O Pênis e a Lei: alguns apontamentos sobre as relações quotidianas entre Cultura e Inconsciente.
Professor Titular de História Moderna e Contemporânea/UFRJ
Professor de Teoria Social/UFJF
Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior/Eceme, do Exército  do Brasil

O Pênis e a Lei: alguns apontamentos sobre as relações quotidianas entre Cultura e Inconsciente.

Francisco Teixeira[1].

 

Atoum se manifesta en tant que masturbateur dans  la ville de Heliopólis. Il saisit son membre et y suscita la jouissance.

Texto das Pirâmides, §1248, Antigo Império, 4500 a.C.

 

Uma sociedade minimamente civilizada deveria ter, mesmo entre nós e mesmo no atual momento de profunda crise econômica e política – bem como de crise dos saberes e do agir coletivo -, condições de construir mediações sociais, para além da indesejável instituição manicomial, dotadas de fala e ação,

 

numa forma de amparo, para o sofrimento psíquico que servisse, minimente, de anteparo social para indivíduos duramente atingidos por forte sentimento de des-pertencimento, anomia, que viesse a tornar-se sofrimento emocional. Nos deparamos hoje, na experiência quotidiana, com uma comum incompreensão sobre o tipo de mal-estar que o indivíduo na condição contemporânea enfrenta na sociedade (pós)moderna, não conseguindo distinguir minimamente o que se trata de um Problema, e portanto experimentado na esfera da vivência exclusiva do próprio Individuo nas suas relações com o Outro – o “Mitwelt”, que pode muitas das vezes parecer desde difícil até aterrador, ao limite do pânico, daquilo que poderíamos chamar de uma Questão, que mesmo sendo vivida, experenciada, por um Individuo, é comum a um vasto conjunto de entes, caracterizando-se por um mal-estar coletivo, no qual o “Eigenwelt”, o próprio do Indivíduo, na sua condição ontológica, assume um claro aspecto ôntico, referindo-se ao conjunto de dificuldades, medos e recusas, das relações coletivas do ente com o “Umwelt”, o conjunto do seu mundo vivenciado[2].

É sabido, mesmo que de forma muito impressionista e empírica, que a crise, que já atinge profundamente as condições emocionais, o ânimo, de milhares de pessoas – e não é só uma crise “nacional” como podemos ver nas expressões vivenciadas em sociedades como a americana ou a alemã -, na sua expressão de mal-estar se expressa em metonímias e metáforas de variadas intensidades em variadas condições.   Entre nós apresenta uma face inteiramente nova: a exteriorização sob a forma de ódio de classe, de gênero, de raça, credo e orientação política de um difuso sentimento de perda, uma falta de alguma coisa não sabida, que se queria existente num outro tempo e não existe mais. Sentimento lacunar de perda incomunicável, uma coisa que existiria em um “” – “o da” fora e para além do “sein”, uma falta na possibilidade de um momento à frente, que passa por isso mesmo a ser temido como um futuro assustador e incompleto. Esse futuro não sabido e oculto é, contudo, ocupado, no mais das vezes somente enquanto possibilidade, por um Outro, tornado por isso mesmo inimigo, estrangeiro ao Eu, de quem subtrai uma parcela da sua própria possibilidade futura de existência, roubada em algum tempo do não-sabido no passado.  No espaço do quotidiano esse Outro é identificado como o migrante, o negro, o pobre ascendente, a mulher emancipada, o gay, ou o tudo-isso-junto transformado no Outro, ao mesmo tempo necessário, conveniente e temido, posto que o sentimento lacunar precisa de um Outro, ou ver-se-ia perante o Nada. Em alguns desses casos o delírio neurótico, claramente defensivo, embora de extrema agressividade, acaba por constituir a totalidade da narrativa possível perante o “estar-aí”, o mundo “lá-fora” – o “Umgebung”, hostil e incompreensível, onde o Indivíduo é lançado – “Geworfenheit” -, como puro projeto em branco. Ao escapar enquanto fala neurótica instrumentalizada, o ódio enquanto narrativa contemporânea, atende assim a realização do sintoma do sofrimento como realização de uma (com)pulsão primeva, antiga e aterradora. É o espaço da “falta-lá” comprimido num passado que se recusa a passar – esse é o seu significado, sintoma de um trauma -, inalcançável ao sujeito, lacunar e, de forma aterradora, repetitivo. Em outros casos/momentos pode assumir, no seu limite, um agir prático, tornando a narrativa em ato, uma fuga à frente em busca de dotar de um sentido um “estar-aí” esvaziado de uma existência, incapaz do passo à frente, do “pode-ser” em direção à transcendência.  No entanto a transcendência será sempre uma transcendência metafisica presa à palavra, impossível de realização prática posto que descolada de qualqyer de projeto de vida.

 

A multiplicação dos casos de depressão e a ocorrência de suicídios, ao lado da xenofobia, da exaltação do racismo e das fobias e o cultivo carinhoso do ódio, são todos a ponta, ainda imprescrutada, da crise geral de uma sociedade de massas, modernizada enquanto técnica e paralisada enquanto projeto humanista.

 

O outro conveniente: Escolha aleatória e padronizada.

 

pós-modernidade quando do insucesso da oferta globalista depois de 2008. A outra ponta, é a sucessão de atos de agressão, inclusive homicidas, contra aqueles apontados como o Outro conveniente. A  aparente escolha aleatória desse Outro,  guarda em si um padrão informada pelo racismo estrutural e institucional, que inventa e reinventa permanentemente a mesma pergunta: quem é o nosso judeu?

 

É uma escolha aleatória no sentido que o investimento de todo a energia pode ser direcionado a qualquer indivíduo, parte da humanidade comum. Possui um padrão estrutural e institucional, entanto, no sentido que o investimento do discurso do ódio, e seu agir, se dá em direção àquela aparcela da humanidade que, em meio à crise, decidiu-se por um projeto de transcendência  material em face ao “estar-aí”, recusando a repetição  – a mimesis como projeto de futuro – e buscando um novo topos nas hierarquias existentes e tomando o passado como diegesis.

 

Ao negar o “estar-aí”, propondo-se, lançando-se em direção a um “poder-ser” que realizar-se-á ou não numa “Existenz” autêntica, preenche as lacunas narrativas de perda – de uma subtração de alguma coisa que não é dita –  daqueles que vivem o sofrimento. Assim, as mulheres – essas primeiras e principais ameaças a opacidade de um mundo assentado no “estar-aí” imóvel e imutável –, os grupos que exigem acesso pleno à cidadania, tais como negros e outros etnias submetidas em outras condições sociais ao risco do extermínio ( como os rojingas, só para ampliar a margem de submissões opressivas ou as minorias chinesas durante a pandemia de covid-19 ), os homossexuais na transgressão do corpo em busca do gozo, são apontados como o Outro conveniente – um inimigo que objetivamente carrega a culpa pelo fantasma que ronda muralhas do Castelo de Elsinore e, como a peste, apodrece os fundamentos do Reino da Dinamarca. A exterminação desse Outro, um ritual propiciatório de derramamento de sangue para a manutenção da velha ordem, as muralhas protetoras do Ego, é o preço para garantir a paz sem transcendência formal – que se dá na metafísica, através da repeticação de velhas formulas mágicas, que acalmam e mantem o mundo em seus gonzos[3].

Eis aí a matéria-prima dos fascismos.

Trata-se de uma forma revolucionária, violenta, de conservação do mundo, na qual a palavra, apostrofada, emergindo de um trauma, desempenha o papel central no ordenamento do mundo. Não se trata da palavra decifrada, na chave do desvelamento, mas na palavra tomada como realidade do mundo.

Muitas vezes, ao nos debruçarmos com algum cuidado sobre a narrativa dos atores em presença – os odiadores e suas vítimas – , ou mesmo na fala construída sob a forma de “posts” em redes sociais, onde podemos perceber  o ódio  como tônica da expressão coletiva atual, emerge uma narrativa desconexa e repetitiva – a novilígua sob a forma de fala apostrofada –   contudo costurada num corpus discursivo retalhado, fragmentado, e novamente costurado por alusões persecutórias delirantes através de um liame comum de exclusão do Outro, numa linguagem dual do “nós contra “eles”, onde a ação dialógica, comunicativa, é substituído pelo insulto.. Tal presença falsamente dual – a fala fragmentada e a costura do ódio são, em realidade, falas  perempetórias – explicitam um deslocamento profundo do ser-no-mundo, na sua capacidade de entender a si mesmo e de dar sentido a sua existência-no-mundo, que passa a ser ameaçada pela existência do Outro, vista como pura ameaça – ameaça que ele mesmo não consegue definir ou entender para além do próprio existir negativado, invertido, em especial em um existir-que-se-faz-Outro. Ou seja, o Eu-sendo só existe enquanto versão negativizada do gozo do Outro, esse diferente, e que de alguma forma expressa o gozo interditado, mesmo que seja um gozo imaginário ou apenas antevisto e auto-negado[4].

O Outro que ousa gozar ali onde eu sou impotência/vicío/nojo é votado à exclusão e, se possível, ao extermínio. É assim que mulheres, homossexuais, pretos são os fantasmas a rondar as muralhas de um Eu que não consegue parar de falar em buruco/cú/rosca e, por outro lado mimetizar próteses corporais de exytensões penininas.

A narrativa fragmentada, desconexa, costurada por repetições delirantes de ódio – a novilíngua apostrofada – , volta-se para um passado utópico, imóvel e onde só o experenciado – a utopia imaginária na ditadura que não houve, na tortura que não aconteceu, ou os desaparecidos que não desaprecerem –  possui valor: nada de valoroso existe para aquém do passado, cada vez mais mítico, um tempo comprimido e interrompido por um trauma, que pode ele também ser real ou mítico, erigido à posição de evento fundante e, por isso, presentificado. O passado interrompido pela “canalha” esquerdista/comunista/petista/bolivariana deve ser revivido/retornado/retomado num esforço constante como se a história fosse um exercício masturbátório de um gozo interrompido que pode ser retomado bastanto para isso rever as imagens gozosas que estimulam o prazer: a ordem do mundo perdido.

O presente-agora, “Jetztzeit”, por tanto, é estreito, um tempo de decepções e de perdas,  posto que esse tempo presente não possui mais o passado vivenciado, que foi perdido em brumas distanciando-se do hoje, e torna-se um tempo de corropções onde o inimigo, o Outro é o dominante, portanto, incapaz de acessar qualquer impulso vindo do passado gozado para construir o futuro. No presente, o Indivíduo para-o-sofrimento só vive o passado enquanto repetição/mimesis – sintoma de um sentimento de onipotência, posto que na repetição compulsiva/masturbação da história buscar reconstruir no presente o passado mítico –  no entanto resulta sempre em repetição empobrecida a qual ele não alcança a fruição total, não possui acesso, tornando impossível qualquer gozo no presente ou projeto para o futuro, condenando-se, numa onipotência impotente, a uma repetição sucessiva e dolorosa de um ato que não mais controla. Não há futuro possível, apenas a possibilidade de gozar numa imagem que já-foi.

