Terrorismo, uma guerra do tempo presente

Ao longo do século XX, e já nestas décadas do século XXI, o fenômeno do Terrorismo, mostrou-se uma preocupação central na Política de Defesa e Segurança das Grande Potências, muitas vezes, como depois de 11/09/2001, nos Estados Unidos e dos ataques múltiplos de 13/11/2015, na França. No entanto, os atos terroristas, ou num sentido mais amplo, a política terrorista enquanto uma sistemática – e aqui descartamos como tal atos de sabotagem no âmbito de guerras formais, como por exemplo a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) ou a Guerra Georgia-Federação Russa  ( ou Guerra da Ossétia do Sul), de 2008, pelo seu caractere de atros “embebed” num conflito reconhecidamente bélico. O ato terrorista, na maioria das avassaladora das vezes, é cometido fora de condições de guerra, ao menos de condições de guerra formais, contra populações civis, de forma inesperado, visando causar o maior dano possível, tanto material – destruição de prédios, vias de comunicação, transporte, armazenagem, monumentos simbólicos – quanto em vidas humanas, algumas vezes dirigidas para alvos militares como quartéis e guarnições.

O elemento central, caraterizador do terrorismo, na sua atualidade, e fora do contexto de uma guerra convencional – quando teríamos dúvida em classificar atos violentos individuais como terroristas –  é que a violência contra alvos específicos de grande impacto – possui um caráter de nítido de ‘propaganda pelo ato “.  Muito mais do que visar destruir, vencer ou desalojar um inimigo muito mais forte e poderoso o ato terrorista possui este nítido caráter “desmoralizador” do inimigo mais poderoso. Na Argélia, durante a “batalha de Argel”, na Irlanda do Norte”, no Vietnã ou no Afeganistão, ao lado das operações militares a estratégia terrorista desempenhou um papel central de desmoralização de um inimigo várias vezes mais poderoso, bastante bem implantado nas suas posições e com um abastecimento infinito. Contudo, após uma larga companha terrorista, mesmo com baixas brutais do lado ativista – vítima de uma larga política de infiltração, delação e de torturas – os “ocupantes” se viram exaustos e desmoralizados, além de expostos aos olhos da opinião pública – incluindo a sua própria crítica interna – como brutais e desumanos, levando a desistência, à com conversações de paz e, por fim, levando a própria retirada do território. Em apenas dois casos, o ocupante “colonial.” teve êxito ao enfrentar um movimento de insurreição com forte uso do terrorismo: na Insurreição Malaia e no Movimento Mau-Mau no Quênia. No entanto, em ambos os casos, entre 1950 e 1960, foi preciso colocar em prática um amplíssimo programa social que, ao final, culminou na independência de ambos os países.

Ao longo dessas décadas, as táticas usadas pelos que praticavam o terrorismo também variaram muito. Walter Laqueur afirma que assim como a motivação, o modo de operação das ações terroristas também mudou muito. O terror podia surgir junto a uma campanha política ou ação guerrilheira,  após o fracasso de um movimento pró-independência, ou pela luta em favor de um novo regime.

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Vítimas de ações Terroristas/Mundo/2019

País %
Afeganistão 25
Iraque 23
Nigéria 8
Somália 8
Síria 6
Paquistão 5
Egito 3
RD Congo 3
RC da África 2
Índia 2
Mundo 18

 

Fonte:  https://fr.statista.com/statistiques/574820/pays-ayant-le-plus-grand-nombre-de-morts-dus-au-terrorisme-dans-le-monde/

 

O “terrorista” busca entende e identificar onde se situa o chamado  “centro de gravidade” – o “Scwherpunkt”, como identifica Clausewitz – do  “inimigo”, regime, forças armadas, empresas,  para dessa forma causar, com poucos recursos, normalmente explosivos, o maior dano possivel.

Ao contrário dos exércitos formais, clássicos, que buscam impor sua vontade, e vencer os conflitos formais, destruindo a panóplia  inimiga – o conjuntos de forças, armas, meios logísticos  – e assim sujeitá-lo à sua vontade –  lembremos que o objetivo da guerra é destruir a vontade de lutar do inimigo via a destruição de seus meios de guerrear -, o terrorista reconhece não possuir tal capacidade. Assim, para ele, o “centro de gravidade clausewitsiano” dos adversários – que varia muito  na  democracias representativas de massa e nas ditaduras  – residiria na coesão e no consenso da opinião pública ou na fachada de força do regime adversário. Assim, a escolha do alvo pelo terrorista assume formas diversas em cada caso, contudo sempre um aspecto altamente “pedagógico” e espetacular. O terrorismo pretende sempre “dizer” algo para “dois públicos”, em mão dupla. O terror possui, desta forma, sua própria racionalidade e um desdobramento pedagógico que configuram uma estratégia,  que chamamos de “mão dupla”: de um lado, “o desdobramento voltado para dentro”, ou seja, para seus aliados e por quem, aparentemente, luta visando causar júbilo, admiração e apoio;  e, por outro “o desdobramento voltada para fora”, que busca amedrontar seus inimigos, causar, para além do dano material, e humano, desconcerto, humilhação e desanimo. É a isso que denominamos de “mística do terror”, a raiz de sua eficácia.

Ou seja, o terrorismo possui a capacidade de escolher o teatro de operação, os meios de luta – embora cada organização tenha na maioria das vezes uma espécie de “assinatura” do tipo de instrumento, forma e alvo de luta utilizado.

A  multiplicidade de meios de destruição/ataques, como os diversos  explosivos e suas fontes podem facilmente identificar o grupo. Assim, é clara a fixação em um só tipo de “ferramenta” para cada grupo: TNT, roubado de pedreiras; bojões de gás de fácil acesso; gasolina; fabricação própria via um “engenheiro” do grupo; aquisição de componentes em lojas de defensivos agrícolas; roubo em indústrias. É pouco comum uma combinação de meios numa mesma organização. Mas, no entanto, é possível.  Esta é,  a novidade do Daesh/Isis, em suas conclamações “matem infiéis, hereges, cruzados e judeus” com quaisquer meios ao seus alcances. Neste caso do Daesh veremos o uso de bombas, sequestro de aviões, arma branca e até atropelamento por carros e caminhões, tornando muito mais difícil a prevenção e captura dos componentes das redes do Daesh/Isis.

