua sendo algo profundamente privado”, muito especialmente para mulheres[48]. Tornou-se comum na fala cotidiana brasileira, por exemplo, denominar trabalhos e ações insatisfatórios, de baixa gratificação e/ou de escasso retorno de investimento ao Ego, e sempre repetitivas, ou mesmo queixas contínuas sobre um mesmo assunto, sob a rubrica generalizante de “punheta” – masturbação. Assim, no universo comum e popular a masturbação, embora universal, é plenamente desvalorizada, sendo claramente considerada um prazer “menor”, expediente desprezível e, identificado como uma pratica “infantil”[49].

Mesmo tendo sido valorizada politicamente pelo feminismo nos anos de 1960 em diante enquanto forma emancipatória, no universo masculino, onde paradoxalmente é uma prática muito mais ubíqua – seja na forma solitária, seja na forma “à dois” hetero- ou homossexual – a masturbação é motivo de chacota, de piadas e fonte de embraço quase sempre ligadas a um tempo “de moleque”, portanto descartada como pouco honrosa por um homem adulto[50].

Ser portador de pênis na nossa sociedade é um bônus, mas há um processo claro de domesticação punitiva do mesmo, de controle da agressividade masculina, em prol de uma convivência considerada minimamente civilizada, o que acarreta formas variadas punições – educacionais, médicas, sociais, simbólicas –  caso o jovem macho não seja capaz de administrador o uso masturbatório do seu próprio pênis. Incluindo aí as formas simbólicas altamente agressivas. Na pesquisa acima citada – realizada na cidade de Brasília em 2017 – cerca de 39% dos entrevistados – na maioria homens, heterossexuais com menos de 30 anos – admitiram, anonimamente, ter se masturbado ao menos uma vez no último ano em um lugar público. Contudo, na explicitação desse “lugar público” surgiam banheiros públicos, vestiários, piscinas públicas e salas de aula (em plena aula!)[51]. Mas, todos os entrevistados afirmavam cuidados para não serem pegos e punidos[52]. Uma outra pesquisa, ainda nos Estados Unidos, envolvendo um universo de 15 mil pessoas de ambos os sexos, entre 18 e 60 anos de idade, nos mostra que homens com relações estáveis, e felizes, ainda assim se masturbam, pelo menos uma vez a cada duas semanas. Ou seja, a masturbação cumpre uma diversidade muito maior de papéis na vida sexual “comum” do indivíduo, não apenas de “sexo substituto” – embora na pesquisa homens que se digam infelizes em relacionamentos se masturbem mais – como ainda desempenha o papel de atividade sexual paralela e complementar na vida daqueles que se declaram felizes na vida sexual com um parceiro fixo, inclusive casados, voltada para um universo de fantasias e de onipotência, necessária para uma descompressão do cotidiano[53].

O Caso do Masturbador do Ônibus é original – mas, só na aparência, posto que nos meses seguintes teríamos uma verdadeira “epidemia” de casos semelhantes de masturbadores públicos nos grandes centros urbanos do Brasil – exatamente pelo fato do perpetrador não ter nenhum cuidado em ser pego e preso (o que não é o traço marcante dos demais casos, onde há uma clara negação da autoria da ofensa sexual com a busca de descaracterizar do ato)[54]. Não se tratava, no caso, de uma ausência psicótica de culpa ou uma denegação, explicitante de síndrome perversa. Ele reconheceu o caráter negativo, ofensivo e afrontoso do ato, expondo em detalhes sua narrativa alucinante. Só não desenvolveu quaisquer mecanismos de autoproteção, bem ao contrário, e colocou-se de forma positiva imediata perante à autoridade do Estado e experimentou prazer na fala repetitiva dos atos e em ter alguém, representativo de autoridade, para ouvi-lo, gozando a sua própria narrativa “como uma forma de dar a si mesmo um valor” [55].

Diego F.N., o “estuprador do ônibus”, confessa que entre os 15 e os 16 anos de idade, passou por um estranho processo em que “desaprendeu” a administração do seu pênis e do seu uso masturbatório, aventando um distúrbio derivado do acidente de transito que sofreu, incluindo um coma daí derivado[56]. Mais uma vez cabe um importante alerta interpretativo sobre a realidade do discurso do neurótico e do histérico, fato já advertido por Freud e Breuer, em especial no referente ao discurso fantasista das crianças sobre abusos e assédio como fonte do sofrimento.

Diego, em sua história, oferecia à Lei os seus sintomas como o todo de seu psiquismo, a própria história de vida que Diego havia construído para si enquanto estratégia narrativa – com o acidente e o coma seria o “ano zero” da “doença”, do seu ato culposo. E simultaneamente uma narrativa de uma façanha, uma história de poder. A narrativa emerge plenamente costurada na realidade, funcional, e aderente aos sintomas, embora fundada em um delírio neurótico. Após investigações, pode-se estabelecer que Diego já havia cometido ao menos 17 atos de assédio sexual com registro policial – alguns podendo ser qualificados de estupro, posto haver contato indesejado e forçoso com a vítima. Tais atos estendiam-se ao longo de 8 anos, ou seja, depois do acidente e do coma narrado como “gatilho’ por Diego. Vemos, assim, uma razoabilidade excelente, capazes de convencer numa narrativa funcional, na qual o próprio individuo inseriu seus atos e explicou ao Outro, o “Mitwelt”, e para si mesmo, um ato repetitivo que ele mesmo considerava odioso, e, contudo, merecedor de manchetes e de atenção geral, lembrando a afirmação freudiana de que “(im)pulsão se satisfaz essencialmente da alucinação[57]”.

Com a limitação do material ao nosso dispor – jornais e depoimentos judiciais do réu e a dificuldade daí decorrente para lidar com o método psicanalítico e o material típico da metodologia dos “indícios” da Micro-História– temos que capitular perante o esforço de uma psicologia profunda do caso em pauta para além dos pontos já assinalados[58]. Cabem, no entanto, duas respostas simples para a questão central colocada sobre as relações entre a Psicanálise e as Ciências Sociais que talvez possamos avançar: o que do comportamento de Diego faz parte de um problema ontológico do indivíduo, o “Eigenwelt”, ou seja, estão no âmbito dos fatores predisponentes ou causais e o que, por outro lado,  faz parte de fatores sociais, ou seja, são fatores incidentais, “Umwelt”, comum a outros indivíduos e portanto de cunho filogenético, estão presentes no Caso Diego?

Coloca-se então: o que Diego fez,  foi feito porque podia e sabia que seria prazeroso e não seria punido por isso; ou, bem ao contrário, o fez porque sabia que era um coisa ruim e, assim mesmo, ou por isso mesmo, o fez repetidamente até que a busca por uma punição garantisse a cessação do ato considerado indigno?
A repetição compulsiva, pública, em espaços onde não poderia esperar nenhuma “fuga” da cena – na contramão das trajetórias clássicas de estupradores em série e mesmo de exibicionistas mais comuns – explicita uma dependência de uma demanda que não pode ser superada, contida, e   que ao mesmo tempo se mantém  insatisfeita, da qual o sujeito nada sabe e não tem acesso, recalcada num tempo do não-ser e punida por um Superego tornado legislador severo e agressivo[59]. A repetição apresenta-se, então, enquanto sintoma de uma doença “tangível”, autodiagnosticada”, que não carece de perscrutação: o retorno ao coma decorrente do acidente de transito e, assim, envolve em delírio o segredo bem guardado do trauma. A satisfação possível do sintoma garante que sua causa última se mantenha protegida, e da mesma forma, exigente da punição ao se realizar como repetição precária, lacunar.  Apresenta-se como revivescência de uma fase muito antiga, primeva, na formação do indivíduo – obviamente muito aquém do coma aos 16 anos -, que por vergonha e culpa, causa sofrimento e exige punição ao lado de um brusco deslocamento capaz de explicar e, quem sabe, gerar até mesmo alguma simpatia e satisfazer uma vontade de poder condensada em fala sob a forma de confissão.
A punição viria, cedo ou tarde, via a prisão e a segregação num ambiente de confinamento – e então garantiria no delírio neurótico a cessação do viés perverso do ato gozoso, posto que o gozo masturbatório adulto em público seja perverso – ou através de um ritual de linchamento, ao qual o rapaz se expôs nos locais mais movimentados e públicos da capital paulista. Ou, ainda, no espaço do não-dito do que poderia acontecer com Diego na prisão.