Assim o que era utopia regressiva, banzo,  se aprofunda em desprazer e se expressa em mal-estar, em “. algo[que] me aconteceu, não posso continuar duvidando. Veio como uma doença, não como uma certeza ordinária nem como uma evidência. Instalou- se pouco a pouco, eu me senti estranho, algo incomodado, nada mais [itálico nosso]. E agora cresce.[5]” Mas, ao contrário do personagem na biblioteca (até por que nossos personagens não freuqnetam bibliotecas) o homem estranhado da sociedade de massas brasileiro – que existe TV aberta, programas do “Ratinho”, Sílvio Santos, em grande parte frequente uma igreja evangélica e não possui o hábito da leitura – quer atribuir a um Outro o sentimento que o invade e sequer sabe que o invade.  

Seja como náusea, “la nausée” de Sartre, seja o “Verfremdung”, a alienação, do primeiro Marx, em especial nos “Manuscritos Econômico-Filosóficos”, de 1844, seja o “Unbehagung”, o Mal-Estar, de Freud, em o “Mal-Estar na Civilização”, há na sociedade industrial de massas, atomizada, anomica, em meio a uma grave crise, um sentimento difuso de perda e vazio no “estar-aí”, um caminhar sempre em frente em busca de um “falta-lá”, a possibilidade do “pode ser”, num vazio escuro. Esse homem ve-se  na obrigação de dotá-lo de sentido sem sequer saber o que significa “der Sinn der Geschichte” – essa busca de sentido na História, esse mal  que atinge milhares de indivíduos, causando forte angustia[6].  Mesmo assim, os atinge. Mas, de forma diferenciada, não exatamente como massa uniforme, o que já foi dito, mas conforme a ontologia de cada um, ou conforme o próprio Freud afirma são os fatores predisponentes – aqueles de tipo constitutivos e por isso uma ontogênese -, que torna o sofrimento de cada um, uma experiência vivencial única – uma necessidade singular de dotar a vida de sentido quando não se vê sentido algum em estar-no-mundo. Franz Neumann, o historiador, diria, que a forma como cada um é atingido e responde pelo mal-estar é a forma como se faz a História[7].

No entanto, esse mesmo fenômeno, o sofrimento solitário único numa sociedade desprovida de sentido e cada vez mais massiva é, por paradoxo, cada vez mais coletivo, e, portanto, histórico.  Daí proliferam razões fundadas em irrazões na qual os sujeitos, por regressão, abandonam o doloroso processo de dotar o Ego de um projeto de sentido, a transcendência, pela simples e menos dolorosa adoção do projeto de sentido do Outro, de um ente/individuo ou instituição poderoso e salvacionista: as religiões messiânicas, o homem-mito, o consumismo, a intoxicação química ou não. Muitos, no entanto, com um Superego muito mais severo, não se deixarão enganar tão facilmente. Estes sofrerão[8].

 

Procuramos nestes primeiros apontamentos, a partir de um caso, estabelecer as possibilidades, e os limites, do diálogo entre o método das ciências sociais, em especial do paradigma indiciário conforme proposto por Carlo Ginzburg, e a Psicanálise, conforme classicamente foi formulada no método por Freud e seus seguidores, em torno da aparecência do mal-estar no tempo presente [9].  

Entre a situação calamitosa do sistema penitenciário – no Brasil há uma terrível penalização na condição prisional, para além da “pena de privação da liberdade” envolvendo hoje mais de 711 mil indivíduos, inscrita nas condições sub-humanas dos presídios, resultando em chacinas frequentes, muito próximas de uma condição de “crime de Estado”[10]. Tal situação, uma premissa externa a estes apontamentos, é de conhecimento geral, sendo objeto constante de reportagens e tema de filmes e mesmo de novelas de televisão, e com certeza informou desde sempre o ator principal do nosso caso em pauta[11].

É contra este quadro de fundo que queremos refletir, em termos precários, sobre a vulnerabilidade da cidadania e da dignidade do outro, a propósito de um caso especifico: o chamado “Estuprador do Ônibus”, corrido no final de agosto de 2017 em São Paulo. A própria denominação do caso – o “Estuprador do Ônibus” – gerou, desde o final de agosto de 2017, uma intensa, e por vez bastante virulenta, polêmica pública em especial nas chamadas “Redes Sociais”[12].  Desde o primeiro momento a expressão “ejacular” ou “masturbar-se” utilizadas pela mídia, e reproduzida nas Redes Sociais, foi fortemente criticada por movimentos feministas, com a participação de Juristas esgrimindo a Lei como elemento definidor do “ato” que fora de fato praticado, para caracterizar o cometido em pleno transporte público na Avenida Paulista – note-se a mais movimentada da maior cidade da América do Sul –  e, enfim, tipifica-lo como “estupro”. Mesmo não havendo o clássico intercurso sexual, acompanhado de um gesto de força levando a submissão de sua vítima, os diversos movimentos feministas, bem como expoentes dos Direitos Humanos, exigiram do delegado que efetuou o registro da queixa, a imposição do instituto de “estupro”. A resistência “técnica” do titular da 78ª. DP (bairro dos Jardins), apoiada na letra da Lei – posto não ter havido “coação” da vítima -, causou espanto e fúria entre militantes em defesa da dignidade e da integridade psíquica e mental da vítima. No seu conjunto, a opinião pública, ficou inteirada de meandros da “letra” da Lei e passou a opinar fortemente sobre o tema e da polemica sobre a natureza do crime de estupro.

Para além da necessária historicização do ato, da prisão e do registro policial do perpetrador da ofensa – doravante Diego F.N., paulista, solteiro, “ajudante de serviços gerais”, de 27 anos-, a tematização da resistência policial em fazer o registro da ofensa (ao final feito o registro como injuria sexual, pela inexistência do delito estupro, mas, note bene, somente neste momento) é parte fundamental da discussão que se segue.

Sabemos, de bastante tempo, da negativa conservadora e sistemática da Polícia brasileira, acompanhada pela ação da Justiça, em registrar os casos de racismo e/ou injuria racial como tais, quase sempre descaracterizando o fato para simples “injúria” ou outras formas de ofensa –  como foi de fato na condição de “Ultraje Público ao Pudor”[13]. Da mesma forma, mesmo na existência da Lei 13.104, do Feminicídio e da Lei Maria da Penha, há ainda, entre várias instancias policiais a resistência clara – de cunho machista e falocrata – em realizar o devido registro de crimes contra mulheres, invertendo, por vezes, a situação de vítima da mulher. Assim, a pronta ação da militância feminista foi, e continua sendo, fundamental para que a legislação existente, produto de amplas lutas sociais, seja empregada[14].

Neste caso, devemos sublinhar a diversidade e a dificuldade nos dois primeiros dias do evento – 29 e 30 de agosto de 2017 – da mídia nomear o evento ocorrido no interior do ônibus: desde um anódino “assédio”, passando pela descrição do ato – masturbação, ejaculação: termos que a grande mídia reservou, de início,  para o interior do texto noticioso, negando-se a titular a matéria com a clareza do evento – até estupro, este, infelizmente, comum no noticiário e, portanto, passível de titulação fácil. Somente após um amplo debate de cunho jurídico a nomeação “estupro” irá se impor no caso de Diego, continuando os demais eventos a serem descritos como “masturbação” e na sequência da multiplicação dos atos, posto que ação de Diego no dia 29 de agosto de 2017, abre uma verdadeira “epidemia” de masturbadores públicos, torna-se comum a titulação “ejaculação”.

Assim Diego passa de “masturbador do ônibus”, de forma concreta ao descrever que tipo de “assédio” havia ocorrido, a “estuprador do ônibus”. Este processo de renomeação do ato e do seu perpetrador é de extrema relevância para a análise em questão, em particular por ser um ato repetitivo contra, na maioria das vezes, mulheres trabalhadoras obrigadas a utilizar ônibus, trens e metrô em horários do chamado “rush”[15].  Desde então vão se multiplicar as denúncias de casos similares, culminando na ocorrência de “ejaculação” de um indivíduo sobre uma passageira de avião numa linha doméstica.[16]

A disputa pela “nomeação” do evento – assédio, “importunação ofensiva ao pudor”, ultraje ao pudor, ejaculação, masturbação, estupro – é, assim, simultaneamente parte fundamental do próprio evento e das lutas e resistência das mulheres contra o machismo e a falocracia estruturais da nossa sociedade e entendido, por esta via, a estrutura constitutiva central da própria predisposição personológica de Diego F.N., tornando-se assim base constitutiva do próprio evento[17]. Freud, num texto famoso sobre a questão, afirma que a masturbação não sendo nada definitivo – em ambas as fases do desenvolvimento da personalidade de um indivíduo descritas no texto – afirma mais não ser que [a masturbação] um “nome”, não um agente real, que recobre um amplo leque de atividades sexuais caracterizadas, num traço unificante, por sua limitação[18].

Todo o caso de Diego é marcado por um viés de repetição, uma limitação. Após sua prisão e identificação policial na 78ª. DP se sabe, inicialmente, que o perpetrador já tinha outras cinco passagens pela polícia sob a mesma acusação. Os eventos anteriores compunham, com mais esta prisão, um quadro comum, envolvendo as mulheres vítimas, o transporte coletivo e as condições de transporte vigentes no país: longas viagens, sono, proximidade física forçada. Nos casos em que Diego foi pego, e houve queixa policial – e sabemos que em alguns casos isso não aconteceu multiplicando os eventos repetitivos –   foram considerados “leves”, enquadrados como “importunação ofensiva” ou “ultraje ao pudor”, uma contravenção penal. Ou seja, não houve crime, mesmo havendo a repetição do evento. O estupro – Artigo 213 do Código Penal – implicaria em constrangimento violento e impossibilidade de reação por parte da vítima. No caso – como em outros em transportes coletivos em várias cidades do país – a vítima estava dormindo, desapercebida, não havendo necessidade da violência constrangedora, componente bastante do instituto “legal” do estupro[19].

Importunação versus constrangimento e violência/submissão por um lado e dignidade da mulher, choque e sentimento de humilhação, por outro, entram em disputa de narrativas sobre o nome e de condições para a imputação de Diego. No entanto, a disputa narrativista se detém perante o nome e não rompe a carapaça do punitivismo, não indo além do sintoma para buscar as estruturas constitutivas de um fenômeno personológico que corre o risco de caracterizar uma epidemia social desapercebida.

O Delegado de Polícia, bem como do Juiz de Custódia, este último claramente vagando entre o despreparo para tal caso ou, no mínimo, displicente perante o histórico do agressor e de forma transparente cego às condições de assédio e de agressão das mulheres no Brasil, não dão qualquer importância ao elemento comum no conjunto dos eventos narrados – e que podem ser extrapolados de uma condição singular para o nível de um fenômeno social -, voluntariamente confessado, por Diego: a repetição[20].

