Em Nome da Honra: Pederastia e Camaradagem Masculina no Estado Novo – Francisco Carlos Teixeira Da Silva (UFRJ – RJ) 04/07/2017
Professor Titular de História Moderna e Contemporânea/UFRJ
Professor de Teoria Social/UFJF
Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior/Eceme, do Exército  do Brasil
nº16maio-out20171Em Nome da Honra: Pederastia e Camaradagem Masculina no Estado Novo (Brasil, 1937-1945)Francisco Carlos Teixeira Da Silva1RESUMOO artigo tratadas relações homossexuais nas Forças Armadas brasileiras durante o Estado Novo (1937-1945) e nas formas de repressão em comparação com a Itália fascista e o Terceiro Reich utilizando-se dos Processos do Tribunal Superior Militar.Palavras-chave:Estado Novo, Homossexualidade, Militares, Repressão.In the Name of Honor: Pederastia and Male Comradeship in the “Estado Novo” (Brazil, 1937-1945)ABSTRACTThe article deals with homosexual relations in the Brazilian Armed Forces during the “Estado Novo” (1937-1945) and in forms of repression in comparison with Fascist Italy and the Third Reich using the Superior Military Court Proceedings.Keywords:“Estado Novo”, Homosexuality, Military, Repression.O “Regulamento Disciplinar do Exército/R.D.E.”, em seu Artigo 8º., aprovado peloDecreto no. 1.899,de 1937,e seguidos pelas demais FFAA, estabeleceu comosua função, e dosdemais entes disciplinadores, “… preparar profissionalmente (tanto no serviço como fora dele) acompostura e o decoro militar, físico e moral, da tropapara consigo mesmo…” e promover a “camaradagem sã”, conforme descrito no seu Artigo 9º. iTais determinações, no espírito que marcava as ações do Estado Novo, deveriam ser extensivas às polícias estaduais e do Distrito Federal, que passam, então, a ser reguladas pelo R.D.E.das FFAA.Esta éa única legislaçãode caráter repressivo, em verdadeuma “Instrução”, que viria ser aplicada a homossexuais na história recente do Brasil. A escolha de militares 1Professor Titular de História Moderna e Contemporânea da UFRJ e Professor-Visitante do CPDA/UFRRJ.

nº16maio-out20172como objeto de pesquisa deve-se, por isso mesmo, a existência de tal legislação e sua extensão aoscivis, quando fossem parceiros de militares ou tais“atoscondenáveis”fossem cometidos em uma organização militar ou em horário de serviço, como o estabelecidono seuArtigo 13º., “Das transgressões”. Os atos contra “o decoro militar”, termo vago e amplo, passam, desde então,ser delito gravecom noção subjacente clara:“…ações ou omissões contra a honra e o pundonor individual do militar, bem como os preceitos sociais e morais”, estendendo a possíveis civis em conluio no ato, as punições previstas no R.D.E.Da mesma forma, o Decreto-Lei no. 510, sobre processo e julgamento de civis em foro militar, estabeleciaa competência deste mesmo foro para julgamento de“…crimes contra os bons costumes”, quando envolvendo um militar e um civil, que passa então a ser “considerado ‘praça””ii.Além do seu aspecto autoritário, e atentatório às liberdades civis, sobrepondo a alçada militar, apontava –sem, contudo, dizer o nome –para um novo delito, dito/ocultado pela noção de “decoro militar”.Assim, bem ao contrário do famoso (Parágrafo) §175, do Código Criminal Alemão (StGB), revisto e agravado em 1935, que seria usado intensamente sob o Terceiro Reich, ou o projeto fascista deCódigo Penal italiano de 1928 (do qual seremos largamente caudatáriosna nossa ciência jurídica), chamado “Comissão Appiani”, não haviano Brasil,qualquer mençãoou condenaçãodireta a