Na repetição do seu gozo havia uma irrefreável pulsão de morte – um vínculo insuperável entre sexo e morte e, mesmo, com a morte singular do indivíduo, que realiza na repetição um processo regressivo – muito anterior e independente da própria narrativa do acidente de transito e do coma – que remete seu reviver a uma fase sádico-anal, tornada ponto de fixação e de partida para uma compulsão de tipo repetitivo.
O grito de ajuda, o pedido de punição imediata, visando a cessação do gozo perverso – masturbação de um homem adulto, em público, em uma situação adversa, contra a vontade do objeto de investimento libidinal e sob grave risco pessoal – não foi sequer considerado pelas instituições que deveriam reconhecer as condições de alto risco que envolviam todos os presentes na situação: as mulheres colocadas numa situação de objeto de investimento de um gozo perverso, agredidas de forma a mais vil possível para uma mulher; para os demais passageiros, incluindo crianças que podem ter na cena uma discutível  iniciação precoce de tipo traumática a um debate por demais complexo e mal-dito na sociedade, aos passageiros em geral, em especial aos demais homens que poderiam correr o risco de assumir a postura de serem “chamados” à condição de “justiceiros” – numa sociedade que políticos e mídia incentivam, nos nossos dias, o linchamento de “bandidos”, em especial de “criminosos” de feição sexual  – e para policiais, talvez impelidos a burlar as leis e ir além de suas funções de polícia e também converterem-se, nas suas circunstancias,   em “justiceiros”.
Enfim, Diego F.N., de 27 anos, trabalhador, solteiro, pardo, com uma história traumática de acidente de trânsito, e nem por isso plausível e muito menos justificável de sua neurose, não foi em momento algum ouvido enquanto sujeito do sofrimento: e quando afirmamos que não foi ouvido não nos referimos a sua narrativa neurótica e a pretensa etiologia daí derivada – do seu acidente e de seu coma. Não foi ouvido no seu pedido público de punição/dor.  No seu grito constante de alerta para o perigo que ele portava para ele e para os outros, em especial as mulheres, tomadas enquanto objetos-para-si  – figurantes sem rosto – num “Mitwelt”, um “com-o-mundo”  tornado em inferno  a ser agredido enquanto  possibilidade da repetição do ato fundante do sofrimento, na expectativa inconsciente de recriar um passado – num teatro da vida –  não sabido num presente dominado e dirigido, ensaio após ensaio, em direção a um “pode-ser”, último ato, a catarse, que não foi escrito ou sequer ele mesmo conhece o argumento.

As instituições que deveriam ouvir a estridência do grito de dor – uma, duas, três… (até as 17 vezes registradas) – em que houve ejaculações sobre mulheres surpreendidas, atônitas, chocadas e, com toda certeza, traumatizadas, mantiveram-se omissas ao caso.  As queixas de Diego de impossibilidade de conter a repetição do ato não mereceu atenção de nenhuma instituição da sociedade, embora ele tenha sido levado perante tais instituições variadas vezes e tenha mesmo sido internado, por outras razões, por um longo tempo em um hospital[60]. Mas ninguém o ouviu.
Diego não nasceu andando de ônibus e ejaculando em pessoas: todo o processo de sofrimento tem uma origem constitutiva e seu gatilho, a origem precipitante ou acidental, e essa origem reside numa dor que precisa ser aliviada através de um sintoma e lembremo-nos: “os sintomas são a própria vida sexual dos doentes”[61]. O gozo, e seu viés perverso, de Diego F.N. é um sintoma, expressão de exigências pulsionais neuróticas em presença de protestos moralizantes antagônicos de um Superego tirânico, lançando o indivíduo em sofrimento intenso[62]. Há algo maior, oculto, mal-dito, que causa uma profunda dor, tamanha que o rapaz prefere o tremendo risco da prisão, do espancamento e mesmo do que pode acontecer com ele numa prisão, um mal maior e ameaçador que ronda os estupradores e é do domínio do bem-sabe. Ele conhece, e, no entanto, não é dito mantendo-se inter-dito, embora seja sabido e a mídia, os policiais e a opinião pública o ameacem: ser levado a um presídio e ser, ele mesmo, estuprado.

Nas redes sociais, nos dias entre 29 de agosto e 10 de setembro de 2017, quando o Caso do Estuprador do Ônibus esteve mais em voga, a maioria dos “posts” exigiam de uma forma ou outra o estupro de Diego, forma de Justiça reparadora e espetáculo de inversão – o estupro masculino – guardado no inter-dito social de uma sociedade organizada em torno dos valores do falo e que considera o estupro uma pena ex-Libris do em face do Código Penal brasileiro. Explicita-se, dessa forma, bastante bem a cultura falocrata e neurótica brasileira, onde a vingança substituiu a reparação e o extermínio do culpado dá lugar a recuperação e reabilitação do apenado[63]. Uma análise massiva de tais “posts” seria, em si só, um importante trabalho de psicologia de massas de determinada camada da sociedade brasileira num momento de crise política, de valores (com)rompidos e grave crise de valores. Uma leitura superficial nos mostra que tanto homens quanto mulheres desejavam, como diria Wilhelm Reich, o estupro de Diego e (ante)gozavam o seu destino numa das horrendas prisões do país.

Muitos, inclusive mulheres jovens e de formação superior, desejavam que a mulher, ou a mãe ou a filha do juiz que havia libertado Diego aquando de sua primeira prisão, fossem vítimas da ejaculação do rapaz para “o juiz aprender” o seu oficio e agir com maior rigor, descrevendo em detalhes que a ejaculação deveria ser “na cara”. Sintomaticamente tais “posts” não desejavam a ejaculação “na cara” do juiz, mas sim numa mulher da família do mesmo, de forma claramente misógina e reprodutiva das características falocrata, neurótica e sádica, da sociedade brasileira.  Por sinal prática repetitiva e culminância – a ejaculação na face –  de todo vídeo pornô consumido pela maioria dos homens (e mulheres) na Internet gratuita do país. Assim, vemos que o ato repetitivo de Diego – que poderia ser considerado “normal” em qualquer homem enquanto fantasia de poder sádico quando praticado em frente de computador vendo um vídeo pornô comum de forma solitária  – explicita uma disfunção de compreensão de oportunidade e de objeto, um “desaprendendo” da vida sexual, realizando uma regressão sado-anal, embora de forma alguma uma aberração perversa, uma fantasia deslocada em relação à maioria daqueles em fúria punitivista, ou uma singularidade social.
A segunda prisão de Diego foi sua resposta ao silêncio da Justiça: desta feita ele segura a mão e toca a vagina da vítima tipificando o “constrangimento” que constitui a natureza do ato de estupro perante a Lei brasileira. Diego é preso, autuado e levado a um rápido julgamento – facilitado por sua voluntária e longa confissão, desta feita, de um total de 17 atos de assédio sexual registrados[64].

Diego será condenado a dois anos de prisão em regime fechado num julgamento realizado, de forma sumária, ainda em setembro de 2017.

Durante estes 17 atos não houve nenhuma resposta, nenhuma ação, do Estado ou de qualquer instituição que ouvisse Diego ou suas vítimas. A única resposta obtida foi a negação. Negaram qualquer ajuda, colocando o rapaz, o agressor responsável – sim, porque mesmo na dor se é responsável pelos atos que se pratica para superar, “esquecer”, ou reescrever sua própria condição de “estar-aí”, sublimar a própria dor, afinal o Outro “não-está-aí” disponível para a dor. As vidas vividas de forma intoleráveis para Eu, lado a lado, no “Mitwelt”, vidas do “estar-aí”, não são objeto para mitigar ou cessar involuntariamente, compulsoriamente, por um instante, a dor que consome o Eu encerrado no seu próprio mal-estar. Diego, frente a frente com as mulheres, tornadas objetos indistintos, afirmou que escolhia suas vítimas “ao acaso”, sem tipo, cor, idade, roupas, apenas porque estavam lá, neste “Dasein” infinito para a busca da “falta-lá’ sem rumo do perpetrador.

Em tal situação emergiu um grande risco para o conjunto de mulheres que viajam de ônibus – mulheres comuns, trabalhadoras, possíveis colegas de homens do mesmo grupo social que Diego F.N. Risco inclusive de interiorizarem um horror, rejeição, a própria condição em que estão imersas no “Umwelt”, sem que sejam para isso convidadas por uma proposta de transformação do “pode-ser”.

Tais mulheres também não mereceram quaisquer cuidados por parte das instituições, malgrado a possibilidade da emergência de síndromes contemporâneas. Muitas continuaram sua jornada de trabalho. Outras foram para as delegacias depor, submetidas a um terrível processo de exposição: como a “boa prática do saber jurídico” exige foram submetidas a longas narrativas, detalhadas, do ato; a confirmação presença do pênis, do intumescimento e, por fim, do sêmen. Para as vítimas o “depoimento” se impunha pelo relato dos detalhes mais escatológicos perante um público de gênero, classe, formação e, possivelmente cor, diferenciada que irão perscrutar na fala das mulheres – chegando ao limite de indagar da diferença entre saliva e sêmen, do cheiro e da viscosidade dos fluidos –  o que é ou não, por elas e em nome delas, uma ofensa perante a Lei.  São os donos do pênis, letrados, brancos, da elite social que possivelmente jamais foram constrangidos ao contato físico indesejado com o pênis do Outro, que decidiriam onde e até onde as ações de Diego F.N. – tantos outros Diegos que desde então surgiriam –  são ou não uma ofensa para uma mulher, a grande maioria, eles mesmos, masturbadores, e gozadores, na sua solidão, sobre mulheres-bonecas, paralíticas e robóticas.  Assim, além da primeira subjugação ao pênis do agressor, as vítimas devem ser adequar ao pênis da Lei, para que de fato se consuma o estupro.

Mesmo quando mulheres, quase sempre técnicas da Lei, nos explicam honestamente, no caso, os limites da Lei para que haja estupro, não percebem que as Leis trazem em si o poder do pênis e reforçam sua dominação patriarcal e paterna, com seus traços fundantes no sadismo primário. A Lei é o pai punitivo, exige a obediência e quer a submissão.  A denúncia do vazio na ação da “autoridade’ – de serem lançadas num nada de sentido narrativo – sofrido por estas mulheres perante o masturbador que não podem entender, e que, contudo, são obrigadas a descrever e explicar o ato agressor que para elas se ergue no nada (“se estavam em pé ou sentadas”; “qual a roupa que usavam”; “trocaram olhares”; “estavam dormindo no ônibus”; etc…).