Não se trata aqui de discutir as tecnicidades do Direito e de suas operações pelos agentes do sistema de Justiça – aliás, de grande rigor hoje no país, conforme as cortes de primeira instância e o próprio STF, quando se fala da defesa de patrimônio, seja público ou privado, ao contrário das ações em defesa da vida e dignidade humana – tais como Racismo, Feminicídio, Homofobia, tortura, trabalho escravo por exemplo -, marcadas pela flexibilidade e a dificuldade de enquadramento por parte da Justiça. E, muitas vezes, por total descaso por parte da ação executiva, ou seja, a execução da pena. Também não se trata de defender a penalização e a maior intensidade do “punitivismo” que avança entre nós – em especial entre as classes médias bastante amedrontadas pela insegurança pública e acossada pela crise econômica[21] –  ao lado de ideologias extremistas, que defendem o aprisionamento de todo e qualquer comportamento dito delituoso, abarrotando prisões já abarrotadas, transformadas em depósitos “sub-humanos” – sem maiores protestos de grande parte da sociedade[22].

Por isso, falamos, desde as primeiras linhas, em espaços, ações e atos de mediações e amparo.  Somente o Juiz que deveria julgar a “ofensa” – nomeada então “ultraje público ao pudor”, cometida por Diego, via o TJ-SP e o MP-SP, perceberam o caráter social do ato repetitivo do perpetrador. Assim, o TJ-SP liberta Diego com o seguinte assento nos autos: …segundo o juiz, ele necessita de “tratamento psiquiátrico e psicológico para evitar a reiteração de condutas, que violam gravemente a dignidade sexual das mulheres, mas, que, penalmente, configuram apenas contravenção penal”[23].

Entretanto, nenhuma providencia ou iniciativa na área de saúde (e saúde mental)

seria tomada e Diego, inevitavelmente, repetiria o evento mais uma vez.
É neste sentido que podemos, mesmo de longe, perceber que o agressor estava em sofrimento psíquico grave, estava pedindo ajuda – a repetição ritualizada do ato de ejaculação pública sobre mulheres (o “Wiederholung”), é/era um pedido inconsciente de punição – uma repetição obsessiva, pública e sequencial de um ato que valeria, de uma forma qualquer, quando praticado em público, uma punição[24]. A repetição emerge “…naturalmente sem saber que o [o lacunar, o que não satisfaz] está repetindo”[25].  Aí residiria um núcleo de culpa já identificado por Freud na masturbação e merecedor de um largo debate entre 1910 e 1912, registrado ora, como a ausência de satisfação decorrente do ato [o lacunar, o “Falta-lá”, o impossível de satisfazer], daí impondo sua repetição compulsiva na busca do preenchimento impossível do “falta-lá”, ora por fatores sociais cuja a etiologia está ligada a economia do Superego, inclusive a própria agressão punitiva contra o Ego e claro, contra o ego  de suas vítimas[26].

De qualquer forma Freud destaca a existência de um “pequeno fragmento de excitação não descarregada” que impulsiona a repetição enquanto forma aceitável de conciliação, de qualquer forma precária[27].

Há, destaquemos, no ato praticado de forma repetitiva por Diego, um componente diferenciador, a masturbação, a qual vincula-se o fenômeno do exibicionismo, com a exposição do pênis em local público, em meio a dezenas de pessoas e sem maior cuidado de ocultação. Mesmo sabendo, ainda com Freud, que os sintomas de diversas neuroses possam se mesclar e sobrepor num mesmo indivíduo, ocorrendo até mesmo em personalidades ditas com vida “sadia”[28],  devemos sublinhar qual o traço marcante, definidor, do ato singular perpetrado por Diego e, simultaneamente, quais as motivações e a etiologia de seu imbricamento com uma outra ação, neste caso, o exibicionismo. A masturbação, enquanto a realização de uma/várias fantasia(s) centrada num eixo comum marcado pela condição lacunar, assume em Diego o papel central estruturante da personalidade, explicitando uma regressão a um estágio infantil pré-edipiano. No entanto, a masturbação conserva sua característica de atividade transitorial – uma transitoriedade que expressa uma conciliação própria do ato masturbatório entendido nas regras vigentes e, portanto, “…uma atividade sexual sujeita a certas condições limitantes”[29].  Tais limitações operam uma conciliação precária, e dolorosa em razão do caráter negativo e “infantil” atribuído a masturbação, entre o Princípio do Prazer, permitindo através da fantasia auto-erótica, regressiva de tipo sádico-anal, o escoamento de uma energia recalcada – causa de sofrimento – e o Princípio de Realidade, castrador da possibilidade da realização plena do gozo[30]. Mesmo enquanto conciliação trata-se ainda de uma supressão insuficiente da pulsão, precária e instável, logo geradora de ansiedade[31]. Em Diego tais limitações regidas pelo que Freud denominou de “regras vigentes” constitutivas de uma Superego severo e punitivo entraram em colapso.[32]

A questão seguinte que se coloca é a clássica escolha da neurose: quais as condições para a irrupção de uma síndrome de espectro neurótico em Diego? Neste sentido, duas séries de fatores devem estar presentes e imbricados. De um lado, as chamadas causas predisponentes ou constitucionais, inatas ao indivíduo  e que pertencem a sua existência, o “Eigenwelt” – e inato aqui abriga desde condições fisiológicas até suas experiências na infância – e, de outro lado, as causas precipitantes ou acidentais, derivadas do ambiente que o envolvem, o “Umwelt”, do indivíduo ou nas palavras originais “…os determinantes patogênicos que estão envolvidos nas neuroses […] aqueles que uma pessoa traz consigo, para sua vida, e aquele que a vida lhe traz”[33], e que resultam na capacidade de desenvolver uma teia de relacionamentos com o Outro, o “Mitwelt” – neste caso um Outro que pode ser assustador, amedrontador, o inferno, quando somos obrigados a estar perante a uma relação comunicativa e não possuímos os códigos – Jaspers diria “as cifras” de tal comunicação, transformando o Outro num muro invencível[34]. Ou ainda forçados a um compartilhamento indesejado vemos no Outro o nada, um vazio sem reflexo, talvez disponível para acalmia de um sintoma muito além dos limites Lei.

Para Freud os fatores constitutivos dominantes no processo de organização patogênica, mesmo reconhecendo a imbricação de ambos os fatores, de forma dinâmica e intercambiante, não pode ser descartada, podendo se constituir num “registro bilíngue” revelando uma natureza composta da neurose[35]. Para a psicanálise existencial, por sua vez, é no “Mitwelt”, o entendimento do conjunto das relações humanas onde estão realmente sendo vividas e que cabe tão somente a ele mesmo a decisão de dar sentido a própria existência – Dasein, enquanto método de superação.

Ora, o exibicionismo – a mostra pública do pênis em público – aparece, além da razoabilidade instrumental para a realização do ato de ejaculação sobre o objeto de investimento –  um complemento personológico direto do sentimento de “Falta-lá”, de incompletude, de impossibilidade de cessação da  ausência presente no ato, que assola o exibicionista, obrigando-o a uma reiteração afirmativa pública e constante da integridade do próprio pênis enquanto integridade do Eu, afastando o fantasma da castração decorrente da insatisfação da pulsão primária,  incapaz de escoar toda a energia pulsional, reafirmando a precariedade da conciliação regida pelo Superego [36].

Devemos, ainda, afastar a possibilidade – aventada pela leitura leiga imediatista das testemunhas e de parte da mídia que classificam Diego como “tarado”, “maníaco” e “doente”, no sentido que daríamos a “perverse” – de um caso dominante de perversão. Na verdade, Diego não nega a natureza do ato (masturbação seguida de ejaculação sobre a vítima), não apresentando uma narrativa de denegação típica de uma condição resposta perversa, mesmo que de feitio protetivo[37]. Ao contrário, parece disposto, ou mais, disponível, para a confissão do(s) ato(s). Na verdade, dá-se a confissão dos diversos atos, da repetição encarada como culpa, um jorro narrativo estruturado em forma de uma história razoável e plausível, e autocomplacente, no qual os pais acreditam e, no primeiro momento, as autoridades policiais também dão crédito. O discurso do neurótico é parte do sintoma sob a forma de um delírio que por sua vez é deslocamento libidinal realizado em possibilidade de gozo substituo.

Neste emaranhado de falas o aspecto de exibicionismo que compõe parte visível e a mais comumente punível do ato permanece desapercebido tanto pela confissão espontânea do perpetrador quanto do registro da autoridade judicial, sublimada em fala. Ou seja, a ejaculação pela sua nobreza falocrata oculta o exibicionismo e atrai sobre si todas as atenções, que solicitam do perpetrador a repetição oral detalhada do ato, realizando na economia pulsional de Diego um “mais-prazer” do falar, ele mesmo exibicionismo gratificante. O detalhamento para a “Lei” e seu escrutínio, seguidamente, não é estranho, por sua vez, ao gozo passivo dos agentes do Estado em sua vontade de saber-mais, em detalhar, medir e registrar o gozo de Diego. Mesmo na confissão há um traço agressivo, violentador, repetitivo que atrai para si a admiração dos “agentes” da Lei no registro crescentes dos atos ejaculadores de Diego, expressando, ainda que preso, uma vontade de poder[38].

Toda essa narrativa do gozo do maníaco, do “tarado que ejacula em público sobre mulheres”, rompida a carapaça moral inicial da mídia, será transformado em mercadoria consumida vorazmente nas redes sociais, que a reproduziriam – incluindo retratos de Diego. Os “posts” multiplicam-se aos milhares, inclusive em linguagem chula, que a grande mídia se poupou, com as mais diversas sugestões do que se deveria fazer com Diego, todas propostas centradas na díade ejaculação-sobre-alguém = a castigo, o clímax de um vídeo pornô, permitindo a liberação de parcelas pulsionais coletivas perversas atribuídas ao próprio Diego e claramente invejosas da ejaculação do auxiliar de serviços gerais[39].

Então, a presença do medo da castração e a compulsão de “provar” a integridade e potência do pênis são menosprezados, acalmados, enquanto registro personológico, sublimados em fala, ante a ação disruptiva da regra maior, a ejaculação pública sobre a vítima, revivida novamente enquanto discurso, alivio momentâneo para Diego, mercadoria sob a forma de gozo alheio para outros[40].

Mas, devemos sublinhar, de forma simétrica, para Diego também não há nenhuma gratificação especial em demonstrar sua potência e capacidade ejaculatória à vítima – explicitando a ausência do clássico “mostro o meu e você mostra o seu!” componente da expectativa fantasista do exibicionista – posto que parte das vítimas, aleatoriamente, podem estar dormindo nos ônibus ou metrô ou, de forma variada, desapercebidas da ação. Não se estabelece uma relação clássica de poder/submissão contida na pulsão sádica onde o “outro” deve estar consciente de sua submissão, como nos descreve Deleuze. No caso, o traço exibicionista faz o seu registro de forma complementar à neurose obsessiva, quando esta procura descarregar em um jorro o sofrimento e, com este, a culpa centrada na prática masturbatória. A falta e a incompletude permanecem nessa “falta-lá” fonte imperiosa da repetição.