Ao escolher um alvo – um ponto turístico mundialmente famoso, um símbolo de poder econômico, um chefe de Estado, um alvo militar, um centro de população civil aparentemente seguro  – o terror fala, assim, ,simultaneamente,  as suas duas linguagens: para os “oprimidos” desmoraliza o opressor e, explicita seu próprio poder de “bater” onde e quando escolher e, para o “opressor” sua ubiquidade e potência. Desta forma, num corolário síntese das duas falas, produz um efeito à mais: a capacidade de atrair recursos na forma de finanças e de alistamento humano, já que se mostrou eficaz e desafiador de uma “ordem injusta”. Foi assim, que o IRA, o “primeiro” Hamas ou Califado Islâmico, por exemplo, na sua escalada de ataques e, de negação das vias de negociação pacíficas. Desde o final do século XIX e começo do século XX o caráter “pedagógico” do Terrorismo foi cultivado como um elemento central de mobilização popular. Grupos populistas russos – os narodinics – e anarquistas italianos, sérvios e americanos acreditavam claramente na sua eficácia, em oposição ao trabalho “burocrático” dos partidos social-democracia (socialistas/marxistas). Lenin, depois da Revolução Russa de 1905, faz uma distinção clara sobre o Terrorismo antes e depois da Revolução: considera o Terrorismo narodinic um sacrifício inútil, destruidor e romântico, enquanto a mobilização, quanto dirigida contra a autocracia czarista, uma forma de organização e resistência.

Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o Terrorismo assume um papel central como forma de luta para os grupos em busca da descolonização dos territórios sob ocupação metropolitana, em especial nos casos em que as formas negociáveis de “descolonização” falharam. Depois da grande onde descolonizadora de 1945-1974, quando ainda resistiam ocupações metropolitanas, o terrorismo assumiu um papel central na luta anticolonial, constituindo-se numa “nova onda” de terrorismo, muitas vezes com apoio de Estados, sob inspiração anticolonial ( Egito e Tunísia, no caso dos novos países árabes, por exemplo, ou Tanzânia ou  Cuba no caso de Moçambique e Angola ). Também o sequestro de diplomatas e de aviões – até mesmo de grandes navios de luxo – marcaram o período para a denúncia de ditaduras e de torturas, como em países como o Brasil e a Argentina. Com o fim dos últimos impérios coloniais ( Portugal e a negociação de novos status, França e Grã-Bretanha ) e a democratização na América Latina, tais movimentos diminuíram ou mesmo cessaram nestes países.

No entanto, desde 1979, com a ocupação do Afeganistão pelos soviéticos surge uma ampla rede de sustentação do terrorismo mujahidin no Afeganistão,  o que apontará para uma “nova onda” de terrorismo global.

 

Período  a partir de 1993: surge uma nova categoria de terrorismo, oriundo  da reorganização dos diversos movimentos mujjahidin ( os chamados, então, de  “afegãos” ), que desmobilizados da luta contra os russos ( 1979-1989 ) voltam-se para os “cruzados, os pecadores e os sionistas”

 

 

Sem território;

  • Sem população;
  • Sem Infraestrutura econômica;
  • Com armas;
  • Com Inteligência;
  • Com liquidez financeira;

Capaz de declarar guerra

 

Para efeito de comparação poderíamos trazer a atuação das grandes organizações narcotraficantes, em especial na América do Sul, entre os anos de 1980 e 2000:

 

  • Ramificações Internacionais;
  • Imensa liquidez;
  • Contatos com outros setores do crime organizado;
  • Substituição do Estado.

 

 

Na sua atual configuração, a soma da abundância do mercado de armas, a fragilidade das fronteiras territoriais – fronteiras são linhas imaginárias no cyberspace, o que faz na realidade todos os países terem fronteiras comuns  e a possibilidade de constituição de núcleos, “retiros” ou “caches” em “estados arruinados”  – “rogue state”  ou estados párias -, que venham a servir de pontos de abrigado  – chamados de santuários ou cachês – para as organizações terroristas ampliaram imensamente o potencial do terrorismo depois do fim da Guerra Fria em 1989-1991.

Constituíram-se, na base das novas tecnologias, organizações muito diferentes das originarias “ligas de carbonários” do ´século XIX italiano, ou das organizações narodinics/populistas russos ou mesmo dos “lobos solitários” anarquistas do início do século XX e os terroristas anticapitalistas americanos do fim do século XX. As tecnologias informacionais constituíram a possibilidade de uma organização nova, de tipo reticular, ao contrário das organizações anteriores de tipo piramidal. Nas organizações carbonárias ou narodinics/populistas a organização piramidal, altamente hierárquica, que iria se desdobrar na organização marxista/leninista dos partidos de tipo bolchevique e nas organizações terroristas marxistas de Extrema Esquerda, como Rote Arme ou as Brigadas Vermelhas, a destruição, morte ou captura de membros do Comitê Central, poderia desarticular por bom tempo – por vezes de forma definitiva – a organização clandestina.  Nas novas organizações reticulares, horizontais, de forte base informacional, com clara autonomia entre o setor operacional – em alguns casos dispensável, ou mesmo “kamikaze”, o setor financeiro e o estratégico, a capacidade de resistir aos golpes armados do adversário é muito maior e contínuo.

 

ORGANIZAÇÃO DO IRA:

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Conselho do Exército ( 7 membros)

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Executivo ( 12 membros)

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Convenção do Exército Republicano Irlandês

( 200 membros)

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Tal estrutura “piramidal” do IRA tornava praticamente impossível para a organização uma reunião durante o período de maior ação do grupo em face da repressão britânica, tendo seus membros realizados reuniões “plenas” apenas em 1970, 1986 e 1996, embora a “Constituição Republicana” estabelecesse reuniões bianuais.

 

Para uma caracterização completa do que denominamos de Estado (terrorista) em Rede, em sua versão “Terrorista” – posto que outras formas de redes, como o crime organizado,  o narcotráfico também se organizam como um Estado em Rede – podemos destacar os seguintes pontos:

 

  • 1. Trata-se de ume entidade sem território;
  • 2. Igualmente  sem população;
  • 3. Da mesma forma sem Infraestrutura econômica;
  • 4. No entanto, plenamente portador de armas;
  • 5 , plenamente dotado de Inteligência, Humana e Cibernética;
  • 6. Com ampla liquidez financeira;
  • 7. Não se limita a um único teatro de operações;
  • 8. Utiliza-se de “franquias” de várias partes do mundo;
  • 9. Utiliza meios informacionais para divulgar sua “causa”;
  • 10. Alista a maioria dos seus membros através da Internet.
  1. Capaz de declarar guerra e negociar a Paz, bem como manter representações em diversos países “amigos”.

 

Tais caraterísticas tornam, nos nossos dias,  a organização terrorista um temível adversário. Ao mesmo tempo em que “bate” duramente em sociedade dotadas de Estados formais organizados, bastante suscetíveis à opinião pública – e como vemos esse é o “Scwherpunkt” das sociedades organizadas em frente ao terrorismo – a própria organização terrorista não possui, como nos casos de guerras convencionais ou simétricas, os pontos correspondentes para o contra-ataque. A miúde a reação do Estado atingido causa mais mal-estar e mobiliza a população adversária contra a potência atacante, como no caso da França na Guerra da Argélia, entre 1954 e 1962, ou dos Estados Unidos, no Afeganistão, entre 2001 e 2021. Até ao final do conflito do Afeganistão, primeiro com o talibã, depois quando estes passam de “Jamaa´t al Islam” para a condição de “Al Dawla al´Islam”, ou seja de organização islâmica para um Estado Islâmico – no caso um emirado, no início de setembro de 2021 – as ações retaliadoras norte-americana, então contra o Daesh/ISIS – em virtude do mega atentado terrorista/suicida do Daesh no aeroporto de Cabul de 26/08/2021,  atingiu famílias de civis, causando grande dano e mal-estar, para os próprios Estados Unidos.