Ou seja, há sempre uma dúvida metódica a indagar da falsidade intrínseca da mulher ou da sua conivência e até mesmo de sua culpa. Não se trata de um complô ou de uma trama contra outros grupos da sociedade, seja de classe, seja de gênero e classe, como querem os críticos ao feminismo: trata-se simplesmente da revolta e exaustão, única a dar algum sentido a vivência derivada do choque. Uma pesquisa realizada pelo IPEA em 2014, em 3.809 domicílios consultados, em 212 cidades espalhadas pelo Brasil, constatou que 26% dos brasileiros consideram que mulheres com roupas “que mostram o corpo” mereceriam ser estupradas[65].  No entanto, outra pesquisa, realizada em agosto de 2016, já em plena “onda conservadora” que avança no Brasil detectou uma tendência preocupante:  a percepção sobre violência sexual e atendimento a mulheres vítimas nas instituições policiais – a pesquisa  entrevistou 3.625 pessoas em 217 cidades de todas as regiões do país, entre os dias 1° e 5 de agosto de 2016 – feita pelo Datafolha, registrou que 42% dos homens entrevistados consideram que o estupro ocorre em razão das roupas provocativas utilizadas pelas mulheres[66].

Para a “autoridade” a prioridade é o agressor, simplesmente porque é natural para homens poderosos que assim o seja posto que interiorizam a fala de uma sociedade onde a dominância peniana se exerce por si só, pela ordem natural das coisas na própria educação diária de meninos e meninas, mesmo no interior de suas famílias até as instancias máximas dos códigos da Lei – escritos por estes mesmos homens e suas circunstâncias e experiências predominantes. A “falha” de Diego – para eles, esses Outros, trata-se de uma falha de controle na interiorização da Lei do pênis tão somente, a questão encerra-se na condenação prisional de Diego.

As razões da regressão infantil e neurótica de Diego não cabem na Lei e o choque das mulheres não é uma questão.

Para as autoridades, a mídia e os guerrilheiros das mídias sociais seria por demais subversivo aceitar que todo o caso reside num doloroso processo de regressão de vasto conteúdo sádico-anal com traços de onipotência narcísica e agressão voltado contra mulheres – e de dimensões sociais, ou seja, coletivo. O conteúdo sádico-anal da regressão de Diego, ao qual não pudemos chegar pelo método da palavra, mantendo-nos no terreno das hipóteses de trabalho com o material disponível, expressa-se claramente através de fantasias de onipotência tão típicas da masturbação já detectadas por Melanie Klein, na confissão reiterada e detalhada (como uma forma de conversa “entre homens”), e da agressão contra as mulheres como grupo (para além de qualquer escolha de um tipo ou perfil, caso de um psicótico). A exigência posta na Lei de se dizer “Não quero” para se tipificar o estupro, com todas as letras, e a resistência necessária por parte da vítima, a ser provada com escoriações e sangue, caso contrário não haveria o crime, pode claramente redundar na própria morte da vítima, como resultado da imposição de um freio à agressividade neurótica do macho, produto da Lei identificada com o falo instaurador da Cultura.
O Caso do Masturbador do Ônibus, portanto, não se resumo ou se encerra, portanto, em prendê-lo, aprisiona-lo em comum com outros casos que apenas imaginamos o universo mental, e, assim acalmar as consciências revoltadas informadas pelo punitivismo sádico – não é isso que se discute, alimentando a “vibe” punitivista que o fascismo em ascensão na sociedade exige. Ainda mais agora, com a publicidade toda que o caso e seus sucessores/masturbadores conseguiram na mídia[67]. Trata-se, neste momento, de uma prisão de alto risco e a vida e integridade desse rapaz é hoje, caso não seja tarde demais, um desafio lançado à nossa sociedade – por um padrão mínimo de civilização. Desafia-se, em todo este caso, a nossa sociedade, a ser capaz de solucionar questões complexas de sofrimento na modernidade urbana e industrial, de manter-se, de manter-nos, um ponto além da barbárie e não buscar na pulsão de morte a resposta ao sofrimento de massas contemporâneo. Ignorar um grito de dor, como fez o Estado na figura do Juiz, do Ministério Público – onde funcionava um grupo de estudos e de proteção aos crimes de gênero (!!!) – mesmo que sob a forma de delírio neurótico ou gozo perverso, é de extrema crueldade. Insensibilidade imperdoável com todos os atores envolvidos na tragédia.

O não reconhecimento de uma situação limítrofe existente no “Umwelt” social criado em torno do rapaz agressor é claramente seletivo. A repetição dos atos masturbatório – dessa vez em termos de multiplicação do evento – nos mostra que os fatores filogenéticos, incidentais, são tremendamente fortes e atuantes na nossa sociedade, infantilizada, regressiva e com fortes traços de sadismo. A Lei neste sentido é tão somente a expressão do mundo cultural patriarcal que informa a mente do legislador a partir do seu lugar cultural de fala, topos venenoso e lacunar, e assim permite a continuidade da dor num mundo desigual: e este mundo é um mundo masculino, falocrata e onde a noção de ofensa é inteiramente de gênero, de cor e de classe expropriando a experiência vivencial do Outro em nome de um capital de saberes técnicos cifrados. Ou estamos perante a crença cultural que entre “esse povo” as “coisas são assim mesmo”, e o comportamento lúgubre e a promiscuidade, “natural” nos chamados “grupos subalternos”, não é a ofensa que ofende as elites bem-nascidas que não precisam viajar em ônibus ou metrôs superlotados?
Para com as vítimas da perversão, quase sempre mulheres trabalhadoras cansadas, exaustas, usando transportes públicos horrendos, caros, inseguros e lentos, onde por vezes dormir 30 ou 40 minutos é um alívio, é uma crueldade repetitiva e explicitante do descaso da elite machista com as mulheres trabalhadoras. Na outra ponta, com o perpetrador do gozo perverso, explicita-se a incapacidade da sociedade em seu todo em socorrer um individuo em pleno processo de sofrimento repetitivo agudo a ponto de colocar em risco seus semelhantes e a si mesmo. Ou seja: as regras que valem para um grupo social protegido e preservado, não valem para a maioria pobre, trabalhadora, mestiça e em especial de sua parcela “mulher”.

Por fim, no processo devemos destacar: 1. A reação tecnicista dos operadores do Direito, insensível e distante da compreensão opressiva que os indivíduos – no caso todos oriundos das classes trabalhadoras, perpetrador e suas vítimas – vivem e sofrem num contexto de crise social e depressão, onde o desamparo e a perda de expectativas é generalizada; 2. a ira mediática dos “heróis das redes sociais” beirando ao fascismo, quando pedem: “cortem o bilau dele”, ou “coloquem na prisão para ser entregue aos demais presos” ou “boa surra resolve” ( repetindo o processo “educativo-repressivo-repetitivo” dos meninos punheteiros!) – tais manifestações em nada diferem dos programas de extermínio executados pelo Terceiro Reich e regimes afins, incluindo os linchamentos nos Estados Unidos ou mesmo no Rio de Janeiro, a partir de atos reais ou imaginários, diagnósticos médicos viciados ou não. A sociedade não se vinga em seus indivíduos, ou não deveria fazê-lo, e tal ação em nada resolve a questão colocada – a pulsão de morte vivida como dor intensa e, então, sublimada em gozo perverso compulsivo; 3. particularmente é revoltante o número de “posts” que propõem, a “pedagogia justiceira”, que alguém ejacule na “cara” da filha ou esposa ( presuntiva) do juiz – neste caso a falocracia e a misoginia se reproduzem de forma sádica e o pênis se impõe como o justiceiro-mor de toda a sociedade, resolução final de conflito, confirmando a inter-relação mental antiga entre pênis e Lei – tais pessoas são, na verdade, os verdadeiros “machistas”, de ambos os sexos, adoradores de pênis justiceiro. Ora, pênis foram feitos para o gozo, eventualmente para a reprodução, não para punir ou justiçar ninguém.

O que precisamos é entender a existência de núcleos intensos de dor na sociedade contemporânea, gerando processos complexos de sofrimento numa sociedade massiva, industrial, urbana, em crise, e que tais processos levam as pessoas a comportamentos maldosos, perversos e cruéis. A maioria delas não tem acesso à organização psíquica geradora da sua própria dor, “ocultam” sua dor em sintomas que podem ser muito cruéis para com os outros ou os camuflam, deslocam, em vantagens sociais e em seus pretensos méritos e vitórias pessoais. Diego F.N. expôs publicamente o que considerava o mal, o feio e o necessário para o alívio de seu sofrimento e por isso merecia punição. Alguém disse, em algum momento de sua vida, o que era feio e punível, e ele acreditou muito nisso.
Muitos dos que sofrem não possuem recursos monetários ou intelectuais para recorrer a ajuda necessária e, no processo de sofrimento, afastaram-se do seu núcleo básico de amigos e familiares que poderiam servir de algum apoio – se não for o caso, mais que provável, do núcleo familiar ser a própria origem primária da afecção, tão claramente desviado para um comportamento masturbatório público, de caráter regressivo, infantil, merecedor de punição.
Tais pessoas precisam de ajuda, não de punição, castigo, extermínio. O caso do “estuprador do ônibus” por sua compulsão, repetição, persistência e, principalmente, sua regressão personológica/infantilismo de tipo masturbatória – e sua amplitude social multiplicada em diversos casos – explicita uma sociedade em pleno mal-estar, um caso que permite visualizar um claro nexo entre o individual e o social, entre problema e questão[68].