No registro composto, bilingual, emerge no perpetrador, durante todo o processo de aplicação da Lei quando da sua prisão, uma postura passiva perante todos aqueles que representam autoridade: os homens que o detém no ônibus, os policiais, o delegado e o juiz, e que nos remete, mais uma vez, ao “bilinguismo” da escolha da neurose, com tal aspecto centrado numa fase anterior ao investimento genital, fixado num momento sádico-anal, predominante embora possivelmente não único, mas presente, composto. Ao exibicionismo, seu não-elaborado sentimento de incompletude, soma-se a fixação da culpa masturbatória num registro de dupla linguagem reforçada num momento para além da fase sádico-anal, mas dominada por esta. O único traço restante do componente exibicionista é a confissão, que de resto se realiza enquanto possibilidade passiva da repetição e, simultaneamente, condensa em si, o resquício sádico pré-edipiano, reduzindo as vítimas ao nada.

Em face do sofrimento o perpetrador deseja a punição e almeja para isso a confissão, prazer bilingual, que é feita, no caso de Diego, sem nenhuma pressão, incluindo os detalhes e cronologia dos atos anteriores, gozo das autoridades. Diego – que conhece práticas médicas derivadas do seu internamento por acidente de trânsito – almeja mais do que tudo a confissão – um ato de poder –  que permitirá, enfim, no seu imaginário, a cessação da culpa. Ou – aí reside um nível que não podemos chegar com o material disponível e que apenas apontamos como possibilidade – a realização da punição na condição de preso por “estupro”. Na direção da maioria dos neuróticos, Diego desloca durante a confissão para o sintoma – plenamente identificado nos atos agressivos contra suas vítimas – a origem do seu sofrimento, desviando, numa prática discursiva funcional e racional, do núcleo original da neurose e, assim, protegendo o “segredo” neurótico[41]. Para a Lei – expressa nos seus aparelhos formais do Sistema Público de Justiça, as Polícias, os Tribunais e Presídios – a confissão de Diego, centrada narrativa fluente e razoável dos seus sintomas, é o bastante e a verdade, encerrando o caso, mantendo-se na absurda superfície do delírio neurótico tomado enquanto ersatz, o substituto apaziguador, da verdade de validade jurídica[42].

Para o perpetrador, de qualquer forma, mesmo sabendo que seu ato é passível de punição e de alto risco – na ocasião da prisão de Diego na Avenida Paulista levantaram-se vozes populares pedindo o linchamento do perpetrador da ofensa – a repetição é incontornável, impossível de controlar, invade seu cotidiano e já define sua rotina, chegando a impedi-lo de uma vida produtiva. Por isso insistimos em diferir tal masturbação pública de outras formas de exibicionismo falocrata (presente em nossa sociedade e que são ubíquos socialmente e mesmo incentivadas), e dotá-la de um conteúdo mais profundo:  algo para além do prazer [43] .

Dá-se sob a forma de uma necessidade imperiosa, uma compulsão, capaz de reduzir a ansiedade/estado de sofrimento que se descarrega provisoriamente na ejaculação pública sobre Outro e, contudo, não consegue preencher aquilo que “Falta-lá”, e que reside na origem do próprio sofrimento, obrigando-o a uma repetição constante, e traz em si, necessariamente, a possibilidade da punição como realização, bem além do gozo masturbatório imediato. Ou seja, na sua repetição incansável, perigosa, e que já dirige a vida útil de Diego, a masturbação pública não busca a realização do gozo e sim da punição, anunciada por um Superego que se identifica com a Lei.

Diego repete a ação três dias após a sua libertação: há agora no ato de se masturbar publicamente até a ejaculação um novo conteúdo[44].

O ato de Diego sintetiza uma busca continua por uma punição para além do gozo. Sabendo-se o risco de linchamento e, em outra hipótese, o destino de estupradores nas prisões brasileiras, o ato repetitivo de Diego traduz-se ao fim como pulsão de morte.   Em Diego o ser-em-si abandona qualquer possibilidade de futuro, desiste de um projeto – Entwurf – posto que o presente não é transito possível para o futuro tornando-se apenas a repetição lacunar do passado, nega a realização de ser-para-si antevendo-se somente enquanto um ser-para-morte [45].

A masturbação masculina, embora universal, merece no processo educativo um imenso investimento repressivo e uma grande gama de punições, imaginárias ou não, impostas de fora e interiorizadas ao longo das fases de socialização do indivíduo, sob a forma de culpa, compondo parte central do processo de “educação” dos meninos (e claro, também no caso das meninas), desde tenra infância[46]. Freud protestou perante a tentativa médica de etiquetar sob o rótulo de masturbação somente o universo de experiências e ensaios praticados durante o período da puberdade, preferindo ampliar e projetar formas diferenciadas de masturbação para um universo muito mais amplo de sensações e experiências gratificantes da criança desde seus primeiros meses de vida, o que nos dá a chave de compreensão da fixação de Diego.[47]

Na sua recepção social concordamos que a masturbação é algo que, malgrado a universalidade, e, mesmo, a continuidade na vida adulta, sempre negada em etapas avançadas da maturidade masculina (e a partir da puberdade, via uma interiorização onde ora a abstinência mostra-se prova de masculinidade, ora as relações sexuais duais são entendidas como as únicas verdadeiramente “valorosas”) “…continua sendo algo profundamente privado”, muito especialmente para mulheres[48]. Tornou-se comum na fala cotidiana brasileira, por exemplo, denominar trabalhos e ações insatisfatórios, de baixa gratificação e/ou de escasso retorno de investimento ao Ego, e sempre repetitivas, ou mesmo queixas contínuas sobre um mesmo assunto, sob a rubrica generalizante de “punheta” – masturbação. Assim, no universo comum e popular a masturbação, embora universal, é plenamente desvalorizada, sendo claramente considerada um prazer “menor”, expediente desprezível e, identificado como uma pratica “infantil”[49].

Mesmo tendo sido valorizada politicamente pelo feminismo nos anos de 1960 em diante enquanto forma emancipatória, no universo masculino, onde paradoxalmente é uma prática muito mais ubíqua – seja na forma solitária, seja na forma “à dois” hetero- ou homossexual – a masturbação é motivo de chacota, de piadas e fonte de embraço quase sempre ligadas a um tempo “de moleque”, portanto descartada como pouco honrosa por um homem adulto[50].

Ser portador de pênis na nossa sociedade é um bônus, mas há um processo claro de domesticação punitiva do mesmo, de controle da agressividade masculina, em prol de uma convivência considerada minimamente civilizada, o que acarreta formas variadas punições – educacionais, médicas, sociais, simbólicas –  caso o jovem macho não seja capaz de administrador o uso masturbatório do seu próprio pênis. Incluindo aí as formas simbólicas altamente agressivas. Na pesquisa acima citada – realizada na cidade de Brasília em 2017 – cerca de 39% dos entrevistados – na maioria homens, heterossexuais com menos de 30 anos – admitiram, anonimamente, ter se masturbado ao menos uma vez no último ano em um lugar público. Contudo, na explicitação desse “lugar público” surgiam banheiros públicos, vestiários, piscinas públicas e salas de aula (em plena aula!)[51]. Mas, todos os entrevistados afirmavam cuidados para não serem pegos e punidos[52]. Uma outra pesquisa, ainda nos Estados Unidos, envolvendo um universo de 15 mil pessoas de ambos os sexos, entre 18 e 60 anos de idade, nos mostra que homens com relações estáveis, e felizes, ainda assim se masturbam, pelo menos uma vez a cada duas semanas. Ou seja, a masturbação cumpre uma diversidade muito maior de papéis na vida sexual “comum” do indivíduo, não apenas de “sexo substituto” – embora na pesquisa homens que se digam infelizes em relacionamentos se masturbem mais – como ainda desempenha o papel de atividade sexual paralela e complementar na vida daqueles que se declaram felizes na vida sexual com um parceiro fixo, inclusive casados, voltada para um universo de fantasias e de onipotência, necessária para uma descompressão do cotidiano[53].

O Caso do Masturbador do Ônibus é original – mas, só na aparência, posto que nos meses seguintes teríamos uma verdadeira “epidemia” de casos semelhantes de masturbadores públicos nos grandes centros urbanos do Brasil – exatamente pelo fato do perpetrador não ter nenhum cuidado em ser pego e preso (o que não é o traço marcante dos demais casos, onde há uma clara negação da autoria da ofensa sexual com a busca de descaracterizar do ato)[54]. Não se tratava, no caso, de uma ausência psicótica de culpa ou uma denegação, explicitante de síndrome perversa. Ele reconheceu o caráter negativo, ofensivo e afrontoso do ato, expondo em detalhes sua narrativa alucinante. Só não desenvolveu quaisquer mecanismos de autoproteção, bem ao contrário, e colocou-se de forma positiva imediata perante à autoridade do Estado e experimentou prazer na fala repetitiva dos atos e em ter alguém, representativo de autoridade, para ouvi-lo, gozando a sua própria narrativa “como uma forma de dar a si mesmo um valor” [55].

Diego F.N., o “estuprador do ônibus”, confessa que entre os 15 e os 16 anos de idade, passou por um estranho processo em que “desaprendeu” a administração do seu pênis e do seu uso masturbatório, aventando um distúrbio derivado do acidente de transito que sofreu, incluindo um coma daí derivado[56]. Mais uma vez cabe um importante alerta interpretativo sobre a realidade do discurso do neurótico e do histérico, fato já advertido por Freud e Breuer, em especial no referente ao discurso fantasista das crianças sobre abusos e assédio como fonte do sofrimento.

Diego, em sua história, oferecia à Lei os seus sintomas como o todo de seu psiquismo, a própria história de vida que Diego havia construído para si enquanto estratégia narrativa – com o acidente e o coma seria o “ano zero” da “doença”, do seu ato culposo. E simultaneamente uma narrativa de uma façanha, uma história de poder. A narrativa emerge plenamente costurada na realidade, funcional, e aderente aos sintomas, embora fundada em um delírio neurótico. Após investigações, pode-se estabelecer que Diego já havia cometido ao menos 17 atos de assédio sexual com registro policial – alguns podendo ser qualificados de estupro, posto haver contato indesejado e forçoso com a vítima. Tais atos estendiam-se ao longo de 8 anos, ou seja, depois do acidente e do coma narrado como “gatilho’ por Diego. Vemos, assim, uma razoabilidade excelente, capazes de convencer numa narrativa funcional, na qual o próprio individuo inseriu seus atos e explicou ao Outro, o “Mitwelt”, e para si mesmo, um ato repetitivo que ele mesmo considerava odioso, e, contudo, merecedor de manchetes e de atenção geral, lembrando a afirmação freudiana de que “(im)pulsão se satisfaz essencialmente da alucinação[57]”.