A mobilidade-reticularidade do Estado em Rede, como o Daesh no caso, mas também, a Al Qaeda, a Frente al Nusra, e outras “al jama´at” originam uma imensa dificuldade para aplicação de golpes sucedâneas a uma “batalha definitiva” de tipo clausewitiziano.

A questão do financiamento e do abastecimento, em armas, homens e logística, dos movimentos/entidades terroristas, geraram novos conflitos, por vezes internacionalizando um conflito doméstico. Dois casos são clássicos: Argélia e Vietnã.

No Caso do Vietnã, quando os Estados Unidos ao tentarem cerrar o   abastecimento da Frente de Libertação Nacional/FLN (1955-1975) acabaram se envolvendo num guerra “encoberta” no Laos e Camboja em 1970. No caso da Argélia, tornou-se um símbolo da ação terrorista no contexto de um conflito maior, de uma Guerra de Libertação Nacional (1954-1962).

A Batalha de Argel, entre 1956 e1957, entre a FLN argelina, sob a forma de “Reseau de Bombes”,  e as Forças Armadas francesas – paraquedistas e polícia – foi um ponto de radicalização do enfrentamento de nacionalistas e colonistas, pondo fim a toda negociação política ao destino da antiga Argélia francesa.  A França coloca em prática uma política oficial de “contra-revolução”, criada e defendida pelo Coronel Charles Lacheroy, que terá, mais tarde, nos anos de 1960/1970, forte impacto nas ditaduras latino-americanas. A repressão francesa institui o sequestro, a tortura e o desaparecimento dos nacionalistas como política de Estado na Argélia. A FLN é destruída em Argel, constituindo-se em uma ampla vitória militar francesa.       O             « Reseau de Bombes” produz  314 mortes e 917 feridos em 751 atentados durante o auge da Batalha.

O manual antiterrorista do comandante francês Roger Trinquier, que rapidamente alcança fama mundial como teórico da guerra contrarrevolucionária e subversiva, servirá de base – malgrado as críticas do defensores dos Direitos Civis – para a contra Insurgência na América Latina e Sudeste Asiático.  Assim, no âmbito de uma  “Guerra Moderna” no Ocidente, conforme o texto de 1961, vários cursos de Estado-Maior nos Estados Unidos adotarão tal versão, desenvolvida na Argélia  – para lidar com o terrorismo – , a noção de “contra insurgência” passará a ter pleno nas guerras do Iraque e do Afeganistão .

No entanto, historicamente, a ação terrorista na Batalha de Argel tornará a presença francesa no país impossível e a Argélia será independente em 1962. A aparente vitória militar do ocupante colonial francês não se traduziria numa vitória política, como no caso da Ofensiva do Tet, no Vietnã,  em 1968, ou recentemente na impossível permanência dos Estados Unidos no Afeganistão.

A outra forma de lidar com a questão é o uso da Inteligência financeira e a busca das fontes de financiamento das organizações terroristas – no caso específico de grupos “domésticos” ou instalados “indoor”, apresenta uma outra série de dificuldades, como poderemos ver no caso do IRA e Daesh/ISIS.

Desde que a crise étnico/confessional se agravou na Irlanda/Ulster, em 1969, o IRA ( Exército Republicano Irlandês ou Óglaigh na hÉireann) iniciou um processo de reação armada contra a violência policial protestante e das guardas monarquistas. Tais ações contaram com forte simpatia e apoio da população irlandesa dos Estados Unidos, algo em torno de 11,2% do total da população americana, ou seja, 34.5 milhões de americanos ( enquanto da Irlanda possui apenas cerca de 5 milhões de habitantes). O controle do fluxo de recursos e pessoas era praticamente impossível e o livre comercio de armas nos Estados Unidos – com a participação da Líbia – manteve o IRA permanentemente atuante[1]. Além disso, recorreram aos assaltos a

bancos e trens pagadores, além de uma ampla rede empresas de fachada para organizar as finanças da organização.

No caso do Daesh, o apoio de petromonarquia do Golfo Pérsico, que assim compram sua própria segurança, a venda de antiguidades – só aparentemente destruídas pelo Daesh – e a venda de petróleo roubado dos poços sírios e iraquianos, e contrabandeado pela Turquia – membro da OTAN! -, além da renda gerada por sequestros e extorsões, mantém o Daesh plenamente ativo.

A multiplicidade de formas de financiamento, ao contrária de organizações anteriores a Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria, muito dependentes de uma potência estrangeira – como a “Mão Negra” na Sérvia, ou as organizações pan-eslavistas no Entreguerras, 1919-1939, as organizações pós-Guerra Fria, utilizando-se de formas variadas de finanças, desde o narcotráfico – Califado Islâmico, com o ópio ou as FARC com a cocaína, até a venda de antiguidades e de petróleo como o Daesh, se autonomizam em relação às Grandes Potências e não ficam na dependência da “realpolitik” ou do jogo de poder sempre em movimento das relações internacionais.

Essa “liberdade estratégica” do terrorismo atual permite que tais organizações desempenhem, de fato, um papel central nas relações internacionais e acabem tendo suas reivindicações sendo reconhecidas e obrigando as grandes potências a negociações.

Para o terrorista não há um alvo estratégico único ou central a ser destruído, desmobilizando o inimigo e obrigando-o a negociar em posição de desvantagem – esta é a estratégia da guerra clássica, e nem mesmo aplicada na guerra atômica global e outras formas híbridas da guerra contemporânea. Trata-se, bem mais, no caso do terrorismo de massas contemporâneo, de romper o “consenso da opinião pública adversária” e atingir assim o centro de gravidade do inimigo: a coesão entre a população e o governo, o consenso necessário para a manutenção da luta, a confiança e a credibilidade das forças da ordem e, com isso, do próprio Estado. Desta forma, salta aos olhos as diferenças cabais, por exemplo, entre o ataque japonês às bases norte-americanas em Pearl Harbour, em 7 de dezembro de 1941, e os ataques às Torres Gêmeas, ao Pentágono e possivelmente à Casa Branca ou o Capitólio, em 11 de setembro de 2001;  aos restaurantes e discotecas de Paris em 13 de novembro de 2015. No primeiro caso, havia um claro estudo, pesquisa e conclusão do Estado Maior Nipônico que um forte ataque destruindo a maior parte da força naval norte-americana no Oceano Pacífico, embora não destruísse o poder americano, levaria o país a negociar com o Império Japonês em condições de inferioridade e, talvez, pedir uma acordo de paz. Há uma racionalidade e planejamento que reconhecem na frota e nas bases do Havaí como o centro de gravidade dos Estados Unidos numa região vital ao Japão – o Pacífico. Mesmo que o golpe possa ter falhado, como aliás altos oficiais japoneses admitiram desde logo, havia um planejamento visando levar o adversário às negociações em condições de inferioridade. No caso dos ataques de Nova York e Paris (como Madrid, Londres, Otawa etc.) trata-se, ao contrário, de esgotar a força e a vontade de lutar da população, lançando-as em uma vaga de isolacionismo e lassidão, retrocedendo sobre si mesma e optando por governos isolacionista.