Devemos ainda nos ocupar com as vítimas. Era/é um claro grito de socorro que usou, de forma abjeta, o corpo de outros – mulheres inocentes, trabalhadoras, vivendo suas próprias trajetórias de dificuldades, superações e crises – como objeto de salvação de um Ego no limite da destruição. Houve aqui uma catexia, um direcionamento de energia libidinal em investimento naquelas mulheres – que são retratos, meros “efeitos Potemkian”, uma paisagem comum, sem rostos para Diego, posto que sua “escolha” é totalmente aleatória, indo desde adolescentes até uma mulher de 56 anos, de todos os tipos, cores e aparências – e que a partir do momento em que se forma a “fixação”, pelo histórico do primeiro ato masturbatório algo entre 12 e 13 anos e o primeiro ato masturbatório público em torno dos 18 anos, sendo o coma a que atribui as origens de sua fixação repetitiva aos 16 anos  – não consegue mais realizar outra escolha de investimento libidinal, caracterizando uma hipercatexia de coisa objetal, posto que as mulheres para Diego deixaram, desde cedo, de serem pessoas.

No mundo fechado de sua dor não há espaço para a dor de ninguém mais e suas vítimas são apenas os vocábulos do grito.
O terrível em todo esse processo é que desde o primeiro momento – a primeira prisão, a o primeiro fragrante e a primeira entrevista com um juiz, afinal um homem formado para ouvir o Outro, numa profissão de onde se originou o “paradigma da auscultação” do que está oculto, enterrado, sob as diversas camadas do corpo – nada se tenha percebido. Ou ao menos no segundo evento… Ou no quinto ou sexto evento. Na verdade, quem ouve hoje o sofrimento das pessoas? De todas essas pessoas envolvidas numa história tão miseravelmente humana restou apenas o silêncio de outro.

 

[1] Francisco Carlos Teixeira Da Silva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, historiador e cientista político, formação junto ao Karl Abraham Institut, Berlim.

[2] JASPERS, Karl. Filosofia da Existência. Rio de Janeiro, Imago, 1973, p. 32 e ss.

[3] JASPERS, Karl. A Situação Espiritual do nosso Tempo. Lisboa, Moraes Editores, 1968, p. 21 e ss.

[4] GAY, Peter. O Cultivo do Ódio. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 12 e ss.

[5] SARTRE, Jean-Paul. A Náusea (1938). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1971, p. 17.

[6] Ver MARX, Karl. Manuscritos: Economia y Filosofia. Barcelona, Alianza, 1974 e FREUD, Sigmund. Mal-Estar na Civilização, Rio de Janeiro, Imago, 1978.

[7]

[8] FREUD, Sigmund. “Pulsão e seus destinos (1915)”. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. vol. XIV, p. 21 e ss.

[9]  Entendemos aqui como “Paradigma Indiciário” em Carlo Ginzburg os seguintes procedimentos metodológicos: “Seu programa se fundamenta em um paradigma ‘indiciário’ cujas origens na segunda metade do século XIX são estudadas pelo próprio autor, revelando as possibilidades epistemológicas abertas pelas obras do crítico de arte Giovanni Morelli, pelo romancista Conan Doyle e pelo psiquiatra Sigmund Freud (todos os três graduados em medicina, desenvolvem em diferentes campos a semiologia médica). Daí suas incursões experimentais no estudo do mito dos homens-lobo, na análise dos códigos de figuração erótica do século XVI ou na contextualização da pintura de Piero della Francesca». BETHENCOURT e CURTO. «Notas de Apresentação». In GINZBURG, Carlo. A Micro-História e outros ensaios. Rio de Janeiro, Difel, 1991. Ou seja, trata-se clemente de uma ponte erguida pela historiografia em direção a Psicanálise e já transitada por vários estudiosos.

 

[10] JUSBRASIL. “CNJ divulga dados sobre a população carcerária do Brasil”. In: https://wagnerfrancesco.jusbrasil.com.br/noticias/129733348/cnj-divulga-dados-sobre-nova-populacao-carceraria-brasileira, pesquisado em 17/12/2017.  O Brasil passa a ser, assim, a terceira população carcerária do planeta – embora não seja a terceira população mundial -, sendo que perto de 71% dos seus presos são negros e pardos, do sexo masculino, e jovens até 30 anos.

[11] Há um vasto elenco de filmes recentes onde a prisão, ou a passagem pela prisão e o medo do internamento são objetivo de uma estética ultra ou pós-realista, tais como “Tropa de Elite”, de José Padilha (Brasil, 2007) ou a novela “Força do Querer”, da Rede Globo, 2017, onde a questão do presidio e das suas condições é constantemente apresentada ao público.

[12] AGENCIA ESTADO. “Homem ejacula em jovem dentro de ônibus na Avenida Paulista”. In: https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2017/08/29/interna_nacional,896138/homem-ejacula-em-jovem-dentro-de-onibus-na-avenida-paulista.shtml, em 17/12/2017. Utilizamos para o trabalho neste artigo de vasto material jornalístico, da leitura das Redes Sociais e do Processo Crime 0076899.192012.08.26.0002 decido pelo SESP de São Paulo. Para o Processo contra Diego F.N. ver: Andamento do Processo 0076899.192012.08.26.0002 Ultraje Público ao Pudor, 18/09/2017, TJ-SP In: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/documentos/499713468/andamento-do-processo-n-0076899-1920128260002-termo-circunstanciado-ultraje-publico-ao-pudor-18-09-2017-do-tjsp?ref=topic_feed.

[13] Ver TJ-SP. Andamento do Processo 0076899.192012.08.26.0002 Ultraje Público ao Pudor, 18/09/2017, TJ-SP In: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/documentos/499713468/andamento-do-processo-n-0076899-1920128260002-termo-circunstanciado-ultraje-publico-ao-pudor-18-09-2017-do-tjsp?ref=topic_feed.

[14] EXTRA. “Em conversa delegado desqualifica jovem vítima de estupro coletivo, 30/05/2016” in: https://extra.globo.com/casos-de-policia/em-conversa-pelo-whatsapp-delegado-desqualifica-vitima-de-estupro-coletivo-19395615.html, pesquisado em 17/12/2017. Ver: VILAR, Leandro. “Reflexão sobre a Cultura do estupro”, In: http://seguindopassoshistoria.blogspot.com.br/2016/06/uma-reflexao-sobre-cultura-do-estupro.html, pesquisado em 17/12/2017.

[15] O GLOBO. “Mulher sofre assédio dentro de ônibus na Avenida Paulista”, 29/08/2016, In: https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/mulher-sofre-assedio-sexual-dentro-de-onibus-na-avenida-paulista.ghtml, pesquisado em 17/12/2017.

[16] O GLOBO. “Suspeito de se masturbar e ejacular em passageira de avião é detido…”, 08/12/2017. In: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/suspeito-de-se-masturbar-e-ejacular-em-passageira-de-aviao-e-detido-no-df.ghtml, pesquisado em 17/12/2017.

[17] FREUD, Sigmund. “Tipos de Desencadeamento da Neurose (1912)”. In: Freud, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, V.XII, 1969, pp. 289-290.

[18] FREUD, Sigmund.  “Contribuições a um Debate Sobre a Masturbação” (1912) In: Freud, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, V.XII, 1969, p. 316 e ss. Ao reconstruir o histórico do debate sabemos que este debate se realizou no âmbito da Sociedade Psicanalítica de Viena, em 1910, sendo seus resultados retomados e publicados com observações de Freud em 1912.

 

[19] AGENCIA ESTADO. “Justiça solta homem que ejaculou em passageira de ônibus”. 30/08/2017, In: https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2017/08/30/interna_nacional,896531/justica-solta-homem-que-ejaculou-em-passageira-de-onibus.shtml, pesquisado em 17/12/2017.

[20] Em 2016 o Brasil registrou 49.497 casos de estupro com uma taxa de crescimento de 4.3%. De forma esquemática podemos dizer que são uma média de 135 estupros por dia, e isso levando em consideração um possível sub-reitor bastante elevado. FOLHA DE SÃO PAULO. “Brasil tem 153 estupros e 12 assassinatos de mulheres por dia…”, 25/12/2017, pesquisado no mesmo dia. In: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/10/1931609-brasil-registrou-135-estupros-e-12-assassinatos-de-mulheres-por-dia-em-2016.shtml.

[21] Para isso ver: REICH, Wilhelm. A Psicologia de Massas do Fascismo. São Paulo, Martins Fontes, 1988. A primeira edição de Reich (1897-1957) é de 1933 e, entre outros pontos relevantes para o caso em pauta, faz uma forte relação entre a ascensão do fascismo na Alemanha e as crises econômica e de segurança pública ao lado da intoxicação do noticiário, por parte da imprensa fascista, de crimes sexuais,  em especial no jornal nazista Der Stürmer implicando profundamente com um inconsciente social fortemente reprimido das massas alemães, em especial das suas classes médias, sujeitas ao impacto da crise econômica mundial de 1930. A ampla recepção das notícias sobre crimes sexuais durante o período da Depressão na Alemanha, em especial aqueles pretensamente cometidos por judeus, é parte fundamental da recepção do fascismo.  Assim, para Reich a revolução social anticapitalista deveria ser acompanhada por uma revolução sociosexual capaz de libertar as massas de sua repressão originária da transformação de um “mais-gozar” em “mais-valia”, ver pp. 52 e ss.

[22] NEUMANN, Franz. “Ansiedade e Política (1956)” In: Estado Democrático e Estado Autoritário. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1996, p. 269 e ss em especial o conceito de regressão de massas em favor de um líder carismáticos e a realização e pacificação da angustia através do fenômeno da “projeção”.

[23] Ver nota 7 deste texto.

[24] FREUD, Sigmund. “Recordar, Repetir e Elaborar: Novas Recomendações Sobre a Técnica da Psicanalise” In: Freud, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, V.XII, 1969, p.196.