Com a limitação do material ao nosso dispor – jornais e depoimentos judiciais do réu e a dificuldade daí decorrente para lidar com o método psicanalítico e o material típico da metodologia dos “indícios” da Micro-História– temos que capitular perante o esforço de uma psicologia profunda do caso em pauta para além dos pontos já assinalados[58]. Cabem, no entanto, duas respostas simples para a questão central colocada sobre as relações entre a Psicanálise e as Ciências Sociais que talvez possamos avançar: o que do comportamento de Diego faz parte de um problema ontológico do indivíduo, o “Eigenwelt”, ou seja, estão no âmbito dos fatores predisponentes ou causais e o que, por outro lado,  faz parte de fatores sociais, ou seja, são fatores incidentais, “Umwelt”, comum a outros indivíduos e portanto de cunho filogenético, estão presentes no Caso Diego?

Coloca-se então: o que Diego fez,  foi feito porque podia e sabia que seria prazeroso e não seria punido por isso; ou, bem ao contrário, o fez porque sabia que era um coisa ruim e, assim mesmo, ou por isso mesmo, o fez repetidamente até que a busca por uma punição garantisse a cessação do ato considerado indigno?
A repetição compulsiva, pública, em espaços onde não poderia esperar nenhuma “fuga” da cena – na contramão das trajetórias clássicas de estupradores em série e mesmo de exibicionistas mais comuns – explicita uma dependência de uma demanda que não pode ser superada, contida, e   que ao mesmo tempo se mantém  insatisfeita, da qual o sujeito nada sabe e não tem acesso, recalcada num tempo do não-ser e punida por um Superego tornado legislador severo e agressivo[59]. A repetição apresenta-se, então, enquanto sintoma de uma doença “tangível”, autodiagnosticada”, que não carece de perscrutação: o retorno ao coma decorrente do acidente de transito e, assim, envolve em delírio o segredo bem guardado do trauma. A satisfação possível do sintoma garante que sua causa última se mantenha protegida, e da mesma forma, exigente da punição ao se realizar como repetição precária, lacunar.  Apresenta-se como revivescência de uma fase muito antiga, primeva, na formação do indivíduo – obviamente muito aquém do coma aos 16 anos -, que por vergonha e culpa, causa sofrimento e exige punição ao lado de um brusco deslocamento capaz de explicar e, quem sabe, gerar até mesmo alguma simpatia e satisfazer uma vontade de poder condensada em fala sob a forma de confissão.
A punição viria, cedo ou tarde, via a prisão e a segregação num ambiente de confinamento – e então garantiria no delírio neurótico a cessação do viés perverso do ato gozoso, posto que o gozo masturbatório adulto em público seja perverso – ou através de um ritual de linchamento, ao qual o rapaz se expôs nos locais mais movimentados e públicos da capital paulista. Ou, ainda, no espaço do não-dito do que poderia acontecer com Diego na prisão.

Na repetição do seu gozo havia uma irrefreável pulsão de morte – um vínculo insuperável entre sexo e morte e, mesmo, com a morte singular do indivíduo, que realiza na repetição um processo regressivo – muito anterior e independente da própria narrativa do acidente de transito e do coma – que remete seu reviver a uma fase sádico-anal, tornada ponto de fixação e de partida para uma compulsão de tipo repetitivo.
O grito de ajuda, o pedido de punição imediata, visando a cessação do gozo perverso – masturbação de um homem adulto, em público, em uma situação adversa, contra a vontade do objeto de investimento libidinal e sob grave risco pessoal – não foi sequer considerado pelas instituições que deveriam reconhecer as condições de alto risco que envolviam todos os presentes na situação: as mulheres colocadas numa situação de objeto de investimento de um gozo perverso, agredidas de forma a mais vil possível para uma mulher; para os demais passageiros, incluindo crianças que podem ter na cena uma discutível  iniciação precoce de tipo traumática a um debate por demais complexo e mal-dito na sociedade, aos passageiros em geral, em especial aos demais homens que poderiam correr o risco de assumir a postura de serem “chamados” à condição de “justiceiros” – numa sociedade que políticos e mídia incentivam, nos nossos dias, o linchamento de “bandidos”, em especial de “criminosos” de feição sexual  – e para policiais, talvez impelidos a burlar as leis e ir além de suas funções de polícia e também converterem-se, nas suas circunstancias,   em “justiceiros”.
Enfim, Diego F.N., de 27 anos, trabalhador, solteiro, pardo, com uma história traumática de acidente de trânsito, e nem por isso plausível e muito menos justificável de sua neurose, não foi em momento algum ouvido enquanto sujeito do sofrimento: e quando afirmamos que não foi ouvido não nos referimos a sua narrativa neurótica e a pretensa etiologia daí derivada – do seu acidente e de seu coma. Não foi ouvido no seu pedido público de punição/dor.  No seu grito constante de alerta para o perigo que ele portava para ele e para os outros, em especial as mulheres, tomadas enquanto objetos-para-si  – figurantes sem rosto – num “Mitwelt”, um “com-o-mundo”  tornado em inferno  a ser agredido enquanto  possibilidade da repetição do ato fundante do sofrimento, na expectativa inconsciente de recriar um passado – num teatro da vida –  não sabido num presente dominado e dirigido, ensaio após ensaio, em direção a um “pode-ser”, último ato, a catarse, que não foi escrito ou sequer ele mesmo conhece o argumento.

As instituições que deveriam ouvir a estridência do grito de dor – uma, duas, três… (até as 17 vezes registradas) – em que houve ejaculações sobre mulheres surpreendidas, atônitas, chocadas e, com toda certeza, traumatizadas, mantiveram-se omissas ao caso.  As queixas de Diego de impossibilidade de conter a repetição do ato não mereceu atenção de nenhuma instituição da sociedade, embora ele tenha sido levado perante tais instituições variadas vezes e tenha mesmo sido internado, por outras razões, por um longo tempo em um hospital[60]. Mas ninguém o ouviu.
Diego não nasceu andando de ônibus e ejaculando em pessoas: todo o processo de sofrimento tem uma origem constitutiva e seu gatilho, a origem precipitante ou acidental, e essa origem reside numa dor que precisa ser aliviada através de um sintoma e lembremo-nos: “os sintomas são a própria vida sexual dos doentes”[61]. O gozo, e seu viés perverso, de Diego F.N. é um sintoma, expressão de exigências pulsionais neuróticas em presença de protestos moralizantes antagônicos de um Superego tirânico, lançando o indivíduo em sofrimento intenso[62]. Há algo maior, oculto, mal-dito, que causa uma profunda dor, tamanha que o rapaz prefere o tremendo risco da prisão, do espancamento e mesmo do que pode acontecer com ele numa prisão, um mal maior e ameaçador que ronda os estupradores e é do domínio do bem-sabe. Ele conhece, e, no entanto, não é dito mantendo-se inter-dito, embora seja sabido e a mídia, os policiais e a opinião pública o ameacem: ser levado a um presídio e ser, ele mesmo, estuprado.

Nas redes sociais, nos dias entre 29 de agosto e 10 de setembro de 2017, quando o Caso do Estuprador do Ônibus esteve mais em voga, a maioria dos “posts” exigiam de uma forma ou outra o estupro de Diego, forma de Justiça reparadora e espetáculo de inversão – o estupro masculino – guardado no inter-dito social de uma sociedade organizada em torno dos valores do falo e que considera o estupro uma pena ex-Libris do em face do Código Penal brasileiro. Explicita-se, dessa forma, bastante bem a cultura falocrata e neurótica brasileira, onde a vingança substituiu a reparação e o extermínio do culpado dá lugar a recuperação e reabilitação do apenado[63]. Uma análise massiva de tais “posts” seria, em si só, um importante trabalho de psicologia de massas de determinada camada da sociedade brasileira num momento de crise política, de valores (com)rompidos e grave crise de valores. Uma leitura superficial nos mostra que tanto homens quanto mulheres desejavam, como diria Wilhelm Reich, o estupro de Diego e (ante)gozavam o seu destino numa das horrendas prisões do país.

Muitos, inclusive mulheres jovens e de formação superior, desejavam que a mulher, ou a mãe ou a filha do juiz que havia libertado Diego aquando de sua primeira prisão, fossem vítimas da ejaculação do rapaz para “o juiz aprender” o seu oficio e agir com maior rigor, descrevendo em detalhes que a ejaculação deveria ser “na cara”. Sintomaticamente tais “posts” não desejavam a ejaculação “na cara” do juiz, mas sim numa mulher da família do mesmo, de forma claramente misógina e reprodutiva das características falocrata, neurótica e sádica, da sociedade brasileira.  Por sinal prática repetitiva e culminância – a ejaculação na face –  de todo vídeo pornô consumido pela maioria dos homens (e mulheres) na Internet gratuita do país. Assim, vemos que o ato repetitivo de Diego – que poderia ser considerado “normal” em qualquer homem enquanto fantasia de poder sádico quando praticado em frente de computador vendo um vídeo pornô comum de forma solitária  – explicita uma disfunção de compreensão de oportunidade e de objeto, um “desaprendendo” da vida sexual, realizando uma regressão sado-anal, embora de forma alguma uma aberração perversa, uma fantasia deslocada em relação à maioria daqueles em fúria punitivista, ou uma singularidade social.
A segunda prisão de Diego foi sua resposta ao silêncio da Justiça: desta feita ele segura a mão e toca a vagina da vítima tipificando o “constrangimento” que constitui a natureza do ato de estupro perante a Lei brasileira. Diego é preso, autuado e levado a um rápido julgamento – facilitado por sua voluntária e longa confissão, desta feita, de um total de 17 atos de assédio sexual registrados[64].

Diego será condenado a dois anos de prisão em regime fechado num julgamento realizado, de forma sumária, ainda em setembro de 2017.

Durante estes 17 atos não houve nenhuma resposta, nenhuma ação, do Estado ou de qualquer instituição que ouvisse Diego ou suas vítimas. A única resposta obtida foi a negação. Negaram qualquer ajuda, colocando o rapaz, o agressor responsável – sim, porque mesmo na dor se é responsável pelos atos que se pratica para superar, “esquecer”, ou reescrever sua própria condição de “estar-aí”, sublimar a própria dor, afinal o Outro “não-está-aí” disponível para a dor. As vidas vividas de forma intoleráveis para Eu, lado a lado, no “Mitwelt”, vidas do “estar-aí”, não são objeto para mitigar ou cessar involuntariamente, compulsoriamente, por um instante, a dor que consome o Eu encerrado no seu próprio mal-estar. Diego, frente a frente com as mulheres, tornadas objetos indistintos, afirmou que escolhia suas vítimas “ao acaso”, sem tipo, cor, idade, roupas, apenas porque estavam lá, neste “Dasein” infinito para a busca da “falta-lá’ sem rumo do perpetrador.