 

Ou seja, a vontade de lutar numa terra distante, contra uma cultura estranha, que, entretanto, é capaz o suficiente para atingi-los no centro de suas cidades, como Paris, em subúrbios e pequenas cidades da Califórnia, nas ruas de Copenhagen e Istambul ou no Parlamento canadense cria confusão e instabilidade interna. Tal flexibilidade e capacidade de “desdobramento de força” impõe uma exigência política de união, maiores gastos e limitação de direitos ao adversário, que pode, e tem, influindo diretamente nas eleições, como nos Estados Unidos e na Europa. Uma campanha sistemática e continuada de terror poderia levar tais democracias, impulsionadas por uma população amedrontada e exausta de uma guerra “falsa” – “le drolê de guerre”, mas com vítimas civis em condições de grande exposição como na Estados Unidos, Espanha e França – a uma reação isolacionista, abandonando ao seu destino áreas consideradas “selvagens” e periféricas[2].

Entendemos, desta forma, que o terrorismo, com sua multiplicidade de alvos e diversidade de locais de ataque, não é um fenômeno irracional, “doentio” ou uma forma particular de culto ao “Princípio de Morte” – embora este esteja presente, explicações apresentadas sob o impacto e a emoção do horror terrorista após cada atentado. Para além de todas as possíveis explicações psicologizantes – com validade, sem dúvida para explicar a adesão/alistamento/radicalização de indivíduos a uma entidade terrorista e, chegando ao limite da ação kamikaze (o martírio em nome do Profeta, da pátria ocupada, do futuro melhor etc.) – não nos serve, contudo, como explicação para a ampla campanha de terror praticada, sua multiplicidade e simultaneidade de alvos em uma longa duração.

 

O terror é, acima de tudo, oportunista, no sentido bélico que Sun Tzu daria ao fenômeno. Um recurso fundamental é aproveitar-se da possível cobertura mediática já previamente estabelecida no local escolhido para o evento – jogos internacionais, festas, áreas turísticas – ou mesmo a garantia da presença de alguns poucos turistas e seus múltiplos equipamentos de som e imagem, já são suficientes para garantir a difusão, em escala global, do caráter “espetacular” do ato terrorista.  E escolher um ponto “mole”, roto, não encouraçado, na muralha de defesa do adversário para bater, com o menor dispêndio possível e auferindo o maior impacto desejado. Na maioria das vezes são atentados duplos ou mesmo múltiplos, para que se possa garantir sua filmagem “au chaud”, sem risco de perda do momento, e essencialmente, porque policiais, paramédicos, médicos, guardas civis e mesmo civis se amontoam para os primeiros socorros, potencializando o segundo ataque. Outras vezes são ataques múltiplos, esparsos, mas simultâneos no tempo, tornando as forças da ordem, em plena ação, desamparadas, como verdadeiro alvo.

Da mesma forma, as vagas de migrantes (1 milhão de refugiados na Europa em 2015,   mais de cem mil  2016 e maré de 1.300 mil sírios que Angela Merkel aceitou em 2017, mesmo  com a reprodução crescente de cenas dolorosas de “boat people” abandonado no Mar Mediterraneo) que chegam à Europa decorrente das lutas na África do Magreb e do Sahel e da crise no Oriente Médio e da destruição do “Regime dique” de Muamar Kadhafi na Líbia,  satura as condições humanitárias e econômicos europeias e fortalece os partidos de Extrema-Direita e todas as formas de desconfiança frente ao “estrangeiro”. A xenofobia, sob a forma de uma cruel “Islamfobia” cresce em todo o eleitorado europeu, dando esperanças aos neofascismos na França, Áustria, Alemanha ou, mesmo tendo alimentado uma boa parcela dos argumentos pro-“Brexit”, em 2017. Tal processo, ainda em curso, já aponta suas consequências com a formação de um novo eixo de poder no Indo-Pacífico entre EUA+Austrália+Reino Unido que resultará na chamada “Otan do Pacífica”, a AUKUS, ainda em setembro de 2021, causando um forte desequilíbrio nos pactos de segurança na Europa, em detrimento da França, e no Indo-Pacífico visando o “cerco” da China Popular.

migração massiva, em uma época de crise de econômica, marasmo e desemprego, surge como uma ameaça ao cidadão médio.  Além disso, a presença de jihadistas ou da “radicalização” de alguns emigrados, potencializa a desconfiança em relação ao “outro” próximo – muitas vezes dotado da mesma nacionalidade já por duas gerações -, mas diferente na cor, no cabelo, na religião. Tal medo acentua a rejeição popular massiva do “outro” e impulsiona o ímpeto de construir, frente à invasão “bárbara”, a mítica “Fortaleza Europa”.

Os atentados terroristas de Nova York 2001 e Paris 2015 assemelham-se mais à lógica contida na “Ofensiva do Tet” vietnamita em 30 de janeiro de 1968 (incluindo seu caráter kamikaze), durante a Guerra do Vietnã, do que a racionalidade e engenhosidade japonesa de 1941: buscavam a derrota política do adversário e não uma vitória militar decisiva, uma batalha que desse ao vencedor condições de negociação em superioridade. Para o terrorismo não há uma batalha decisiva, somente uma rotina desgastante e cruel de ações contínuas para o esgotamento do adversário, para fazê-lo desistir. Neste caso um cenário comparativo, mais próximo, é tipicamente derivado da Guerra de Libertação da Argélia, onde a FLN não possuía meios reais de impingir uma derrota às forças francesas, porém causava um desgaste, inclusive internacional, à própria França. Mas, onde o terrorismo (e contraterrorismo de Estado) tornar-se-iam uma ferramenta constante na guerra, resultando numa profunda divisão da sociedade. A mesma situação repetir-se-ia na Irlanda do Norte com o IRA. Nestes casos, nem mesmo o sucesso do ato terrorista é fundamental. Somente sua tentativa terrorista, com a interrupção do fluxo normal da vida cotidiana, os avisos quase diários de possibilidade bombas e tropas desdobradas, já são condições desmoralizantes para o adversário estatal. Além, é claro, do custo financeiro das medidas de segurança. Contudo, e isso é capital, em ambos os casos – o terror e a guerra -, há um planejamento, racional e sistêmico.  Buscam-se resultados políticos que caracterizaram o “ir além da política tradicional” ou “fazer a política por outros meios”, conforme ensina Clausewitz[3]. Mas, diferentemente da FLN argelina ou do IRA na Irlanda do Norte, os atos terroristas no caso  do Daesh não desembocam numa possibilidade de retomada do trinômio clausewitziano: política+guerra=negociações (em superioridade), ou seja, a retomada da política. A pauta do Daesh, a criação de uma vasta entidade estatal de caráter fundamentalista sobre o território de Estados-Nação pré-existentes (Síria, Iraque, Líbano, Líbia) ou em fase de gestação (um possível Curdistão), além da libertação de “Lugares Santos” em vários outros estados impede, de fato, a negociação. O ataque ao aeroporto de Cabul, em 20121, logo após a vitória do Talibã explicita isso: americanos e talibãs são alvos iguais para esta organização.