[25] Tomamos aqui a expressão “lacunar” no sentido proposto por Jacques Lacan no seu debate sobre o Indivíduo perante os fenômenos do Inconsciente enquanto uma ruptura – a lacuna – que se inscreve numa determinada falta. Ver LACAN, Jacques. “La Sexualité dans le défilés du Signifiant” In: Les Quatre Concepts Fondamentaux de la Psychanalyse. Le Sèminaire, Livre XI, Paris, Éditions du Seuil, 1973, p. 172.

[26] FREUD, Sigmund. “Contribuições a um Debate Sobre a Masturbação” (1912) In: FREUD, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, V.XII, 1969, p. 309-310 e ss.

[27] Idem, Op. Cit., p. 313.

[28] FREUD, Sigmund. “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1901-1905)” In: FREUD, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, 1997, p. 46.

[29] FREUD, Sigmund. “Contribuição a Um Debate Sobre a Masturbação” … p. 316.

[30] GAY, Peter. FREUD: uma vida para nosso tempo. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 612 e ss.

[31] A exploração desse eixo analítico nos parece extremamente rico, buscando num pré-Édipo sádico as origens do distúrbio em pauta, conforme: DELEUZE, Gilles. A Apresentação de Sacher-Masoch. A Vênus das Peles. Rio de Janeiro, Livraria Taurus, 1983, p. 131 e ss. Contudo esse caminho só poderá ser seguido a partir de um trabalho direto com o referente.

[32] Ver: MAY, Rollo. Love and Will. Nova York, W.W. Norton & Co., 1969.

[33] Ver FREUD, Sigmund. “Tipos de Desencadeamento da Neurose (1912)”. In:  FREUD, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, V.XII, 1969, p. 289 e ss. Bem como “A Disposição À Neurose Obsessiva. Uma Contribuição ao Problema da Escolha da Neurose (1913)”. In: Idem, Ibidem, 393 e  401.

[34] JASPERS, Karl. A Questão da :Culpa. A Alemanha e o Nazismo. São Paulo, Editora Todavia, 2018, p. 23 e ss.

[35] FREUD, Sigmund. “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade…” p. 41.

[36] FREUD, Sigmund. Op. Cit., p. 36 e em especial a Nota 2, de 1920.

[37] Ver para a questão da “denegação” DELEUZE, Gilles em Op. Cit., p. 133.

[38] JASPERS, Karl. Op. Cit., p. 97.

[39] Aqui, na reação do público das redes sociais, ao Caso do Masturbador do ônibus, podemos ver uma similaridade notável com a recepção do público do jornal nazista “Der Stürmer”, editado pelo notório nazista, e terrível antissemita, Julius Streicher, entre 1923 e 1945, caracterizado pela publicação de pretensos crimes sexuais cometidos por judeus contra moças alemães, com descrições detalhadas de atos perversos que atingiam claramente o Inconsciente de uma população altamente reprimida e atingida pelas necessidades de sublimação constante de prazer em trabalho extenuante. WULF, Joseph. Presse und Funk im Dritten Reich. Viena, Ullstein, 1983, e ainda a obra já citada de Wilhelm Reich, ver Nota 16.

[40] Em algum momento poderíamos registrar um traço marcante de hipocondria no comportamento de Diego F.N., com uma narrativa de internações e cuidados médicos decorrentes de um acidente de trânsito culminando num coma. Apesar de um longo tratamento clínico e ambulatorial nada foi diagnosticado como uma doença passível de uma clara etiologia pós-traumática. No entanto, e não conseguimos maiores informações sobre os sofrimentos físicos apontados, que possam caracterizar uma causa física que ampare as muitas reclamações de sofrimento físico do perpetrador ou, por outro lado, que possamos descartar de forma absoluta.

[41] NUNES, Eustachio Portella. Obsessão e Delírio: Neurose e Psicose. Rio de Janeiro, Imago, 1976, p. 15.

[42] Ver GINZBURG, Carlo. História Noturna. São Paulo, Companhia das Letras, 2012, em especial a “Introdução”, pp.9-44.

[43] Nos referimos aqui na prática social brasileira, bastante comum, de “mostrar o pau”, uma expressão que pode ser metafórica – dependendo da situação social – ou mesmo performática, com gestos que ao segurar sobre a roupa o pênis, o destacam. Assim, o machismo falocrata socialmente sancionado, e mesmo positivado, incentiva às práticas discursivas ou não de “mostrar o pau”, sinonímia de resolução machista de contendas.

[44] O GLOBO. “O homem preso após ejacular em mulher no ônibus é preso novamente ao atacar outra passageira” 02/09/2017. In: https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/homem-e-preso-suspeito-de-ato-obsceno-contra-mulher-em-onibus-3-caso-em-sp.ghtml, pesquisa em 17/12/2017.

[45] FREUD, Sigmund. Para Além do Princípio do Prazer, Psicologia de Grupo e Outros Trabalhos (1920-1922). Rio de Janeiro, Imago, V.XVIII, p. 24 e ss.

[46] FREUD, Sigmund. “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” p. 63 e ss.

[47] FREUD, Sigmund. Idem, nota 1 à página 67 onde Freud destaca o caráter centralizador da masturbação como o “poder executivo”, sintético, de toda a sexualidade infantil e, por isso mesmo, o mais apto para centralizar e expressar a culpa.

[48] Ver LAQUEUR, Thomas. Solitary Sex: A Cultural History of Masturbation. Nova York, M.I.T. Press/Zone Books, 2003.

[49] KLEIN, Melanie. “The Importance of Symbol-formation in the Development of Ego (1930). In: Contributions of Psyco-analysis, 1921-1945. Londres, Hogarth Press, 1950, p. 236-250.

[50] LEONE, Matheus. “A Masturbação em Números: como os jovens se masturbam?” In: https://medium.com/vinte-e-um/masturba%C3%A7%C3%A3o-em-n%C3%BAmeros-como-os-jovens-se-masturbam-741ff4161c73, pesquisado em 17/12/2017.

[51] Idem, Ibidem (em continuação).

[52] Diferentemente uma pesquisa realizada com 600 norte-americanos sobre a masturbação apontou que 6% dos entrevistados, homens, admitiam já ter se masturbado no local de trabalho, em ônibus, metrô e até aviões – referências que não apareceram na pesquisa brasileira. Os termos da pesquisa, de ambas, não foram controlados e portanto a comparação é falha, apenas ilustrativa. IG “Pesquisa mostra como é a rotina de masturbação das pessoas” , 14/06/2017,  http://delas.ig.com.br/amoresexo/2017-06-14/masturbacao-habitos.html, pesquisado em 17/12/2017.

[53] VICE. “A Complicada relação entre sexo e masturbação”, 02/05/2017. In: https://www.vice.com/pt_br/article/d7agyq/sexo-e-masturbacao, pesquisado em 17/12/2017.

[54] EXTRA. “O Homem é preso após se masturbar no trem próxima a uma mulher…”. 04/10/2017. Segundo a SUPERVIA só em 2016 foram registros 63 casos em composições da empresa ferroviária e naquela altura de 2017 já tinham sido efetuadas seis prisões em fragrante de idêntico caso nas composições. Uma mulher, entrevistada pelo jornal, diria: “Cada dia está pior, está virando moda…” In:  https://extra.globo.com/casos-de-policia/homem-preso-apos-se-masturbar-perto-de-mulher-em-trem-na-zona-norte-do-rio-rv1-1-21905720.html, pesquisado em 17/12/2017.

[55] NEUMANN, Franz.  Há tipicamente uma assunção plena da autoridade do Estado e uma anulação da sua própria pessoa, do seu Eu, perante a autoridade, com claro desejo de satisfazer a vontade do poder, considerado como aquele que doa o sentido. Ver p. 277 e ss.

[56] Ver TJ-SP. Andamento do Processo 0076899.192012.08.26.0002 Ultraje Público ao Pudor, 18/09/2017, TJ-SP… conforme Nota 4.

[57] LACAN, Jacques. Op. Cit., p. 173.

[58] Para uma proposta metodológica interdisciplinar ver: BACKÈS-CLÈMENT, Catherine. “Antropologia e Psicanalise” In: COPANS, Jeans et alii. Antropologia: ciência das sociedades primitivas? São Paulo, Martins Fontes, 197, em especial p. 357 e ss.

[59] LACAN, Jacques. Op. Cit., p. 172.

[60] ESTADÃO. “Família alega que ataques a mulheres começaram após cirurgia na cabeça”, 02/09/2017, In: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,familia-alega-que-ataques-a-mulheres-comecaram-apos-cirurgia-na-cabeca,70001963533, pesquisado em 17/12/2017.

[61] FREUD, Sigmund. “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade” p. 42.

[62] Idem, ibidem, p. 42 e em especial Nota 1.

[63] Uma “brecha” neste “inter-dito”, o estupro masculino como regra prisional aceita no sistema carcerário brasileiro, inclusive para presos políticos durante o Regime Civil-Militar de 1964-1985, pode ser vislumbrada no Caso de Oriovaldo B.S., em 3 de maio de 1984, quando em fuga da polícia este jovem se refugiou num apartamento no Flamengo, Zona Sul do Rio de Janeiro, e o enfrentamento com a polícia, resultou que as quatro jovens moradoras do apartamento foram mortas. O fugitivo apresentou como razão para a resistência o fato de ser estuprado sistematicamente no presidio, no Espírito Santo, onde cumpria pena por estupro e preferir a morte a retornar ao sistema penitenciário. Quando da sua primeira prisão, dada a natureza do seu crime – exposto pelos próprios carcereiros – Orivoldo foi “currado” seguidamente por 21 detentos, sob total passividade das autoridades carcerárias. JORNAL DO BRASIL.” Multidão vai ao enterro das quatro moças”, 6/05/1984, In: http://memoria.bn.br/pdf/030015/per030015_1984_00028.pdf, pesquisado em 17/12/2017.