Em tal situação emergiu um grande risco para o conjunto de mulheres que viajam de ônibus – mulheres comuns, trabalhadoras, possíveis colegas de homens do mesmo grupo social que Diego F.N. Risco inclusive de interiorizarem um horror, rejeição, a própria condição em que estão imersas no “Umwelt”, sem que sejam para isso convidadas por uma proposta de transformação do “pode-ser”.

Tais mulheres também não mereceram quaisquer cuidados por parte das instituições, malgrado a possibilidade da emergência de síndromes contemporâneas. Muitas continuaram sua jornada de trabalho. Outras foram para as delegacias depor, submetidas a um terrível processo de exposição: como a “boa prática do saber jurídico” exige foram submetidas a longas narrativas, detalhadas, do ato; a confirmação presença do pênis, do intumescimento e, por fim, do sêmen. Para as vítimas o “depoimento” se impunha pelo relato dos detalhes mais escatológicos perante um público de gênero, classe, formação e, possivelmente cor, diferenciada que irão perscrutar na fala das mulheres – chegando ao limite de indagar da diferença entre saliva e sêmen, do cheiro e da viscosidade dos fluidos –  o que é ou não, por elas e em nome delas, uma ofensa perante a Lei.  São os donos do pênis, letrados, brancos, da elite social que possivelmente jamais foram constrangidos ao contato físico indesejado com o pênis do Outro, que decidiriam onde e até onde as ações de Diego F.N. – tantos outros Diegos que desde então surgiriam –  são ou não uma ofensa para uma mulher, a grande maioria, eles mesmos, masturbadores, e gozadores, na sua solidão, sobre mulheres-bonecas, paralíticas e robóticas.  Assim, além da primeira subjugação ao pênis do agressor, as vítimas devem ser adequar ao pênis da Lei, para que de fato se consuma o estupro.

Mesmo quando mulheres, quase sempre técnicas da Lei, nos explicam honestamente, no caso, os limites da Lei para que haja estupro, não percebem que as Leis trazem em si o poder do pênis e reforçam sua dominação patriarcal e paterna, com seus traços fundantes no sadismo primário. A Lei é o pai punitivo, exige a obediência e quer a submissão.  A denúncia do vazio na ação da “autoridade’ – de serem lançadas num nada de sentido narrativo – sofrido por estas mulheres perante o masturbador que não podem entender, e que, contudo, são obrigadas a descrever e explicar o ato agressor que para elas se ergue no nada (“se estavam em pé ou sentadas”; “qual a roupa que usavam”; “trocaram olhares”; “estavam dormindo no ônibus”; etc…).

Ou seja, há sempre uma dúvida metódica a indagar da falsidade intrínseca da mulher ou da sua conivência e até mesmo de sua culpa. Não se trata de um complô ou de uma trama contra outros grupos da sociedade, seja de classe, seja de gênero e classe, como querem os críticos ao feminismo: trata-se simplesmente da revolta e exaustão, única a dar algum sentido a vivência derivada do choque. Uma pesquisa realizada pelo IPEA em 2014, em 3.809 domicílios consultados, em 212 cidades espalhadas pelo Brasil, constatou que 26% dos brasileiros consideram que mulheres com roupas “que mostram o corpo” mereceriam ser estupradas[65].  No entanto, outra pesquisa, realizada em agosto de 2016, já em plena “onda conservadora” que avança no Brasil detectou uma tendência preocupante:  a percepção sobre violência sexual e atendimento a mulheres vítimas nas instituições policiais – a pesquisa  entrevistou 3.625 pessoas em 217 cidades de todas as regiões do país, entre os dias 1° e 5 de agosto de 2016 – feita pelo Datafolha, registrou que 42% dos homens entrevistados consideram que o estupro ocorre em razão das roupas provocativas utilizadas pelas mulheres[66].

Para a “autoridade” a prioridade é o agressor, simplesmente porque é natural para homens poderosos que assim o seja posto que interiorizam a fala de uma sociedade onde a dominância peniana se exerce por si só, pela ordem natural das coisas na própria educação diária de meninos e meninas, mesmo no interior de suas famílias até as instancias máximas dos códigos da Lei – escritos por estes mesmos homens e suas circunstâncias e experiências predominantes. A “falha” de Diego – para eles, esses Outros, trata-se de uma falha de controle na interiorização da Lei do pênis tão somente, a questão encerra-se na condenação prisional de Diego.

As razões da regressão infantil e neurótica de Diego não cabem na Lei e o choque das mulheres não é uma questão.

Para as autoridades, a mídia e os guerrilheiros das mídias sociais seria por demais subversivo aceitar que todo o caso reside num doloroso processo de regressão de vasto conteúdo sádico-anal com traços de onipotência narcísica e agressão voltado contra mulheres – e de dimensões sociais, ou seja, coletivo. O conteúdo sádico-anal da regressão de Diego, ao qual não pudemos chegar pelo método da palavra, mantendo-nos no terreno das hipóteses de trabalho com o material disponível, expressa-se claramente através de fantasias de onipotência tão típicas da masturbação já detectadas por Melanie Klein, na confissão reiterada e detalhada (como uma forma de conversa “entre homens”), e da agressão contra as mulheres como grupo (para além de qualquer escolha de um tipo ou perfil, caso de um psicótico). A exigência posta na Lei de se dizer “Não quero” para se tipificar o estupro, com todas as letras, e a resistência necessária por parte da vítima, a ser provada com escoriações e sangue, caso contrário não haveria o crime, pode claramente redundar na própria morte da vítima, como resultado da imposição de um freio à agressividade neurótica do macho, produto da Lei identificada com o falo instaurador da Cultura.
O Caso do Masturbador do Ônibus, portanto, não se resumo ou se encerra, portanto, em prendê-lo, aprisiona-lo em comum com outros casos que apenas imaginamos o universo mental, e, assim acalmar as consciências revoltadas informadas pelo punitivismo sádico – não é isso que se discute, alimentando a “vibe” punitivista que o fascismo em ascensão na sociedade exige. Ainda mais agora, com a publicidade toda que o caso e seus sucessores/masturbadores conseguiram na mídia[67]. Trata-se, neste momento, de uma prisão de alto risco e a vida e integridade desse rapaz é hoje, caso não seja tarde demais, um desafio lançado à nossa sociedade – por um padrão mínimo de civilização. Desafia-se, em todo este caso, a nossa sociedade, a ser capaz de solucionar questões complexas de sofrimento na modernidade urbana e industrial, de manter-se, de manter-nos, um ponto além da barbárie e não buscar na pulsão de morte a resposta ao sofrimento de massas contemporâneo. Ignorar um grito de dor, como fez o Estado na figura do Juiz, do Ministério Público – onde funcionava um grupo de estudos e de proteção aos crimes de gênero (!!!) – mesmo que sob a forma de delírio neurótico ou gozo perverso, é de extrema crueldade. Insensibilidade imperdoável com todos os atores envolvidos na tragédia.

O não reconhecimento de uma situação limítrofe existente no “Umwelt” social criado em torno do rapaz agressor é claramente seletivo. A repetição dos atos masturbatório – dessa vez em termos de multiplicação do evento – nos mostra que os fatores filogenéticos, incidentais, são tremendamente fortes e atuantes na nossa sociedade, infantilizada, regressiva e com fortes traços de sadismo. A Lei neste sentido é tão somente a expressão do mundo cultural patriarcal que informa a mente do legislador a partir do seu lugar cultural de fala, topos venenoso e lacunar, e assim permite a continuidade da dor num mundo desigual: e este mundo é um mundo masculino, falocrata e onde a noção de ofensa é inteiramente de gênero, de cor e de classe expropriando a experiência vivencial do Outro em nome de um capital de saberes técnicos cifrados. Ou estamos perante a crença cultural que entre “esse povo” as “coisas são assim mesmo”, e o comportamento lúgubre e a promiscuidade, “natural” nos chamados “grupos subalternos”, não é a ofensa que ofende as elites bem-nascidas que não precisam viajar em ônibus ou metrôs superlotados?
Para com as vítimas da perversão, quase sempre mulheres trabalhadoras cansadas, exaustas, usando transportes públicos horrendos, caros, inseguros e lentos, onde por vezes dormir 30 ou 40 minutos é um alívio, é uma crueldade repetitiva e explicitante do descaso da elite machista com as mulheres trabalhadoras. Na outra ponta, com o perpetrador do gozo perverso, explicita-se a incapacidade da sociedade em seu todo em socorrer um individuo em pleno processo de sofrimento repetitivo agudo a ponto de colocar em risco seus semelhantes e a si mesmo. Ou seja: as regras que valem para um grupo social protegido e preservado, não valem para a maioria pobre, trabalhadora, mestiça e em especial de sua parcela “mulher”.

Por fim, no processo devemos destacar: 1. A reação tecnicista dos operadores do Direito, insensível e distante da compreensão opressiva que os indivíduos – no caso todos oriundos das classes trabalhadoras, perpetrador e suas vítimas – vivem e sofrem num contexto de crise social e depressão, onde o desamparo e a perda de expectativas é generalizada; 2. a ira mediática dos “heróis das redes sociais” beirando ao fascismo, quando pedem: “cortem o bilau dele”, ou “coloquem na prisão para ser entregue aos demais presos” ou “boa surra resolve” ( repetindo o processo “educativo-repressivo-repetitivo” dos meninos punheteiros!) – tais manifestações em nada diferem dos programas de extermínio executados pelo Terceiro Reich e regimes afins, incluindo os linchamentos nos Estados Unidos ou mesmo no Rio de Janeiro, a partir de atos reais ou imaginários, diagnósticos médicos viciados ou não. A sociedade não se vinga em seus indivíduos, ou não deveria fazê-lo, e tal ação em nada resolve a questão colocada – a pulsão de morte vivida como dor intensa e, então, sublimada em gozo perverso compulsivo; 3. particularmente é revoltante o número de “posts” que propõem, a “pedagogia justiceira”, que alguém ejacule na “cara” da filha ou esposa ( presuntiva) do juiz – neste caso a falocracia e a misoginia se reproduzem de forma sádica e o pênis se impõe como o justiceiro-mor de toda a sociedade, resolução final de conflito, confirmando a inter-relação mental antiga entre pênis e Lei – tais pessoas são, na verdade, os verdadeiros “machistas”, de ambos os sexos, adoradores de pênis justiceiro. Ora, pênis foram feitos para o gozo, eventualmente para a reprodução, não para punir ou justiçar ninguém.