homossexualidadeentre adultos. Tal devia-se, de um lado, a inexistência de um “delito homossexual”previstono Código Criminal Brasileiro (e assim a tipificação no R.D.E.ficava prejudicada) e, por outro, um forte preconceito em aceitar, sequer, a possibilidade de ocorrência do delito entre os militares brasileiros –neste ponto, a ausência de tipificação no Brasil coadunava-se de forma correlata com o CódigoPenal italiano, fascista, chamado de“Código Rocco”, de 1930, coma recusa, naquele, de aceitar a existência de um “delito homossexual”entre um povo “tão viril”.Notemos, entretanto, que no artigo “Das transgressões”, do R.D.E.,abre-se um amplo espaço para punir delitos contra a honrae o decoro, bastando uma a inobservância dos “preceitos morais e sociais” para abri a possibilidade de uma interpretação punitiva. Isso não queria dizer, no entanto,que a Policia Civil, em especial no Rio de Janeiro, onde havia uma conhecida cultura, ou “cenagay”, não agisse, e de formabrutal. A repressão em nome “doscostumes e da boa moral” se ocupava das roupas masculinas, gestos,e regras de “moralidade”impostas de forma bastante dura,

nº16maio-out20173com prisões e espancamentos. Assim, quando é colocado em funcionamento o campo de internaçãoprisionalde Dois Rios, em Angra dos Reis (SANTOS, 2009, p. 42), chamado eufemisticamente de “Colônia Correcional”, bem como na carceragem da Rua da Relação, a Chefatura de Polícia da Capital, controlada por Felinto Müller,homossexuais eram mantidos presos, em celas comuns,o que representava sevíciasrecorrentes. Por vezes eram colocados em trabalhos de cozinha e limpeza em celas depresos políticosdo Estado Novo, o que gerava grande mal-estar nos presos comunistas ou liberais. Para esses, a convivência com “vagabundos pederastas”, era vista como mais uma punição imposta pela repressão estadonovista(NASSER, 1947, p.141-142). Nas prisões e campos, gays eram obrigados a fazer o trabalho de limpeza e de cozinha, acentuando a compreensãoda questão gay, então,como uma disfunção degenerativa de gênero e sua díade de masculino/feminino(PINNA, 2012,301). Os registros policiais para este tempo e “ofensa” são vagos e difíceis de análise. Não havendo um crime tipificado, as prisões eramfeitas sob acusações de “vadiagem”,“arruaça”ou”atentado à moral e aos bons costumes” –muitas vezes expresso em travestismos, o que recobre uma imensa gama de ações, gays ou não. No âmbito das Forças Armadas deu-se um debate intenso sobre a tipificaçãoepunição de um “delito homossexual” na sociedade brasileira da época varguista. Os cuidados, previstos no R.D.E.chegavama regrar, preventivamente, a vida de oficiais –nada é dito em relação às praças, embora seja óbvio que estes estavam sujeitos ao mesmo R.D.E. -,ao ponto de estabelecer no Artigo 13º., Parágrafo 44, a proibição de “…perambular ou vagar pelas vias públicas depois das 22 horas”–em especial nas áreas da Lapa até a Praça Tiradentes. Pouco mais tarde, não satisfeitos com o estabelecido no R.D.E., eprincipalmente com os parcos resultados repressivos dos Tribunais Militares –extremamente técnicos e garantesde uma juridicidade estranha aoautoritarismo doEstado Novo –o Ministério da Guerra, em 1941, produzum Decreto-Lei que define “a indignidade para o oficialato”, voltando-se claramente, já no seu Artigo 1º., Parágrafo Único, para o caso “…do oficial que se corromper moralmente pela prática de atos contrários à natureza”, chegando-se, então, aoformal –embora ainda “mal-dito” delito homossexualiii.