[64] CORREIO DO POVO. “Homem que ejaculou em passageira é condenado”, 05/09/2017 In: http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/Geral/2017/9/627801/Homem-que-ejaculou-em-passageira-e-condenado-por-crime-em-2013, pesquisado em 17/12/2017.

[65] ÉPOCA. “A Culpa é delas”. In: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2014/03/b-culpa-e-delasb-e-o-que-pensam-os-brasileiros-sobre-violencia-contra-mulher.html, pesquisado em 17/12/2017.

[66] GGN. “Um terço da população acha que a culpa é da vítima nos casos de estupro”. 21/09/2016, https://jornalggn.com.br/noticia/um-terco-da-populacao-acha-que-a-culpa-e-da-vitima-nos-casos-de-estupro, pesquisado em 17/12/2017.

[67] DIARIO ON LINE. “População agride suspeito de se masturbar perto de moça no metro”, 04/10/2017, In: http://www.diarioonline.com.br/noticias/brasil/noticia-455959-populacao-agride-suspeito-de-se-masturbar-perto-de-mulher-em-metro.-assista!.html, pesquisado em 17/12/2017.

[68] WRIGHT MILLS, Charles. A Imaginação Sociológica. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1969, p. 61 e ss.

Em Nome da Honra: Pederastia e Camaradagem Masculina no Estado Novo – Francisco Carlos Teixeira Da Silva (UFRJ – RJ) 04/07/2017

nº16maio-out20171Em Nome da Honra: Pederastia e Camaradagem Masculina no Estado Novo (Brasil, 1937-1945)Francisco Carlos Teixeira Da Silva1RESUMOO artigo tratadas relações homossexuais nas Forças Armadas brasileiras durante o Estado Novo (1937-1945) e nas formas de repressão em comparação com a Itália fascista e o Terceiro Reich utilizando-se dos Processos do Tribunal Superior Militar.Palavras-chave:Estado Novo, Homossexualidade, Militares, Repressão.In the Name of Honor: Pederastia and Male Comradeship in the “Estado Novo” (Brazil, 1937-1945)ABSTRACTThe article deals with homosexual relations in the Brazilian Armed Forces during the “Estado Novo” (1937-1945) and in forms of repression in comparison with Fascist Italy and the Third Reich using the Superior Military Court Proceedings.Keywords:“Estado Novo”, Homosexuality, Military, Repression.O “Regulamento Disciplinar do Exército/R.D.E.”, em seu Artigo 8º., aprovado peloDecreto no. 1.899,de 1937,e seguidos pelas demais FFAA, estabeleceu comosua função, e dosdemais entes disciplinadores, “… preparar profissionalmente (tanto no serviço como fora dele) acompostura e o decoro militar, físico e moral, da tropapara consigo mesmo…” e promover a “camaradagem sã”, conforme descrito no seu Artigo 9º. iTais determinações, no espírito que marcava as ações do Estado Novo, deveriam ser extensivas às polícias estaduais e do Distrito Federal, que passam, então, a ser reguladas pelo R.D.E.das FFAA.Esta éa única legislaçãode caráter repressivo, em verdadeuma “Instrução”, que viria ser aplicada a homossexuais na história recente do Brasil. A escolha de militares 1Professor Titular de História Moderna e Contemporânea da UFRJ e Professor-Visitante do CPDA/UFRRJ.

nº16maio-out20172como objeto de pesquisa deve-se, por isso mesmo, a existência de tal legislação e sua extensão aoscivis, quando fossem parceiros de militares ou tais“atoscondenáveis”fossem cometidos em uma organização militar ou em horário de serviço, como o estabelecidono seuArtigo 13º., “Das transgressões”. Os atos contra “o decoro militar”, termo vago e amplo, passam, desde então,ser delito gravecom noção subjacente clara:“…ações ou omissões contra a honra e o pundonor individual do militar, bem como os preceitos sociais e morais”, estendendo a possíveis civis em conluio no ato, as punições previstas no R.D.E.Da mesma forma, o Decreto-Lei no. 510, sobre processo e julgamento de civis em foro militar, estabeleciaa competência deste mesmo foro para julgamento de“…crimes contra os bons costumes”, quando envolvendo um militar e um civil, que passa então a ser “considerado ‘praça””ii.Além do seu aspecto autoritário, e atentatório às liberdades civis, sobrepondo a alçada militar, apontava –sem, contudo, dizer o nome –para um novo delito, dito/ocultado pela noção de “decoro militar”.Assim, bem ao contrário do famoso (Parágrafo) §175, do Código Criminal Alemão (StGB), revisto e agravado em 1935, que seria usado intensamente sob o Terceiro Reich, ou o projeto fascista deCódigo Penal italiano de 1928 (do qual seremos largamente caudatáriosna nossa ciência jurídica), chamado “Comissão Appiani”, não haviano Brasil,qualquer mençãoou condenaçãodireta a homossexualidadeentre adultos. Tal devia-se, de um lado, a inexistência de um “delito homossexual”previstono Código Criminal Brasileiro (e assim a tipificação no R.D.E.ficava prejudicada) e, por outro, um forte preconceito em aceitar, sequer, a possibilidade de ocorrência do delito entre os militares brasileiros –neste ponto, a ausência de tipificação no Brasil coadunava-se de forma correlata com o CódigoPenal italiano, fascista, chamado de“Código Rocco”, de 1930, coma recusa, naquele, de aceitar a existência de um “delito homossexual”entre um povo “tão viril”.Notemos, entretanto, que no artigo “Das transgressões”, do R.D.E.,abre-se um amplo espaço para punir delitos contra a honrae o decoro, bastando uma a inobservância dos “preceitos morais e sociais” para abri a possibilidade de uma interpretação punitiva. Isso não queria dizer, no entanto,que a Policia Civil, em especial no Rio de Janeiro, onde havia uma conhecida cultura, ou “cenagay”, não agisse, e de formabrutal. A repressão em nome “doscostumes e da boa moral” se ocupava das roupas masculinas, gestos,e regras de “moralidade”impostas de forma bastante dura,

nº16maio-out20173com prisões e espancamentos. Assim, quando é colocado em funcionamento o campo de internaçãoprisionalde Dois Rios, em Angra dos Reis (SANTOS, 2009, p. 42), chamado eufemisticamente de “Colônia Correcional”, bem como na carceragem da Rua da Relação, a Chefatura de Polícia da Capital, controlada por Felinto Müller,homossexuais eram mantidos presos, em celas comuns,o que representava sevíciasrecorrentes. Por vezes eram colocados em trabalhos de cozinha e limpeza em celas depresos políticosdo Estado Novo, o que gerava grande mal-estar nos presos comunistas ou liberais. Para esses, a convivência com “vagabundos pederastas”, era vista como mais uma punição imposta pela repressão estadonovista(NASSER, 1947, p.141-142). Nas prisões e campos, gays eram obrigados a fazer o trabalho de limpeza e de cozinha, acentuando a compreensãoda questão gay, então,como uma disfunção degenerativa de gênero e sua díade de masculino/feminino(PINNA, 2012,301). Os registros policiais para este tempo e “ofensa” são vagos e difíceis de análise. Não havendo um crime tipificado, as prisões eramfeitas sob acusações de “vadiagem”,“arruaça”ou”atentado à moral e aos bons costumes” –muitas vezes expresso em travestismos, o que recobre uma imensa gama de ações, gays ou não. No âmbito das Forças Armadas deu-se um debate intenso sobre a tipificaçãoepunição de um “delito homossexual” na sociedade brasileira da época varguista. Os cuidados, previstos no R.D.E.chegavama regrar, preventivamente, a vida de oficiais –nada é dito em relação às praças, embora seja óbvio que estes estavam sujeitos ao mesmo R.D.E. -,ao ponto de estabelecer no Artigo 13º., Parágrafo 44, a proibição de “…perambular ou vagar pelas vias públicas depois das 22 horas”–em especial nas áreas da Lapa até a Praça Tiradentes. Pouco mais tarde, não satisfeitos com o estabelecido no R.D.E., eprincipalmente com os parcos resultados repressivos dos Tribunais Militares –extremamente técnicos e garantesde uma juridicidade estranha aoautoritarismo doEstado Novo –o Ministério da Guerra, em 1941, produzum Decreto-Lei que define “a indignidade para o oficialato”, voltando-se claramente, já no seu Artigo 1º., Parágrafo Único, para o caso “…do oficial que se corromper moralmente pela prática de atos contrários à natureza”, chegando-se, então, aoformal –embora ainda “mal-dito” delito homossexualiii.