O que precisamos é entender a existência de núcleos intensos de dor na sociedade contemporânea, gerando processos complexos de sofrimento numa sociedade massiva, industrial, urbana, em crise, e que tais processos levam as pessoas a comportamentos maldosos, perversos e cruéis. A maioria delas não tem acesso à organização psíquica geradora da sua própria dor, “ocultam” sua dor em sintomas que podem ser muito cruéis para com os outros ou os camuflam, deslocam, em vantagens sociais e em seus pretensos méritos e vitórias pessoais. Diego F.N. expôs publicamente o que considerava o mal, o feio e o necessário para o alívio de seu sofrimento e por isso merecia punição. Alguém disse, em algum momento de sua vida, o que era feio e punível, e ele acreditou muito nisso.
Muitos dos que sofrem não possuem recursos monetários ou intelectuais para recorrer a ajuda necessária e, no processo de sofrimento, afastaram-se do seu núcleo básico de amigos e familiares que poderiam servir de algum apoio – se não for o caso, mais que provável, do núcleo familiar ser a própria origem primária da afecção, tão claramente desviado para um comportamento masturbatório público, de caráter regressivo, infantil, merecedor de punição.
Tais pessoas precisam de ajuda, não de punição, castigo, extermínio. O caso do “estuprador do ônibus” por sua compulsão, repetição, persistência e, principalmente, sua regressão personológica/infantilismo de tipo masturbatória – e sua amplitude social multiplicada em diversos casos – explicita uma sociedade em pleno mal-estar, um caso que permite visualizar um claro nexo entre o individual e o social, entre problema e questão[68].

Devemos ainda nos ocupar com as vítimas. Era/é um claro grito de socorro que usou, de forma abjeta, o corpo de outros – mulheres inocentes, trabalhadoras, vivendo suas próprias trajetórias de dificuldades, superações e crises – como objeto de salvação de um Ego no limite da destruição. Houve aqui uma catexia, um direcionamento de energia libidinal em investimento naquelas mulheres – que são retratos, meros “efeitos Potemkian”, uma paisagem comum, sem rostos para Diego, posto que sua “escolha” é totalmente aleatória, indo desde adolescentes até uma mulher de 56 anos, de todos os tipos, cores e aparências – e que a partir do momento em que se forma a “fixação”, pelo histórico do primeiro ato masturbatório algo entre 12 e 13 anos e o primeiro ato masturbatório público em torno dos 18 anos, sendo o coma a que atribui as origens de sua fixação repetitiva aos 16 anos  – não consegue mais realizar outra escolha de investimento libidinal, caracterizando uma hipercatexia de coisa objetal, posto que as mulheres para Diego deixaram, desde cedo, de serem pessoas.

No mundo fechado de sua dor não há espaço para a dor de ninguém mais e suas vítimas são apenas os vocábulos do grito.
O terrível em todo esse processo é que desde o primeiro momento – a primeira prisão, a o primeiro fragrante e a primeira entrevista com um juiz, afinal um homem formado para ouvir o Outro, numa profissão de onde se originou o “paradigma da auscultação” do que está oculto, enterrado, sob as diversas camadas do corpo – nada se tenha percebido. Ou ao menos no segundo evento… Ou no quinto ou sexto evento. Na verdade, quem ouve hoje o sofrimento das pessoas? De todas essas pessoas envolvidas numa história tão miseravelmente humana restou apenas o silêncio de outro.

 

[1] Francisco Carlos Teixeira Da Silva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, historiador e cientista político, formação junto ao Karl Abraham Institut, Berlim.

[2] JASPERS, Karl. Filosofia da Existência. Rio de Janeiro, Imago, 1973, p. 32 e ss.

[3] JASPERS, Karl. A Situação Espiritual do nosso Tempo. Lisboa, Moraes Editores, 1968, p. 21 e ss.

[4] GAY, Peter. O Cultivo do Ódio. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 12 e ss.

[5] SARTRE, Jean-Paul. A Náusea (1938). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1971, p. 17.

[6] Ver MARX, Karl. Manuscritos: Economia y Filosofia. Barcelona, Alianza, 1974 e FREUD, Sigmund. Mal-Estar na Civilização, Rio de Janeiro, Imago, 1978.

[7]

[8] FREUD, Sigmund. “Pulsão e seus destinos (1915)”. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. vol. XIV, p. 21 e ss.

[9]  Entendemos aqui como “Paradigma Indiciário” em Carlo Ginzburg os seguintes procedimentos metodológicos: “Seu programa se fundamenta em um paradigma ‘indiciário’ cujas origens na segunda metade do século XIX são estudadas pelo próprio autor, revelando as possibilidades epistemológicas abertas pelas obras do crítico de arte Giovanni Morelli, pelo romancista Conan Doyle e pelo psiquiatra Sigmund Freud (todos os três graduados em medicina, desenvolvem em diferentes campos a semiologia médica). Daí suas incursões experimentais no estudo do mito dos homens-lobo, na análise dos códigos de figuração erótica do século XVI ou na contextualização da pintura de Piero della Francesca». BETHENCOURT e CURTO. «Notas de Apresentação». In GINZBURG, Carlo. A Micro-História e outros ensaios. Rio de Janeiro, Difel, 1991. Ou seja, trata-se clemente de uma ponte erguida pela historiografia em direção a Psicanálise e já transitada por vários estudiosos.

 

[10] JUSBRASIL. “CNJ divulga dados sobre a população carcerária do Brasil”. In: https://wagnerfrancesco.jusbrasil.com.br/noticias/129733348/cnj-divulga-dados-sobre-nova-populacao-carceraria-brasileira, pesquisado em 17/12/2017.  O Brasil passa a ser, assim, a terceira população carcerária do planeta – embora não seja a terceira população mundial -, sendo que perto de 71% dos seus presos são negros e pardos, do sexo masculino, e jovens até 30 anos.

[11] Há um vasto elenco de filmes recentes onde a prisão, ou a passagem pela prisão e o medo do internamento são objetivo de uma estética ultra ou pós-realista, tais como “Tropa de Elite”, de José Padilha (Brasil, 2007) ou a novela “Força do Querer”, da Rede Globo, 2017, onde a questão do presidio e das suas condições é constantemente apresentada ao público.

[12] AGENCIA ESTADO. “Homem ejacula em jovem dentro de ônibus na Avenida Paulista”. In: https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2017/08/29/interna_nacional,896138/homem-ejacula-em-jovem-dentro-de-onibus-na-avenida-paulista.shtml, em 17/12/2017. Utilizamos para o trabalho neste artigo de vasto material jornalístico, da leitura das Redes Sociais e do Processo Crime 0076899.192012.08.26.0002 decido pelo SESP de São Paulo. Para o Processo contra Diego F.N. ver: Andamento do Processo 0076899.192012.08.26.0002 Ultraje Público ao Pudor, 18/09/2017, TJ-SP In: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/documentos/499713468/andamento-do-processo-n-0076899-1920128260002-termo-circunstanciado-ultraje-publico-ao-pudor-18-09-2017-do-tjsp?ref=topic_feed.

[13] Ver TJ-SP. Andamento do Processo 0076899.192012.08.26.0002 Ultraje Público ao Pudor, 18/09/2017, TJ-SP In: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/documentos/499713468/andamento-do-processo-n-0076899-1920128260002-termo-circunstanciado-ultraje-publico-ao-pudor-18-09-2017-do-tjsp?ref=topic_feed.

[14] EXTRA. “Em conversa delegado desqualifica jovem vítima de estupro coletivo, 30/05/2016” in: https://extra.globo.com/casos-de-policia/em-conversa-pelo-whatsapp-delegado-desqualifica-vitima-de-estupro-coletivo-19395615.html, pesquisado em 17/12/2017. Ver: VILAR, Leandro. “Reflexão sobre a Cultura do estupro”, In: http://seguindopassoshistoria.blogspot.com.br/2016/06/uma-reflexao-sobre-cultura-do-estupro.html, pesquisado em 17/12/2017.

[15] O GLOBO. “Mulher sofre assédio dentro de ônibus na Avenida Paulista”, 29/08/2016, In: https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/mulher-sofre-assedio-sexual-dentro-de-onibus-na-avenida-paulista.ghtml, pesquisado em 17/12/2017.

[16] O GLOBO. “Suspeito de se masturbar e ejacular em passageira de avião é detido…”, 08/12/2017. In: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/suspeito-de-se-masturbar-e-ejacular-em-passageira-de-aviao-e-detido-no-df.ghtml, pesquisado em 17/12/2017.

[17] FREUD, Sigmund. “Tipos de Desencadeamento da Neurose (1912)”. In: Freud, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, V.XII, 1969, pp. 289-290.

[18] FREUD, Sigmund.  “Contribuições a um Debate Sobre a Masturbação” (1912) In: Freud, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, V.XII, 1969, p. 316 e ss. Ao reconstruir o histórico do debate sabemos que este debate se realizou no âmbito da Sociedade Psicanalítica de Viena, em 1910, sendo seus resultados retomados e publicados com observações de Freud em 1912.

 

[19] AGENCIA ESTADO. “Justiça solta homem que ejaculou em passageira de ônibus”. 30/08/2017, In: https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2017/08/30/interna_nacional,896531/justica-solta-homem-que-ejaculou-em-passageira-de-onibus.shtml, pesquisado em 17/12/2017.

[20] Em 2016 o Brasil registrou 49.497 casos de estupro com uma taxa de crescimento de 4.3%. De forma esquemática podemos dizer que são uma média de 135 estupros por dia, e isso levando em consideração um possível sub-reitor bastante elevado. FOLHA DE SÃO PAULO. “Brasil tem 153 estupros e 12 assassinatos de mulheres por dia…”, 25/12/2017, pesquisado no mesmo dia. In: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/10/1931609-brasil-registrou-135-estupros-e-12-assassinatos-de-mulheres-por-dia-em-2016.shtml.

[21] Para isso ver: REICH, Wilhelm. A Psicologia de Massas do Fascismo. São Paulo, Martins Fontes, 1988. A primeira edição de Reich (1897-1957) é de 1933 e, entre outros pontos relevantes para o caso em pauta, faz uma forte relação entre a ascensão do fascismo na Alemanha e as crises econômica e de segurança pública ao lado da intoxicação do noticiário, por parte da imprensa fascista, de crimes sexuais,  em especial no jornal nazista Der Stürmer implicando profundamente com um inconsciente social fortemente reprimido das massas alemães, em especial das suas classes médias, sujeitas ao impacto da crise econômica mundial de 1930. A ampla recepção das notícias sobre crimes sexuais durante o período da Depressão na Alemanha, em especial aqueles pretensamente cometidos por judeus, é parte fundamental da recepção do fascismo.  Assim, para Reich a revolução social anticapitalista deveria ser acompanhada por uma revolução sociosexual capaz de libertar as massas de sua repressão originária da transformação de um “mais-gozar” em “mais-valia”, ver pp. 52 e ss.

[22] NEUMANN, Franz. “Ansiedade e Política (1956)” In: Estado Democrático e Estado Autoritário. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1996, p. 269 e ss em especial o conceito de regressão de massas em favor de um líder carismáticos e a realização e pacificação da angustia através do fenômeno da “projeção”.

[23] Ver nota 7 deste texto.

[24] FREUD, Sigmund. “Recordar, Repetir e Elaborar: Novas Recomendações Sobre a Técnica da Psicanalise” In: Freud, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, V.XII, 1969, p.196.