nº16maio-out20174Imagem 1: Avenida Passos (possivelmente 1935), junto da Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro, reunia teatros e cinemas, além de casas de tolerância, hotéis e pensões que alugavam quartos para rapazes, em especial para marinheiros, como descreve o escritor Adolfo Caminha. Fonte: http://www.hce.eb.mil.br/index.php?option=com_content&view=article&id=154&Itemid=299.Deve-se destacar que o mesmo Decreto-Lei3038, no seu Artigo 2º., refere-se explicitamente “…ao oficial ou suboficial que corromper subordinado pela prática de ato contrário ao pudor individual”. A complementaridade da Lei afirmava o caráter antinatural e contrário à natureza de tal prática e estabelece uma estranha relação de hierarquia que a realidade virá a desmentir.A questão não-dita do delito homossexual, embora não sendo popular sua condenação na sociedade brasileira, não era, então,uma preocupação isoladano interior das Forças Armadas. Era visto, enquanto fenômeno atávico de degeneração, um dos riscos que ameaçavam a formação de “uma raça brasileira”, por médicos e higienistas. Para estesimpediaa constituição de “uma flor sadia da procriação”, ao lado de outros males endêmicos, como as doenças venéreas, o impaludismo e asífilis –os piores entravespara a formação de uma “raça de titãs”, como surge numartigo da Revista “A Nação Armada”, em 1940iv. O artigo, e outros similares de “A Nação Armada”, remetem, quase sem exceção,a uma díade que se queria cientifica no final do século XIX, baseada na combinaçãodo evolucionismo e seu par contrário, adegenerescência, típico da obra de Bénédict Morel,datadade 1857. As teorias de Morel sobre a possibilidade de “degenerescência” na espécie humana foram rapidamente transcritas para uma nascente e pretensiosa “ciência”, a chamada “Criminologia”, que buscava nos “erros da evolução física e moral da espécie humana”, muitas vezes constatáveis via uma série de características físicas (análise de olhos, sobrancelhas, crânios, cor da pele, etc.), a origem do comportamento criminoso(CALHAU, 2009, p.22). Assim, o autor do

nº16maio-out20175artigo, o capitão-médico Carlos Andrade, influenciado pelo paradigma médico-legal–já antigo na Europa, mas ainda bastante popular no Brasil -busca sua aplicação ao sistema médico-legal das FFAA. A ascensão dos fascismos na Europa e a popularização das abordagens racialistas nas ciências médicas, na criminologia e na psicologia fascista italianas, em expansão no país, terá forte impacto na compreensão da homossexualidade entre nós. Talvez sua maior expressão seja arápida construçãode dois pavilhões para presos“degenerados”no Hospital Centraldo Exército, no Rio de Janeiro.O explícitoracismo contra uma imensa maioriada sociedade brasileira, como negros e mestiços, não se distingue muito do racismo médico e culturalista das autoridades fascistas italianas contra os habitantes do Mezzogiorno. Mas, ao contrário, em vez de se dar, como no caso italiano, uma concentração geográfica dapopulação de “briganti” ede“bárbaros”ao sul, no caso brasileiro a escravidão teriaseimiscuído no conjunto da população brasileira(com uma leve exceção no Sul). Assim, a maior parte dos“elementos”deveriaser disciplinados e “civilizados”, “missão”que o Estado brasileiro não cumpriu e, naquele momento, 1940, cabia as Forças Armadas e ao Estado Novofazê-lo: “… quando a clarinada da Abolição afastou das searas douradas e dos cafezais esverdejantes o braço anônimo do escravo, deu o Brasil o primeiro passo para o marasmo em que hoje se assoberbam as nossas populações do interior”v. Não satisfeito em localizar, historicamente, na Aboliçãoo ponto de partida do marasmo do país, o nosso “capitão médico”, faz uma apologia aossenhores de engenho e ao latifúndio como o verdadeiro espírito “tutelar da pátria” e único “espírito progressista” do país. Estes, privados de seus “rebanhos humanos(sic!) ”, não puderam continuar seu papel civilizador, o que abriu caminho para a degenerescência como fenômeno renitente da sociedade nacional. Como na Itália, um substratodemográfico, mais