Da mesma forma, a estratégia do Daesh difere largamente do modus operandi da Al-Qaeda. Enquanto a Al-Qaeda busca atos espetaculares de largo impacto – o que o Daesh também faz -, com longo planejamento e meios financeiros custosos, o Daesh não desdenha, muito ao contrário, os pequenos ataques, com uma ou duas vítimas. A degola de um padre na França, o esfaqueamento de um policial em Londres, o ataque a um museu ou uma sinagoga, são alvos legítimos e incentivados pelo Daesh. Assim, em especial na Europa, corre-se o risco de transformar  num processo de “israelização” da vida cotidiana, com uma securitização duvidosa das instituições e dos espaços públicos.

O Daesh não luta para vencer os seus adversários e negociar uma paz em melhores condições. Sua luta é pelo extermínio do adversário.  Neste sentido começamos a distinguir entre “segurança” e “securitização”. Não há como garantir em grandes espaços abertos a segurança de todas as pessoas. Por exemplo, em metros, parques de diversão, áreas de embarque antes do check-in, rodoviárias, universidades etc. Tais áreas são no máximo “securitizadas” com a presença de guardas de segurança e o treinamento de funcionários e avisos sobre “pacotes”, lixeiras e estranhos. Enquanto isso, serão “seguros” locais que passem por revistas e tenham detectores de metais e revistas, como embarques de aeronaves, áreas restritas de parlamentos, aeroportos etc. Assim, implantar, por exemplo, detector de metais ou revistas em metro ou supermercados é impraticável, seja pelo fluxo de pessoas, seja pelo custo. Assim, teremos de aceitar que são áreas “securitizados”, ao máximo, porém não são áreas completamente seguras.

Desta forma, a segurança deve ser feita de forma prévia, via Inteligência, de forma a não permitir a organização do grupo terrorista, evitando a necessidade da ação “just in time”.

 

A questão do “Lobo solitário”:

Os “Lobos Solitários” não fazem o juramento, não aceitam comandos ou reconhecem uma autoridade e tomam iniciativas sem nenhum incentivo externo necessário. Não estão perdidos em busca de um “lugar”, bem ao contrário, acreditam fortemente que sabem seu “lugar” na sociedade que, no mais das vezes, combatem.  São “lobos solitários” clássicos o terrorista Theodor Kaczynski (1942), um gênio matemático, formado na Universidade de Harvard e denominado de “Unabomber”, que agiu nos anos de 1990. Ou o responsável pelas cartas com antraz logo após o 11 de setembro de 2001 pelo também cientista Edward Bruce Ivins ou, mais próximo de nós, aparenta ser o caso do jovem Wellington Menezes de Oliveira, na Escola Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, em 2011, responsável pela morte de doze adolescentes.

Contudo, os casos clássicos de “Lobos Solitários” são de Timothy McVeigh (1968-2001), que explodiu o prédio da administração federal de Oklahoma, em 1995 (168 mortes, incluindo dezenas de crianças de uma creche), simpatizante de uma organização neonazista norte-americana, e Anders Breivik (nascido em 1975), que matou 77 pessoas, em 2011, na Noruega. Breivik também é um neonazista e afirmou, incluindo saudações hitleristas no tribunal quando de seu julgamento, que lutava por uma Europa branca e contra a islamização do continente. Por sinal o tiroteio organizado por David S., um adolescente de origem teuto-iraniana, num MacDonald de um centro comercial de Munique, em 22 de julho de 2016, se deu exatamente no dia do aniversário do ataque de Breivik, de quem ele colecionava material de jornal e livros. Assim, tanto McVeigh, Breivik e o adolescente David S. agiram sozinhos, com uma clara premeditação, sigilo e cuidados, enquanto Omar, Bouhlel e o jovem Ryiad, entre outros, fizeram questão de se dizer “combatentes” do Daesh, prestaram o juramento e atenderam ao mandamento: “…façam o que for o melhor! ” No caso de Kaczynski e Ivins é interessante notar que eram militâncias individuais, anti-civilização de consumo e antiguerra, sem manter quaisquer tipos de ligações, organizações ou discípulos – sempre contrários a qualquer forma de “sistema” -, enquanto McVeigh, Breivik e o jovem David S. pertencem a ala de extrema-direita da topológica política moderna. Estes são os “lobos solitários”. Compõe uma cena de atos “desconectados”, sem um incentivo externo, comando ou promessa de redenção. Da mesma forma, nenhum deles se apresenta como mártir dispostos a morrer: McVeigh empreendeu uma longa fuga, que fora previamente planejada; Breivik organizou também um recuo após ataque e sabia claramente que não haveria pena de morte e o jovem David S. remete a uma situação de “mass killer” diferenciada, de tipo repetitivo nas escolas americanas e se aproximaria da situação do jovem Wellington, da Escola Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro.

A “mouvance” terrorista global do Daesh comporta também uma situação específica. Trata-se da situação de “latência” – como o foram os Irmãos Tsarnaev, em Boston em 2013- , são como as “células adormecidas” como em San Bernadino e cada vez mais se encaixa no perfil de Bouhlel  – já estão no local de ação ou em suas proximidades –  esperam um comando ou uma ordem direta, que vem através do sítio eletrônico do ISIS, em especial a AMAQNews ou mesmo através de contatos diretos, via viagens aos seus países ancestrais (Arábia, Marrocos, Chechênia por exemplo) ou mesmo via a peregrinação do Hajj. Não são escolhidos, acolhem o chamado do Daesh “ bateremos no coração das cidades dos cruzados” e buscam agir da “melhor forma possível”. Ao contrário do que afirma a polícia e demais autoridades, e a imprensa repete apoiada pela contrainformação de familiares, não se trata de uma rápida e inesperada “radicalização”, quase um ato de loucura. Percebemos, com as novas investigações que apontam para sinais, indícios ou sintomas que veem se desenvolvendo desde longo tempo. Mais uma vez, Bouhlel, os irmãos Kuachi, Coulibaly, os Tsarnaev e Omar Seddiqq, bem como os “primos” e amigos em torno de Adel Kermiche – o degolador da Normandia – planejaram, se conectaram, receberam o aceite como “combatentes” e se puseram em marcha.