nº16maio-out20174Imagem 1: Avenida Passos (possivelmente 1935), junto da Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro, reunia teatros e cinemas, além de casas de tolerância, hotéis e pensões que alugavam quartos para rapazes, em especial para marinheiros, como descreve o escritor Adolfo Caminha. Fonte: http://www.hce.eb.mil.br/index.php?option=com_content&view=article&id=154&Itemid=299.Deve-se destacar que o mesmo Decreto-Lei3038, no seu Artigo 2º., refere-se explicitamente “…ao oficial ou suboficial que corromper subordinado pela prática de ato contrário ao pudor individual”. A complementaridade da Lei afirmava o caráter antinatural e contrário à natureza de tal prática e estabelece uma estranha relação de hierarquia que a realidade virá a desmentir.A questão não-dita do delito homossexual, embora não sendo popular sua condenação na sociedade brasileira, não era, então,uma preocupação isoladano interior das Forças Armadas. Era visto, enquanto fenômeno atávico de degeneração, um dos riscos que ameaçavam a formação de “uma raça brasileira”, por médicos e higienistas. Para estesimpediaa constituição de “uma flor sadia da procriação”, ao lado de outros males endêmicos, como as doenças venéreas, o impaludismo e asífilis –os piores entravespara a formação de uma “raça de titãs”, como surge numartigo da Revista “A Nação Armada”, em 1940iv. O artigo, e outros similares de “A Nação Armada”, remetem, quase sem exceção,a uma díade que se queria cientifica no final do século XIX, baseada na combinaçãodo evolucionismo e seu par contrário, adegenerescência, típico da obra de Bénédict Morel,datadade 1857. As teorias de Morel sobre a possibilidade de “degenerescência” na espécie humana foram rapidamente transcritas para uma nascente e pretensiosa “ciência”, a chamada “Criminologia”, que buscava nos “erros da evolução física e moral da espécie humana”, muitas vezes constatáveis via uma série de características físicas (análise de olhos, sobrancelhas, crânios, cor da pele, etc.), a origem do comportamento criminoso(CALHAU, 2009, p.22). Assim, o autor do

nº16maio-out20175artigo, o capitão-médico Carlos Andrade, influenciado pelo paradigma médico-legal–já antigo na Europa, mas ainda bastante popular no Brasil -busca sua aplicação ao sistema médico-legal das FFAA. A ascensão dos fascismos na Europa e a popularização das abordagens racialistas nas ciências médicas, na criminologia e na psicologia fascista italianas, em expansão no país, terá forte impacto na compreensão da homossexualidade entre nós. Talvez sua maior expressão seja arápida construçãode dois pavilhões para presos“degenerados”no Hospital Centraldo Exército, no Rio de Janeiro.O explícitoracismo contra uma imensa maioriada sociedade brasileira, como negros e mestiços, não se distingue muito do racismo médico e culturalista das autoridades fascistas italianas contra os habitantes do Mezzogiorno. Mas, ao contrário, em vez de se dar, como no caso italiano, uma concentração geográfica dapopulação de “briganti” ede“bárbaros”ao sul, no caso brasileiro a escravidão teriaseimiscuído no conjunto da população brasileira(com uma leve exceção no Sul). Assim, a maior parte dos“elementos”deveriaser disciplinados e “civilizados”, “missão”que o Estado brasileiro não cumpriu e, naquele momento, 1940, cabia as Forças Armadas e ao Estado Novofazê-lo: “… quando a clarinada da Abolição afastou das searas douradas e dos cafezais esverdejantes o braço anônimo do escravo, deu o Brasil o primeiro passo para o marasmo em que hoje se assoberbam as nossas populações do interior”v. Não satisfeito em localizar, historicamente, na Aboliçãoo ponto de partida do marasmo do país, o nosso “capitão médico”, faz uma apologia aossenhores de engenho e ao latifúndio como o verdadeiro espírito “tutelar da pátria” e único “espírito progressista” do país. Estes, privados de seus “rebanhos humanos(sic!) ”, não puderam continuar seu papel civilizador, o que abriu caminho para a degenerescência como fenômeno renitente da sociedade nacional. Como na Itália, um substratodemográfico, mais longínquo no caso italiano,e mais recente no caso brasileiro, de africanos/ “africani”(árabes/mouros), ameaçava submergir uma camada demográficabrancasocialmente superior e vocacionada para o comando. O evolucionismo cientificista, e racista, do final do século XIX, reatualizado pelos fascismos,informa, claramente, o conjunto dos diagnósticos, sejam eles individuais, sejam sociais, das “mazelas” e “vícios” localizados nos indivíduosacusados de crimes de perversão.Tal degenerescência trazia consigo os instintos “animais” mais desonrosos e lúgubres, entre os quais, a sodomia, ou com a era chamadana linguagem de então “pederastia” (o uso de “homossexualidade” era incomum, a diferenciação entre

nº16maio-out20176“pederastia” e “homossexualidade” de pouca ocorrência). De qualquer forma a díade degenerescência/perversão caminhavam lado a lado (DUARTE, 1983, p. 21).O médico, no mais puro espirito eugenista da época, diagnostica a preguiça das classes pobres, dos “rebanhos humanos”, e seu espírito “avesso ao exercício e ao esforço físico”, como a origem, e risco, de degenerescência da raça. Prevê que somente regras absolutamente severas de exercícios e de trabalho, com a necessária “mestiçagem”com o elemento branco–e neste ponto se diferencia claramente da condenação inapelável do nazismo alemão contra os “Mischlingen” ou mestiços -,seria capaz de criar homens aptos para o trabalho e afastar o vício da preguiça, da indolência,da conformidade com a misériae das tendências lúgubres. O campo da biologia, como elemento central explicativo, ocupa o espaço das estruturassociais, como resiliência na explicação do“atraso” brasileiro. Oracismo “médico” brasileiro, de cunho “biologizante”, expresso em “A Nação Armada”, é bastante correlato ao racismo anti-meridional italiano, embora este, em algumas expressões radicais –ao acusar a maior parte da população do Mezzogiorno de não ser “ariana” como os demais italianos do Norte (seriamde origem “africani”), temessem a mestiçagemtal qual os alemães sob o nacional-socialismo temiam os judeus. Oracismo “médico” brasileiro previa, ou auspiciava, uma solução “nacional”para a saúde da “raça brasileira”(SCHWARCZ, 1993, P. 58). Tal racismo, como bem destacaantropólogoAlberto Burgio, constitui-se uma constelação informe de percepções do real, incorporando desde os casos de vadiagem, ócio, preguiça, doenças mentais, umalarga extensão dedoençasvenéreas, homossexualidadenum só diagnóstico de barbárie e de degeneração–de certa forma todo o elenco de presos de “Dois Rios” (BURGIO, 1999, p. 22). AntônioGramsci, analisando as legislações sobre alcoolismo, “preguiça” e desregramento sexual nos Estados Unidos e na Itália aponta claramente para as imposições das novas formas de trabalho, de tipo fordista, que deveriamdestruir as práticas sociais de tipo antigo, consideradas como perda de parte fundamental das energias dos trabalhadores que deveriamser direcionadas para a produção(Gramsci, 1978, p. 378). Burgio, para o caso italiano,chama tais medidasde “continuum discursivo” e “integridade do diagnóstico racista”, enquanto uma forma capaz de justificar e instrumentalizar uma série de normasbrutais de “nacionalização”, “domesticação” e “civilização” dos grupos subalternos visando, diretamente, as exigências da dominação nas condições econômicas e sociais da época(BURGIO,

nº16maio-out201771999, p.24).De forma muito precoce surgem “especialistas” na ciência “do sexo” no Brasil, como o Professor Bené Carvalho (1886-1959), do Colégio Militar, e cuja obra, de 1937, largamente devedora dos manuais italianos, será de forte impacto sobre médicos e juízes brasileiros.Benedito Augusto Carvalho dos Santos, “Bené Carvalho”, jurista, interventor do Ceará (1945) e político da UDN, autor de “Sexualidade Anômala” (1937), que exerceu forte impacto sobre a legislação brasileira. In: http://www.panoramio.com/photo/103651310. Tais normasnão seriam, entretanto, aceitas sem resistência, levando o Estado, e suas instituições de normatização e domesticação (as polícias, a clínica, a escola, a justiça, etc.),a um imenso esforço de vigilância epunição. No dizer de Gramsci as forças subalternas, que deveriam ser ‘manipuladas’ e racionalizadas de acordo com os novos objetivos, resistiriam inevitavelmente (GRAMSCI, 1978, 390). Assim, a “questão sexual” torna-se, nestes anos entre 1910 e 1930, tanto no Brasil como na Itália, um espaço de embate, e lutas, onde as formas “bárbaras”, “imorais” e “antinaturais” de prazere de viverdeveriam ser reprimidas e a libidodirigidaexclusivamente para uma forma “produtiva”,“nova”e “contábil”para asmodernas sociedades industriais de massa.Por este caminho “produtivista” os especialistas em “sexo anormal”, no Brasil“estadonovista”,como o catedrático do Colégio Militar, insistiam que todas as formas de sexo não reprodutivo são, por natureza, “antinaturais”: “…uma escala variada e complexa dos atos de libidinagem, a que o erotismo mórbido sabe emprestar as formas mais originais, exóticas e depravadas..”vi, [que] existiria para além do sexo natural, visto