longínquo no caso italiano,e mais recente no caso brasileiro, de africanos/ “africani”(árabes/mouros), ameaçava submergir uma camada demográficabrancasocialmente superior e vocacionada para o comando. O evolucionismo cientificista, e racista, do final do século XIX, reatualizado pelos fascismos,informa, claramente, o conjunto dos diagnósticos, sejam eles individuais, sejam sociais, das “mazelas” e “vícios” localizados nos indivíduosacusados de crimes de perversão.Tal degenerescência trazia consigo os instintos “animais” mais desonrosos e lúgubres, entre os quais, a sodomia, ou com a era chamadana linguagem de então “pederastia” (o uso de “homossexualidade” era incomum, a diferenciação entre

nº16maio-out20176“pederastia” e “homossexualidade” de pouca ocorrência). De qualquer forma a díade degenerescência/perversão caminhavam lado a lado (DUARTE, 1983, p. 21).O médico, no mais puro espirito eugenista da época, diagnostica a preguiça das classes pobres, dos “rebanhos humanos”, e seu espírito “avesso ao exercício e ao esforço físico”, como a origem, e risco, de degenerescência da raça. Prevê que somente regras absolutamente severas de exercícios e de trabalho, com a necessária “mestiçagem”com o elemento branco–e neste ponto se diferencia claramente da condenação inapelável do nazismo alemão contra os “Mischlingen” ou mestiços -,seria capaz de criar homens aptos para o trabalho e afastar o vício da preguiça, da indolência,da conformidade com a misériae das tendências lúgubres. O campo da biologia, como elemento central explicativo, ocupa o espaço das estruturassociais, como resiliência na explicação do“atraso” brasileiro. Oracismo “médico” brasileiro, de cunho “biologizante”, expresso em “A Nação Armada”, é bastante correlato ao racismo anti-meridional italiano, embora este, em algumas expressões radicais –ao acusar a maior parte da população do Mezzogiorno de não ser “ariana” como os demais italianos do Norte (seriamde origem “africani”), temessem a mestiçagemtal qual os alemães sob o nacional-socialismo temiam os judeus. Oracismo “médico” brasileiro previa, ou auspiciava, uma solução “nacional”para a saúde da “raça brasileira”(SCHWARCZ, 1993, P. 58). Tal racismo, como bem destacaantropólogoAlberto Burgio, constitui-se uma constelação informe de percepções do real, incorporando desde os casos de vadiagem, ócio, preguiça, doenças mentais, umalarga extensão dedoençasvenéreas, homossexualidadenum só diagnóstico de barbárie e de degeneração–de certa forma todo o elenco de presos de “Dois Rios” (BURGIO, 1999, p. 22). AntônioGramsci, analisando as legislações sobre alcoolismo, “preguiça” e desregramento sexual nos Estados Unidos e na Itália aponta claramente para as imposições das novas formas de trabalho, de tipo fordista, que deveriamdestruir as práticas sociais de tipo antigo, consideradas como perda de parte fundamental das energias dos trabalhadores que deveriamser direcionadas para a produção(Gramsci, 1978, p. 378). Burgio, para o caso italiano,chama tais medidasde “continuum discursivo” e “integridade do diagnóstico racista”, enquanto uma forma capaz de justificar e instrumentalizar uma série de normasbrutais de “nacionalização”, “domesticação” e “civilização” dos grupos subalternos visando, diretamente, as exigências da dominação nas condições econômicas e sociais da época(BURGIO,

nº16maio-out201771999, p.24).De forma muito precoce surgem “especialistas” na ciência “do sexo” no Brasil, como o Professor Bené Carvalho (1886-1959), do Colégio Militar, e cuja obra, de 1937, largamente devedora dos manuais italianos, será de forte impacto sobre médicos e juízes brasileiros.Benedito Augusto Carvalho dos Santos, “Bené Carvalho”, jurista, interventor do Ceará (1945) e político da UDN, autor de “Sexualidade Anômala” (1937), que exerceu forte impacto sobre a legislação brasileira. In: http://www.panoramio.com/photo/103651310. Tais normasnão seriam, entretanto, aceitas sem resistência, levando o Estado, e suas instituições de normatização e domesticação (as polícias, a clínica, a