[25] Tomamos aqui a expressão “lacunar” no sentido proposto por Jacques Lacan no seu debate sobre o Indivíduo perante os fenômenos do Inconsciente enquanto uma ruptura – a lacuna – que se inscreve numa determinada falta. Ver LACAN, Jacques. “La Sexualité dans le défilés du Signifiant” In: Les Quatre Concepts Fondamentaux de la Psychanalyse. Le Sèminaire, Livre XI, Paris, Éditions du Seuil, 1973, p. 172.

[26] FREUD, Sigmund. “Contribuições a um Debate Sobre a Masturbação” (1912) In: FREUD, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, V.XII, 1969, p. 309-310 e ss.

[27] Idem, Op. Cit., p. 313.

[28] FREUD, Sigmund. “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1901-1905)” In: FREUD, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, 1997, p. 46.

[29] FREUD, Sigmund. “Contribuição a Um Debate Sobre a Masturbação” … p. 316.

[30] GAY, Peter. FREUD: uma vida para nosso tempo. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 612 e ss.

[31] A exploração desse eixo analítico nos parece extremamente rico, buscando num pré-Édipo sádico as origens do distúrbio em pauta, conforme: DELEUZE, Gilles. A Apresentação de Sacher-Masoch. A Vênus das Peles. Rio de Janeiro, Livraria Taurus, 1983, p. 131 e ss. Contudo esse caminho só poderá ser seguido a partir de um trabalho direto com o referente.

[32] Ver: MAY, Rollo. Love and Will. Nova York, W.W. Norton & Co., 1969.

[33] Ver FREUD, Sigmund. “Tipos de Desencadeamento da Neurose (1912)”. In:  FREUD, S. Obras Completas (Edição Standard). Rio de Janeiro, Imago, V.XII, 1969, p. 289 e ss. Bem como “A Disposição À Neurose Obsessiva. Uma Contribuição ao Problema da Escolha da Neurose (1913)”. In: Idem, Ibidem, 393 e  401.

[34] JASPERS, Karl. A Questão da :Culpa. A Alemanha e o Nazismo. São Paulo, Editora Todavia, 2018, p. 23 e ss.

[35] FREUD, Sigmund. “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade…” p. 41.

[36] FREUD, Sigmund. Op. Cit., p. 36 e em especial a Nota 2, de 1920.

[37] Ver para a questão da “denegação” DELEUZE, Gilles em Op. Cit., p. 133.

[38] JASPERS, Karl. Op. Cit., p. 97.

[39] Aqui, na reação do público das redes sociais, ao Caso do Masturbador do ônibus, podemos ver uma similaridade notável com a recepção do público do jornal nazista “Der Stürmer”, editado pelo notório nazista, e terrível antissemita, Julius Streicher, entre 1923 e 1945, caracterizado pela publicação de pretensos crimes sexuais cometidos por judeus contra moças alemães, com descrições detalhadas de atos perversos que atingiam claramente o Inconsciente de uma população altamente reprimida e atingida pelas necessidades de sublimação constante de prazer em trabalho extenuante. WULF, Joseph. Presse und Funk im Dritten Reich. Viena, Ullstein, 1983, e ainda a obra já citada de Wilhelm Reich, ver Nota 16.

[40] Em algum momento poderíamos registrar um traço marcante de hipocondria no comportamento de Diego F.N., com uma narrativa de internações e cuidados médicos decorrentes de um acidente de trânsito culminando num coma. Apesar de um longo tratamento clínico e ambulatorial nada foi diagnosticado como uma doença passível de uma clara etiologia pós-traumática. No entanto, e não conseguimos maiores informações sobre os sofrimentos físicos apontados, que possam caracterizar uma causa física que ampare as muitas reclamações de sofrimento físico do perpetrador ou, por outro lado, que possamos descartar de forma absoluta.

[41] NUNES, Eustachio Portella. Obsessão e Delírio: Neurose e Psicose. Rio de Janeiro, Imago, 1976, p. 15.

[42] Ver GINZBURG, Carlo. História Noturna. São Paulo, Companhia das Letras, 2012, em especial a “Introdução”, pp.9-44.

[43] Nos referimos aqui na prática social brasileira, bastante comum, de “mostrar o pau”, uma expressão que pode ser metafórica – dependendo da situação social – ou mesmo performática, com gestos que ao segurar sobre a roupa o pênis, o destacam. Assim, o machismo falocrata socialmente sancionado, e mesmo positivado, incentiva às práticas discursivas ou não de “mostrar o pau”, sinonímia de resolução machista de contendas.

[44] O GLOBO. “O homem preso após ejacular em mulher no ônibus é preso novamente ao atacar outra passageira” 02/09/2017. In: https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/homem-e-preso-suspeito-de-ato-obsceno-contra-mulher-em-onibus-3-caso-em-sp.ghtml, pesquisa em 17/12/2017.

[45] FREUD, Sigmund. Para Além do Princípio do Prazer, Psicologia de Grupo e Outros Trabalhos (1920-1922). Rio de Janeiro, Imago, V.XVIII, p. 24 e ss.

[46] FREUD, Sigmund. “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” p. 63 e ss.

[47] FREUD, Sigmund. Idem, nota 1 à página 67 onde Freud destaca o caráter centralizador da masturbação como o “poder executivo”, sintético, de toda a sexualidade infantil e, por isso mesmo, o mais apto para centralizar e expressar a culpa.

[48] Ver LAQUEUR, Thomas. Solitary Sex: A Cultural History of Masturbation. Nova York, M.I.T. Press/Zone Books, 2003.

[49] KLEIN, Melanie. “The Importance of Symbol-formation in the Development of Ego (1930). In: Contributions of Psyco-analysis, 1921-1945. Londres, Hogarth Press, 1950, p. 236-250.

[50] LEONE, Matheus. “A Masturbação em Números: como os jovens se masturbam?” In: https://medium.com/vinte-e-um/masturba%C3%A7%C3%A3o-em-n%C3%BAmeros-como-os-jovens-se-masturbam-741ff4161c73, pesquisado em 17/12/2017.

[51] Idem, Ibidem (em continuação).

[52] Diferentemente uma pesquisa realizada com 600 norte-americanos sobre a masturbação apontou que 6% dos entrevistados, homens, admitiam já ter se masturbado no local de trabalho, em ônibus, metrô e até aviões – referências que não apareceram na pesquisa brasileira. Os termos da pesquisa, de ambas, não foram controlados e portanto a comparação é falha, apenas ilustrativa. IG “Pesquisa mostra como é a rotina de masturbação das pessoas” , 14/06/2017,  http://delas.ig.com.br/amoresexo/2017-06-14/masturbacao-habitos.html, pesquisado em 17/12/2017.

[53] VICE. “A Complicada relação entre sexo e masturbação”, 02/05/2017. In: https://www.vice.com/pt_br/article/d7agyq/sexo-e-masturbacao, pesquisado em 17/12/2017.

[54] EXTRA. “O Homem é preso após se masturbar no trem próxima a uma mulher…”. 04/10/2017. Segundo a SUPERVIA só em 2016 foram registros 63 casos em composições da empresa ferroviária e naquela altura de 2017 já tinham sido efetuadas seis prisões em fragrante de idêntico caso nas composições. Uma mulher, entrevistada pelo jornal, diria: “Cada dia está pior, está virando moda…” In:  https://extra.globo.com/casos-de-policia/homem-preso-apos-se-masturbar-perto-de-mulher-em-trem-na-zona-norte-do-rio-rv1-1-21905720.html, pesquisado em 17/12/2017.

[55] NEUMANN, Franz.  Há tipicamente uma assunção plena da autoridade do Estado e uma anulação da sua própria pessoa, do seu Eu, perante a autoridade, com claro desejo de satisfazer a vontade do poder, considerado como aquele que doa o sentido. Ver p. 277 e ss.

[56] Ver TJ-SP. Andamento do Processo 0076899.192012.08.26.0002 Ultraje Público ao Pudor, 18/09/2017, TJ-SP… conforme Nota 4.

[57] LACAN, Jacques. Op. Cit., p. 173.

[58] Para uma proposta metodológica interdisciplinar ver: BACKÈS-CLÈMENT, Catherine. “Antropologia e Psicanalise” In: COPANS, Jeans et alii. Antropologia: ciência das sociedades primitivas? São Paulo, Martins Fontes, 197, em especial p. 357 e ss.

[59] LACAN, Jacques. Op. Cit., p. 172.

[60] ESTADÃO. “Família alega que ataques a mulheres começaram após cirurgia na cabeça”, 02/09/2017, In: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,familia-alega-que-ataques-a-mulheres-comecaram-apos-cirurgia-na-cabeca,70001963533, pesquisado em 17/12/2017.

[61] FREUD, Sigmund. “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade” p. 42.

[62] Idem, ibidem, p. 42 e em especial Nota 1.

[63] Uma “brecha” neste “inter-dito”, o estupro masculino como regra prisional aceita no sistema carcerário brasileiro, inclusive para presos políticos durante o Regime Civil-Militar de 1964-1985, pode ser vislumbrada no Caso de Oriovaldo B.S., em 3 de maio de 1984, quando em fuga da polícia este jovem se refugiou num apartamento no Flamengo, Zona Sul do Rio de Janeiro, e o enfrentamento com a polícia, resultou que as quatro jovens moradoras do apartamento foram mortas. O fugitivo apresentou como razão para a resistência o fato de ser estuprado sistematicamente no presidio, no Espírito Santo, onde cumpria pena por estupro e preferir a morte a retornar ao sistema penitenciário. Quando da sua primeira prisão, dada a natureza do seu crime – exposto pelos próprios carcereiros – Orivoldo foi “currado” seguidamente por 21 detentos, sob total passividade das autoridades carcerárias. JORNAL DO BRASIL.” Multidão vai ao enterro das quatro moças”, 6/05/1984, In: http://memoria.bn.br/pdf/030015/per030015_1984_00028.pdf, pesquisado em 17/12/2017.

[64] CORREIO DO POVO. “Homem que ejaculou em passageira é condenado”, 05/09/2017 In: http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/Geral/2017/9/627801/Homem-que-ejaculou-em-passageira-e-condenado-por-crime-em-2013, pesquisado em 17/12/2017.

[65] ÉPOCA. “A Culpa é delas”. In: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2014/03/b-culpa-e-delasb-e-o-que-pensam-os-brasileiros-sobre-violencia-contra-mulher.html, pesquisado em 17/12/2017.

[66] GGN. “Um terço da população acha que a culpa é da vítima nos casos de estupro”. 21/09/2016, https://jornalggn.com.br/noticia/um-terco-da-populacao-acha-que-a-culpa-e-da-vitima-nos-casos-de-estupro, pesquisado em 17/12/2017.

[67] DIARIO ON LINE. “População agride suspeito de se masturbar perto de moça no metro”, 04/10/2017, In: http://www.diarioonline.com.br/noticias/brasil/noticia-455959-populacao-agride-suspeito-de-se-masturbar-perto-de-mulher-em-metro.-assista!.html, pesquisado em 17/12/2017.

[68] WRIGHT MILLS, Charles. A Imaginação Sociológica. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1969, p. 61 e ss.