nº16maio-out20178como exclusivamente a cópula “hetero-vaginal”no âmbito do casamentodeveriam ser penalizados. Assim, procura-se a construção minuciosa de um “imenso catálogo das perversões e seus efeitos”(PEIXOTO, 1999, p. 39). Concluía-se daí uma “naturalidade” produtiva do sexo, encarado como uma necessidade coletiva da sociedade, que não gerava qualquerdireito em relação ao prazer e a felicidade do indivíduo. Como, evidentemente, a sociedade não poderia procriar todo o tempo, os atos sexuais deveriam ser enquadrados e limitados, na sua forma exclusivamente reprodutiva, no âmbito do casamento. As demais formas de sexo (não há qualquer possibilidade de referência aoprazer) classificadas como “anomalias”: “…todas as ações contrárias ao fim biológico da função sexual e, com relação à sociedade organizada, equiparam-se aos factos julgados, pela coletividade, como violações aos fins sociais de conservação da espécie”, afirma o erudito em “perversões sexuais” do Colégio Militar,Bené Carvalho,citando em apoio juristas fascistasque lhe eram, então, contemporâneos. Neste sentido,o onanismo, como entãoeracomumente denominada a masturbação, o sexo anal e oral, e summa super, a chamada pederastia, eram crimes contra a reprodução da espécie, única finalidade do sexo. A “doutrina” seria testada. Em 1941, o Cabo da Esquadra, Manuel R. C.vii, é acusado de “pederastia” contra seu subordinado na Escola de Aprendizes de Marinha, em Belém. O Cabo, que, como destaca a Ação Disciplinadora,“…tinha o dever de orientar” o “ofendido”, no entanto “…depois de ter procurado capturar a confiança de um menor aprendiz”, emprestando dinheiro e dadopresentes, “…convidou-o para atos de pederastia, que foram recusados, mas que ao final, o dito Cabo praticou à força” viii. O menor ofendido manteve-se, durante quinze dias, em silêncio “…guardando sigilo por vergonha”, só revelando o acontecido em virtude de lesões físicas comprovadas pelo exame de delito. Mas tarde, na ação de“Apelação”, o procurador do réu insistiria na boa consciência do marinheiro acusado, nas suas providências para cuidar do jovemem decorrência da violênciado atoe no consentimento deste, que só teria relatado o acontecido em razão do mal-estar físico decorrente da açãoix.O caso da Escola de Aprendizes de Marinha constituiu-se em um paradigma do debate sobre a “pederastia” nas FFAA no Brasil. Caso comprovado, tratar-se-ia, em verdade, de agressão seguida de violência sexual e estupro, como exigia, por sinal, a Promotoria Militar. Ocorre que a Justiça brasileira, então, não reconheciaa figura de estupro masculino, mesmo com uso de violência e consumação de ato de penetração,

nº16maio-out20179caracterizando o crime como agressão contra menor, se fosse o caso, ou atentado ao pudor, no caso masculino maior de idadex. Oconhecido “catedrático” do Colégio Militar,já com título de general, BenéCarvalho, especialista em todas as formas de “sexualidade anómala”, escreveuem 1937: “…a pederastia violenta, contra representante do sexo masculino, perante a legislação do Brasil, não constitui estupro, mas atentado ao pudor, embora, logicamente, devesse ficar caracterizado aquele delito” xi.Ocorre que a Justiça brasileira, então, não reconhecia estupro de homem –para tristeza do nosso “Catedrático” -, caracterizando o fato apenas agressão contra menor. No entanto, a defesa do Cabo Manuel insiste que a vítima não era menor –tinha na ocasião 18 anos –oque abre um debate jurídico, postoque no Código Militar a menoridade seja estabelecida até os 21 anos, e, que, ele mesmo, estava bêbado e a vítima era conhecida como “viciado no delito”. O Cabo é absolvido em primeira instância, gerando a “Apelação”por parte da promotoria, que agrava a acusação com a informação que o réu teria induzido a vítima a beber, para facilitar a ação corrompedora do “atentador”, e teria, ainda,transmitido doença venérea ao mesmo. Na “Apelação”, num tribunal estranho à Escola de Aprendizes, o Juízo inverte as alegações, acusando o Cabo de ser “…dado ao ignóbil vício da pederastia ativa” e considera, o que será regra em tais casos e está conforme o Código de Disciplina Militar, que “…a simples prática do ato de libertinagem com o menor ou contra ele, mesmo que este consinta, incide na sanção do Parágrafo Único do Artigo 148 do Código Penal Militar”.Desta feita o Cabo é condenado e depois de cumprida a pena, expulso da Marinha. Já em 24 de janeiro de 1941 emerge umcaso bastante diferenciado. O Primeiro-Tenente (farmacêutico), Moacir C. A., de 36 anos,de Vitória/ES, é acusado por colega, de igual patente, de “pederastia passiva” fora do quartel. O acusadorsublinha ser o fato plenamente sabido e se declara escandalizado por tal razão,ebaseia-se na impropriedade para o corpo de oficiais e para o exercício da função militar, na qual a relação do acusado é periférica, já que se trata de um farmacêutico e que suas aludidas ações não se dão no âmbito militar. Contudo, insiste o acusador, os atos degenerados e contrários à natureza atingiriam a honra da instituição e tornara-se um exemplo nefando para todos. O acusador, de forma literal, cita o, então, recente Código da Justiça Militar, de 1938, o que faz o ConselhoMilitar reformar o acusado, como inepto para o serviço militarxii. Quando o Tenente Moacir apela, ex-oficio, contra sua reforma, é internado e submetido aexamesmédicosno Hospital Central do Exército, no

nº16maio-out201710Pavilhão de Neurologia e Psiquiatria, no Rio de Janeiro, para onde é enviado. Abre-se, então, um novo,longo, e penoso, processo contra o acusado.Imagem número 3: Hospital Central do Exército, Rio de Janeiro. No Pavilhão de Neurologia e Neurologia foram conduzidos inquéritos sobre a natureza da pederastia entre os anos de 1937 e 1945. Na foto o Pavilhão “Marcelino Aguiar”, com as enfermarias Ismael da Rocha e Paula Guimarães, onde ficavam os presos, 1905. Fonte: http://www.hce.eb.mil.br/index.php?option=com_content&view=article&id=154&Itemid=299. Não havia, no caso,qualquer vítima ou ofendido diretamente pelo Tenente-farmacêutico, e o acusador baseava-se exclusivamente no “ouvir dizer” e em alguns atos e formas comportamentais do colegaditos “afeminados”, sendo comum a afirmação que o mesmo, no local de trabalho, era atento, eficiente e assíduo e, da mesma forma, jamais ofendera qualquer colega. Assim, a acusação exalava, exclusivamente, a dificuldade de relacionamento do próprio acusador com alguém “diferente”, ou que se supunha diferente, caracterizando o que hojechamaríamos de homofobia e assédio moral. Contudo, em plena “era dos fascismos” e, no âmbito de uma “instituição total”, (GOFMANN, 2001, p. 76), como as forças armadas vinham se constituindo no Brasil, a acusação prosperou. Os médicos, solicitados pelo Juízo Militar,no entanto,encontraram-se numa situação incomum: não podiam declarar o acusado doente, considerando-o em plena posse de suas funções psíquicas e de inteligência,e, da mesma forma, fisicamente apto. Daíresultou a produção deuma peça totalmente desprovida de sentido científico ou conteúdo jurídico: “…trata-se de um caso de incapacidade física

A farda, o “Eu” e sua dupla negação

A farda, o “Eu” e sua dupla negação

Mauro Cid se propõe a arrastar esse “Eu-farda”, a parte visível de si mesmo, até o fim como os fragmentos de uma persona que aprisiona e liberta

A presença muda do TC Mauro Cid – um homem adulto, culto formalmente, com experiência de mando e amplo traquejo social, hoje perante a CPI do golpe de Estado de 8/01/2023 implica num duplo fenômeno de negação/regressão do próprio “Eu” do indivíduo. Com a farda procedeu a negação do seu “Eu” individual, do sujeito dos desejos e de senhor do seu arbítrio. A farda ocultou, escondeu, negou o “Eu” próprio, o self, o “Eu no Mundo” do indivíduo Mauro em face de instituição que seria sua única aderência ao “Mundo-aí”.

Com a farda, na solidão, o TC Cid diz quem é, já que deu-se um engasgo da fala, da capacidade dialogal, e assunção do socioleto bolsonarista circuita toda capacidade de “dizer”, assim ele diz com o corpo vestido, couraça e farda, o que resta do que ele é . Ao mesmo tempo, ele se propõe a arrastar esse “Eu-farda”, a parte visível de si mesmo, até o fim como os fragmentos de uma persona que aprisiona e liberta.

Assim, sem ser ele próprio, carrega no seu corpo a instituição que o identifica e que ele identifica, numa dança de perda dupla para ele e a Instituição. É um “Eu” ao mesmo tempo autoritário e que vive no “Angst”, medo-angústia, que se auto aniquila para salvar-se de suas próprias ações oferecendo-se como um “Outro” , coletivo e institucional, que quer culpado em seu lugar. Simultânea, ao se calar, sobre um processo que foi parte, ator e autor -e no qual exerceu um papel no mínimo de “fala do Outro” – aniquila seu “Eu” como indivíduo em favor do “Eu-Outro” que é, agora, a sua única fala; o Outro-Eu que é o “chefe”, o “mito”, o “capitão”.

Assim, ele mesmo, deixa de existir como “Eu” num espiral dupla de negação-recalque que processa a aniquilação pública, instantânea e televisiva, do seu próprio “Eu” em face da Instituição/Estado/Exército com a qual procura preencher o vazio de um “nao-Eu”, que ele quer como farda-fachada no seu lugar de réu e, simultâneo, nega seu “Eu” enquanto ser desejante em favor do “Eu” maior, absoluto, pai-grande, o único que importa, o grande homem, único a restabelecer a “ordem” num mundo sem valores, onde ele se sente sem aderência, e do qual espera infantilizado que pegue sua mão.

O espetáculo de hoje, triste, espelha num indivíduo o processo geral de derrota civilizacional e individual das massas perante o fascismo: a regressão psicológica e histórica de alguém que renuncia a ser alguém e assume, como sua defesa, ser apenas parte de um “Outro” maior, através de/do qual evita o sofrimento e, enfim, se realiza na dissolução n’Outro como um falso “Eu”. Enfim, é todo o fenômeno, assustador.