Os inquéritos em curso na França sobre o assassinato do Padre Jacques Hamel, na sua Igreja na Normandia, por Adel Kermiche e um cumplice dão um exemplo bastante bom da inadequação da denominação de “lobo solitário”. Não só o jovem Adel Kermiche havia feito ao menos duas viagens para a Síria, onde entrou em contato com o Daesh, como ainda recebeu apoio e fez contatos em vários pontos da França e no exterior, na Áustria mais especificamente, explicitando uma rede bastante ampla de planejamento. Assim, o ataque “solitário” de Kermiche se mostra, cada vez mais, um dos casos de “faça o que puder e da melhor forma ao seu alcance”, dentro da estratégia de atos isolados, cruéis e constantes visando espalhar o medo, a discórdia e ódio na “Zona Cinza” da sociedade francesa. Havia ali uma estratégia, nada que aponto para um ato solitário ou um surto momentâneo de loucura[4].

Nada aponta para um repentino rompimento das regras sociais, um lapso momentâneo da razão ou uma síndrome dissociativa. Devemos lembrar ainda, que o continuo a agir violento prévio de tais perpetradores, pode estar, também, associado ao uso de drogas, cada vez mais comum nos combatentes do “califado islâmico”.

Nestes casos há uma conexão e esse conexão está diretamente vinculados aos episódios maiores da “guerra convencional” na frente de operações, como no caso a luta contra os Daesh e engloba uma estratégia global de guerra do Daesh.

E naquela semana dos ataques em Paris, com o Daesh sendo batido em Alepo, Raqqah e Mossul, deu-se a chamada para o ataque aos Estados Unidos e seus aliados.  Na semana da matança em Orlando o acompanhamento no AMAQ News avisava:  “. Ações nos Estados Unidos e seus aliados”, como uma senha. O Daesh não define, assim, alvos ou dia/local, apenas diz “façam” o que está ao alcance de vocês e confiem em Allah. Muito possivelmente não precisa de contato ou pertença direta, basta o “juramento” de submissão. Embora tenhamos que registrar que o odiador de Orlando fez o “Hajj” à Meca e ficado lá algum tempo, o que pode muito bem ter sido o tempo para os contatos. Mas, verdadeiramente não é preciso, a Internet, através dos sítios mantidos pelo Daesh, cuida disso[5].

Temos que reconhecer, desta forma, que o “Califado islâmico” recobre dois espaços simultâneos, agindo de forma global em ambas: de um lado, a passagem da condição de uma “organização islâmica” (“al-Jama´at”) para um Estado de tipo westfaliano (“al-Dawla”), territorial e dotado de meios modernos – sendo hoje batido fortemente pela coalização ocidental e pela frente russo-xiita. Por outro lado, o Daesh se expande em todo o mundo como uma rede global, controlada de forma frouxa, com uma grande variedade de fluxos materiais e imateriais. No primeiro caso, o experimento do Califado como Estado westfaliano, pode ser destruído pelas forças coligadas antiterroristas – o que ainda não aconteceu…  Contudo, a rede terrorista global não precisa, de forma alguma, de uma base territorial para agir e continuar sua luta terrorista.

Vemos, desta forma, uma ampla rede, frouxa, fragmentada, mas diretamente conectada a um forte sistema de comunicações do Daesh – com cerca de mil homens empregados, com recursos financeiros bastante adequados – utilizando-se de equipamento de ponto e de meios eletrônicos eficientes e com uma linguagem audiovisual muito próxima dos vídeos-games (de fácil conexão com os jovens adolescentes) suportando toda uma rede de predicadores, alistadores, suporte (“pessoal de escritório”), finanças, apoio e observação “militar” até os terroristas suicidas.

Em suma, o terrorismo do Daesh é uma rede de novo tipo, capilar, não hierárquica e não linear para a qual os serviços de inteligência do Ocidente ainda não dispõem de uma resposta eficaz.

O perfil do “odiador” de Orlando era racista, misógino, falocrata e agressivo conforme emerge de depoimentos e entrevistas realizados pelo FBI e, como vemos nas muitas fotos (“selfies”) apreendidas, profundamente narcisista, o que nos diz muito da dificuldade de falar com “outro” (e, ao mesmo tempo, emula muito a “firmeza”, “Mateen”, e vaidade exposta no calor da hora pelo pai e sua capacidade de exercitar a “taqiya”). Este, talvez, seja uma traço central entre todos estes perpetradores: a incapacidade de investimento afetivo no outro, com um forte déficit de relacionamentos. A personalidade narcísica de Omar Mateen ou Bouhlel, suas relações múltiplas e falhadas, se expressa claramente na “necessidade”, verdadeira hiância – este espaço vazio entre dois parênteses exigindo seu preenchimento – que retorna sob a forma de culpabilização do outro, do diferente – infiel, hipócrita, apóstata, gay, “cruzado” ou “sionista” – por seu próprio fracasso.

No caso de Omar, havia, no seu passado recente, como vimos, relacionamentos e “amizades” com “drag queens” e gays, incluindo a ida a espetáculos em locais LBGT e saídas para beber (álcool, um muçulmano praticante!), na própria boate “Pulse”. Depois que começa a frequentar a Mesquita de Port. Saint-Lucie, e muda o nome emulando o pai, em 2006 (ele se torna “forte”, “firme”, ou “Mateen”, como o pai) passa a odiar a cena gay de forma explicita, embora não cessem as visitas noturnas a “Pulse”, evidenciando os diversos níveis que compõe a “personalidade autoritária”, como apresentada por Adorno. E na sua capacidade de conter, revelar, negar, inclusive a si mesmo, o que cada um pode ou não aceitar, pensar e sentir abrindo um vasto leque de reações “potenciais”, já residentes na consciência de um indivíduo ou, nas palavras de Adorno “… precisamos reconhecer que o indivíduo pode ter pensamentos “secretos”, que ele não revelará a ninguém, em nenhuma circunstância, se puder evitar. Ele pode ter ideias que não admite nem para si mesmo “. A explicitação de seu horror homofóbico extremado – o beijo gay “público” – emerge como uma forma de perdão e de remissão de seu passado “takfir”. Muito possivelmente, este arrependimento se dá através de uma confissão-conversão feita à esposa, muçulmana praticante, que chega a acompanhá-lo numa visita à boate “Pulse” (e na compra de armas e munições que serão utilizadas na ação terrorista). E nesse processo o pai desempenha um papel central, em face da primeira esposa (que  enfrenta e denúncia ao pai) e ao próprio pai, muito possivelmente identificado pela primeira esposa como fonte dos distúrbios de Omar, ela mesmo vítima de agressões contínuas. Já a segunda esposa, aliada ao pai, emerge como complementação da vontade do pai em trazê-lo de volta ao mundo de Deus. O perfil bate diretamente com os atacantes do “Charlie Hebdo”, de Paris e de Bruxelas: ódio, pequenos delitos, álcool (e drogas), uma “vida oculta” em pecado (lembremos o caráter dos sítios de pedofilia dos Irmãos Kuachi) e, então, são atraídos para um centro islâmico para a “cura”, a “(re)conversão”.