escola, a justiça, etc.),a um imenso esforço de vigilância epunição. No dizer de Gramsci as forças subalternas, que deveriam ser ‘manipuladas’ e racionalizadas de acordo com os novos objetivos, resistiriam inevitavelmente (GRAMSCI, 1978, 390). Assim, a “questão sexual” torna-se, nestes anos entre 1910 e 1930, tanto no Brasil como na Itália, um espaço de embate, e lutas, onde as formas “bárbaras”, “imorais” e “antinaturais” de prazere de viverdeveriam ser reprimidas e a libidodirigidaexclusivamente para uma forma “produtiva”,“nova”e “contábil”para asmodernas sociedades industriais de massa.Por este caminho “produtivista” os especialistas em “sexo anormal”, no Brasil“estadonovista”,como o catedrático do Colégio Militar, insistiam que todas as formas de sexo não reprodutivo são, por natureza, “antinaturais”: “…uma escala variada e complexa dos atos de libidinagem, a que o erotismo mórbido sabe emprestar as formas mais originais, exóticas e depravadas..”vi, [que] existiria para além do sexo natural, visto

nº16maio-out20178como exclusivamente a cópula “hetero-vaginal”no âmbito do casamentodeveriam ser penalizados. Assim, procura-se a construção minuciosa de um “imenso catálogo das perversões e seus efeitos”(PEIXOTO, 1999, p. 39). Concluía-se daí uma “naturalidade” produtiva do sexo, encarado como uma necessidade coletiva da sociedade, que não gerava qualquerdireito em relação ao prazer e a felicidade do indivíduo. Como, evidentemente, a sociedade não poderia procriar todo o tempo, os atos sexuais deveriam ser enquadrados e limitados, na sua forma exclusivamente reprodutiva, no âmbito do casamento. As demais formas de sexo (não há qualquer possibilidade de referência aoprazer) classificadas como “anomalias”: “…todas as ações contrárias ao fim biológico da função sexual e, com relação à sociedade organizada, equiparam-se aos factos julgados, pela coletividade, como violações aos fins sociais de conservação da espécie”, afirma o erudito em “perversões sexuais” do Colégio Militar,Bené Carvalho,citando em apoio juristas fascistasque lhe eram, então, contemporâneos. Neste sentido,o onanismo, como entãoeracomumente denominada a masturbação, o sexo anal e oral, e summa super, a chamada pederastia, eram crimes contra a reprodução da espécie, única finalidade do sexo. A “doutrina” seria testada. Em 1941, o Cabo da Esquadra, Manuel R. C.vii, é acusado de “pederastia” contra seu subordinado na Escola de Aprendizes de Marinha, em Belém. O Cabo, que, como destaca a Ação Disciplinadora,“…tinha o dever de orientar” o “ofendido”, no entanto “…depois de ter procurado capturar a confiança de um menor aprendiz”, emprestando dinheiro e dadopresentes, “…convidou-o para atos de pederastia, que foram recusados, mas que ao final, o dito Cabo praticou à força” viii. O menor ofendido manteve-se, durante quinze dias, em silêncio “…guardando sigilo por vergonha”, só revelando o acontecido em virtude de lesões físicas comprovadas pelo exame de delito. Mas tarde, na ação de“Apelação”, o procurador do réu insistiria na boa consciência do marinheiro acusado, nas suas providências para cuidar do jovemem decorrência da violênciado atoe no consentimento deste, que só teria relatado o acontecido em razão do mal-estar físico decorrente da açãoix.O caso da Escola de Aprendizes de Marinha constituiu-se em um paradigma do debate sobre a “pederastia” nas FFAA no Brasil. Caso comprovado, tratar-se-ia, em verdade, de agressão seguida de violência sexual e estupro, como exigia, por sinal, a Promotoria Militar. Ocorre que a Justiça brasileira, então, não reconheciaa figura de estupro masculino, mesmo com uso de violência e consumação de ato de penetração,