Pelo menos um psicólogo, mas arguto e dedicado, pode fazer uma ligação muito firme sobre o papel da família como uma espécie de “agente recrutador”, ou ao menos um membro próximo – primo, cunhado, sogro e, claro, um pai – que faz a “(re)-conversão” do indivíduo “perdido”. Nem sempre se trata de uma conversão para o ato terrorista, mas um retorno ao âmbito da “mouvance” islâmica que acabará redundando no ato terrorista, dadas as condições de fragmentação/imaturidade narcísica do eu do indivíduo. Voltamos aqui aos diversos níveis “potenciais” de consciência, do grau de maturidade e de capacidade de formular opções razoáveis a um estado crítica, ou como afirma Adorno “… é a prontidão para conduta antes que a própria conduta”.

O terrorismo nas primeiras décadas do século XXI continua como uma arma, e uma forma de guerra, fundamental para se alcançar “fins políticos por outros meios”.  A sua “geografia” não é necessariamente “colada” a geopolítica de suas origens, na mesma razão de que o terrorismo, como afirmamos, precisa de “público”.  Cerca de  75% de todos os “ataques terroristas” registrados no mundo nas duas primeiras décadas do século XXI, se concentraram em dez países: Iraque, Afeganistão, Índia, Paquistão, Filipinas, Somália, Turquia, Nigéria, Iêmen e Síria. No entanto, países tão distantes como a Noruega, Alemanha e Bélgico podem vir a serem palcos de eventos terroristas em função do auditório buscado e baixa frequência, e mesmo do abandono, de tais países concentradores dos eventos terroristas pela mídia global.

Neste sentido, a convivência com os atos de terror parecemo-nos que será ainda uma constante.

 

Bibliografia:

CLAUSEWITZ, Karl von. A Arte da Guerra, Lisboa, Martins Fontes, 1999.

ADORNO, Theodor.    The authoritarian personality. Nova York, Harper and  Row        Frenkel-Brunswik, E., Levinson, D. J., & Sanford, R. N., 1950.

AMAQ News. Jihadists Disseminate Instructions for Starting Grassroots Operations around the World, consultado em 8 de junho de 2016.

EL PAÍS. La Guerra Opaca de Estados Unidos em Síria: 300 soldados de elite com Raqa como objetivo. In:http://internacional.elpais.com/internacional/2016/08/20/estados_unidos/1471718305_611728.html, 23/08/2016, consultado no mesmo dia.

GIRARD, René. Rematar Clausewitz além `Da Guerra`. São Paulo, Editora Realizações, 2007.

LAQUEUR, Walter. The Terrorism Reader: A Historical Anthology, editor, Philadelphia: Temple University Press, 1978.

LE FIGARO. Adel Kermiche, un ado perturbé devenu terroriste. In: http://www.lefigaro.fr/actualite-france/2016/07/27/01016- 20160727ARTFIG00342-adel-kerniche-ado-perturbe-devenu-terroriste.php27/07/2016, consultado no mesmo dia.

LE MONDE. Sommes-nous en guerre? 16 de novembro de 2015, http://www.liberation.fr/debats/2015/11/16/sommes-nous-en-guerre_1413889, consultado em 10 de dezembro de 2015.

ROSENTHAL, Franz. “Dawla”. The Encyclopedia of Islam, New Edition, Volume II: C–G. Leiden and New York, 1991.

SARTRE, Jean-Paul. « Comment faire face au terrorisme », entretien avec Gilles Martinet, France-Observateur, no contexto da Guerra da Argélia  ( 1954-1962),  18 mai de 1961.

The Khoran. Oxford, University Press, tradução do árabe por Arthur J. Arberry. 1998.

[1]  Grupo de Informação de Jane estimou que o armamento desativado em setembro de 2005 incluiu: Um AG-3, variante norueguês do Heckler & Koch G3 . Mais de 50 deles, de um lote de 100 roubados do Exército norueguês , acabaram no IRA. [209]RPG-7 , obtido pela primeira vez pelo IRA da Líbia em 1972 [210]

 

[2] Neste sentido assume grande importância o debate, aparentemente acadêmico, entre especialistas e políticos sobre a formula “Guerra ao Terror”, como inaugurada por George Bush depois do 11 de Setembro de 2001, e retomada, em 2015, pelos presidentes François Hollande, Vladimir Putin e mesmo Xi Xiping,  Nesse contexto, as posições de muitos juristas e, mesmo, humanistas de que não se pode declarar guerra a um “não-Estado” ficam presas ou a um formalismo juridicista já ultrapassado – o Japão em várias ocasiões atacou sem uma declaração de guerra, a Alemanha nazista igualmente e na Guerra do Vietnã nunca houve uma declaração formal de guerra entre as partes; outros autores acompanhando, um pacifismo no limite irresponsável, insiste num diálogo civilizacional, com quem não considera o “outro” uma civilização.. Assim, as posições de especialistas como Alain GARRIGOU, da Université Paris I, considerando a guerra uma fórmula jurídica ou de Giles Dorronsoro, do CNRS, que nos fala de uma “drole de guerre”, perdem a percepção dos novos contextos mundiais, do papel da mídia e do terror numa “sociedade do espetáculo”.  Bertrand BADIÉ, da Faculté de Sciences Politiques, armado de um vasto arsenal da Teoria Política clássica, portanto de viés etnocêntrico – desconhecendo os novos debates sobre a variedade e a polissemia que envolve o termo “guerra” –  recusa a noção de uma “declaração” de guerra ao Daesh. Por outro lado, o conhecido filosofo Étienne BALIBAR não recua diante deste passo decisivo: mesmo não aceitando a tese de “clash of civilization”, Balibar fala de um “proto-Estado” que de fato declara a guerra e caso não seja batido tornar-se-á um Estado de direito pleno, com o qual os adversários serão obrigados a negociar diplomaticamente em condições cada vez mais dificies. Ver: LE MONDE. Sommes-nous en guerre? 16 de novembro de 2015, http://www.liberation.fr/debats/2015/11/16/sommes-nous-en-guerre_1413889, consultado em 10 de dezembro de 2015.

[3] Clausewitz et la guerre populaire. Bruxelas, Aden, 2004, p.54 e ss e ver ainda: GIRARD, René. Rematar Clausewitz além `Da Guerra`. São Paulo, Editora Realizações, 2007.

[4] LE FIGARO. Adel Kermiche, un ado perturbé devenu terroriste. In: http://www.lefigaro.fr/actualite-france/2016/07/27/01016-20160727ARTFIG00342-adel-kerniche-ado-perturbe-devenu-terroriste.php27/07/2016, consultado no mesmo dia.

[5] Ver: AMAQ News. Jihadists Disseminate Instructions for Starting Grassroots Operations around the World, consultado em 8 de junho de 2016.