nº16maio-out20179caracterizando o crime como agressão contra menor, se fosse o caso, ou atentado ao pudor, no caso masculino maior de idadex. Oconhecido “catedrático” do Colégio Militar,já com título de general, BenéCarvalho, especialista em todas as formas de “sexualidade anómala”, escreveuem 1937: “…a pederastia violenta, contra representante do sexo masculino, perante a legislação do Brasil, não constitui estupro, mas atentado ao pudor, embora, logicamente, devesse ficar caracterizado aquele delito” xi.Ocorre que a Justiça brasileira, então, não reconhecia estupro de homem –para tristeza do nosso “Catedrático” -, caracterizando o fato apenas agressão contra menor. No entanto, a defesa do Cabo Manuel insiste que a vítima não era menor –tinha na ocasião 18 anos –oque abre um debate jurídico, postoque no Código Militar a menoridade seja estabelecida até os 21 anos, e, que, ele mesmo, estava bêbado e a vítima era conhecida como “viciado no delito”. O Cabo é absolvido em primeira instância, gerando a “Apelação”por parte da promotoria, que agrava a acusação com a informação que o réu teria induzido a vítima a beber, para facilitar a ação corrompedora do “atentador”, e teria, ainda,transmitido doença venérea ao mesmo. Na “Apelação”, num tribunal estranho à Escola de Aprendizes, o Juízo inverte as alegações, acusando o Cabo de ser “…dado ao ignóbil vício da pederastia ativa” e considera, o que será regra em tais casos e está conforme o Código de Disciplina Militar, que “…a simples prática do ato de libertinagem com o menor ou contra ele, mesmo que este consinta, incide na sanção do Parágrafo Único do Artigo 148 do Código Penal Militar”.Desta feita o Cabo é condenado e depois de cumprida a pena, expulso da Marinha. Já em 24 de janeiro de 1941 emerge umcaso bastante diferenciado. O Primeiro-Tenente (farmacêutico), Moacir C. A., de 36 anos,de Vitória/ES, é acusado por colega, de igual patente, de “pederastia passiva” fora do quartel. O acusadorsublinha ser o fato plenamente sabido e se declara escandalizado por tal razão,ebaseia-se na impropriedade para o corpo de oficiais e para o exercício da função militar, na qual a relação do acusado é periférica, já que se trata de um farmacêutico e que suas aludidas ações não se dão no âmbito militar. Contudo, insiste o acusador, os atos degenerados e contrários à natureza atingiriam a honra da instituição e tornara-se um exemplo nefando para todos. O acusador, de forma literal, cita o, então, recente Código da Justiça Militar, de 1938, o que faz o ConselhoMilitar reformar o acusado, como inepto para o serviço militarxii. Quando o Tenente Moacir apela, ex-oficio, contra sua reforma, é internado e submetido aexamesmédicosno Hospital Central do Exército, no

nº16maio-out201710Pavilhão de Neurologia e Psiquiatria, no Rio de Janeiro, para onde é enviado. Abre-se, então, um novo,longo, e penoso, processo contra o acusado.Imagem número 3: Hospital Central do Exército, Rio de Janeiro. No Pavilhão de Neurologia e Neurologia foram conduzidos inquéritos sobre a natureza da pederastia entre os anos de 1937 e 1945. Na foto o Pavilhão “Marcelino Aguiar”, com as enfermarias Ismael da Rocha e Paula Guimarães, onde ficavam os presos, 1905. Fonte: http://www.hce.eb.mil.br/index.php?option=com_content&view=article&id=154&Itemid=299. Não havia, no caso,qualquer vítima ou ofendido diretamente pelo Tenente-farmacêutico, e o acusador baseava-se exclusivamente no “ouvir dizer” e em alguns atos e formas comportamentais do colegaditos “afeminados”, sendo comum a afirmação que o mesmo, no local de trabalho, era atento, eficiente e assíduo e, da mesma forma, jamais ofendera qualquer colega. Assim, a acusação exalava, exclusivamente, a dificuldade de relacionamento do próprio acusador com alguém “diferente”, ou que se supunha diferente, caracterizando o que hojechamaríamos de homofobia e assédio moral. Contudo, em plena “era dos fascismos” e, no âmbito de uma “instituição total”, (GOFMANN, 2001, p. 76), como as forças armadas vinham se constituindo no Brasil, a acusação prosperou. Os médicos, solicitados pelo Juízo Militar,no entanto,encontraram-se numa situação incomum: não podiam declarar o acusado doente, considerando-o em plena posse de suas funções psíquicas e de inteligência,e, da mesma forma, fisicamente apto. Daíresultou a produção deuma peça totalmente desprovida de sentido científico ou conteúdo jurídico: “…trata-se de um caso de incapacidade física