ENSINANDO A ODIAR: os planos de aula da SS sobre o judaísmo (Alemanha, 1937)

1.               Introdução: notícia historiográfica e arquivística.

Esse breve artigo  é uma análise de um dos muitos planos de aula produzidos pelo SD-Hauptamt da SS ( Serviço de Segurança/ Escritório Central das SS) entre 1933 e 1939 visando à formação dos quadros das SS, através de um programa especifico de  “Formação da Polícia” (“Polizeischulung”), bem como  “esclarecer” a população – em especial os que chamaríamos de “multiplicadores” tais como professores, empresários, funcionários públicos, etc…  As  “Conferências de Formação” ( “Schulungsvorträge”) deveriam apresentar as  razões dos expurgos e prisões massivas de judeus depois da tomada do poder de 1933, bem como a sua exclusão da vida pública, incluindo o comércio, serviços profissionais, o funcionalismo e as atividades culturais – da Alemanha. O texto é de 1937, portanto, anterior a 9 de novembro de 1938, a chamada “Kristallnacht, a “Noite dos Cristais”, quando cerca de 7500 lojas e estabelecimentos judeus foram destruídos,  bem como 267 sinagogas, incluindo suas escolas e bibliotecas,  saqueadas e incendiadas”. Nesta noite 91 judeus foram mortos e cerca de 30 mil presos e levados para campos de concentração, além de ser imposta uma odiosa multa coletiva aos judeus de um bilhão de marcos “por depredação, tumulto e desordem pública” [1]. Assim, no momento em que o documento em pauta foi escrito e começa a ser utilizado, ainda não tínhamos chegado aos ataques massivos, abertos e sistemáticos aos judeus.  A famigerada “Wanseekonferenz”, a Conferência de Wansee, onde as linhas centrais do extermínio judeu são estabelecidos, se dá em 20 de janeiro de 1942 (e retomada em 6 de março e 27 de outubro de 1942, desta feita já no escritório de Adolf Eichmann, o “Referat IV B4, da Gestapo na Kufurstenstrasse   115/116, no Centro de Berlim”.). Em Wannsee, parque e área verde nas imediações de Berlim, na antiga Vila Marlier, transformada em hospedaria do comando da “Sicherheitspolizei”, onde seriam traçadas as linhas básicas da “Solução Final” da chamada “Judenfrage”, a “Questão Judaica” no “Reich alemão”, os quadros superiores do SD  organizaram o Holocausto[2].

Entre 1933 e 1938, e o documento ora em pauta é datado de 6 de fevereiro de 1937, escrito em Berlim na sede do SD – ou seja, pouco antes da “Kristallnacht”, já ocorriam frequentes ataques e abusos contra a população judaica da Alemanha. Neste momento,  mesmo que ainda não se tivessem estabelecidas as linhas centrais do extermínio judaico, o clima de terror já era claro – momentaneamente “apaziguado” pela realização das Olimpíadas de 1936 em Berlim. Sem dúvida as violências, a perseguição, a humilhação, a exclusão e  assassinatos de judeus já estavam em curso – até mesmo antes de 1933, por parte das tropas SA. Mas, ainda não se tinham as diretrizes, como nos diz Christopher Browning, que levariam a Auschwitz e seus campos similares espalhados por toda Europa conquistada pelo Terceiro Reich. Já com a ocupação da Polônia, em 1939, os judeus começaram a ser eliminados em seguidos eventos de fuzilamento em massa.  Foi, contudo, logo após a invasão da União Soviética pelos alemães, em 18 de dezembro de 1940, que as perseguições constantes transformar-se-iam no extermínio sistemático de judeus, o Holocausto. O ano de 1941, imediatamente anterior à realização da “Conferência de Wannsee”, é marcado pela decisão de Hitler pelo extermínio dos judeus e as diversas decisões e medidas administrativas que levariam ao Holocausto. Nos territórios do ocupados na Europa Oriental – na Polônia iniciar-se-iam os programas de deportação e extermínio já em 1941 -, o começo dos assassinatos brutais pelas “Einsatztruppen”, companhias das SS especializadas no extermínio em massa população hebraica começam a assumir um desenho coletivo, massivo e sistêmico. Também as Waffen SS tomaram a inciativa, incialmente, na Polônia,  de eliminação das lideranças culturais e de seus judeus, e, com a invasão da URSS, a por em prática um programa organizado  de exterminar judeus, ciganos e funcionários comunistas da União Soviética. Tais medidas foram premeditadas, organizadas, em especial através do chamado “Kommissarbehfel” (“Decreto dos Comissários”), de 6 de junho de 1941, assinado por Hitler, autorizando a execução sumária de “comissários comunistas” e outros “resistentes” sem julgamento prévio, dispensando o aprisionamento e ordenando a execução imediata dos mesmos[3].

Em Belzec, em novembro de 1941, já estavam acontecendo vagas de extermínio com uso de gás, ora em furgões, ora em salas construídas especialmente para assassinatos coletivos, e em Kulmhof, em dezembro de 1941, já estavam em funcionamento os furgões de extermínio a gás[4].

De qualquer forma, em 12 de dezembro de 1941, as decisões necessárias para os assassinatos em massa estavam tomadas, faltando apenas a sua organização administrativa, o que se daria em Wannsee através da reunião dos líderes do SD. Naquela data, numa reunião de “Gauleiter” do Partido Nazista, no Salão Privativo da Chancelaria do Reich, em Berlim, Hitler afirma para seus seguidores, que perante a “guerra mundial” em curso, a “Questão Judaica” deveria ser resolvida definitivamente: “…o  extermínio dos judeus era uma consequência necessária da guerra mundial” (“… Bezüglich der Judenfrage ist der Führer entschlossen, reinen Tisch zu machen. […] der Weltkrieg ist da, die Vernichtung des Judentums muss die notwendige Folge sein”) [5].

Assim, no período que antecedeu a tomada de decisão, em 1941, e o começo da execução sistemática do Holocausto, em 1942, dominou nos territórios do Reich a violência institucional e individual contra os judeus, sustentada e nutrida por uma propaganda sistêmica do antissemitismo, incluindo a imprensa, o cinema e, o que nos interesse aqui, através de “aulas”, “palestras” e “treinamento”. Neste período, em especial de 1933 até… , quando podemos falar de uma fase inicial do nazismo, a “Gleichhaltung” – ou seja, a uniformização da sociedade alemã pelos projetos nazistas e que alguns autores denominam de “processo de fascistização”[6] – a difusão e imposição do antissemitismo como política de Estado era fundamental. O documento em pauta – as recomendações para “aulas” de antissemitismo a serem ministradas pelo SD –  é um testemunho, brutal, do antissemitismo estatal, enquanto politica oficial do Reich alemão.

A autoria institucional do documento, composto de 26 páginas, originais, datilografadas e com várias anotações à mão, e autenticadas, no estilo corrente dos documentos alemães da época, é do SD.-Hauptamt Abteilgund II – ou seja, do Serviço de Segurança – Escritório Central, Divisão II. O Serviço de Segurança (doravante SD) pertencia às SS e foi organizado em 1931, como um órgão de controle do conjunto das SS. Sofreu várias “reorganizações”, em especial depois da “tomada do poder”,  entre 1935 e 1937.  Sua chefia, e o cérebro organizador, foi o SS-Gruppenfüher Reinhard Heydrich, braço direito de Heinrich Himmler, o chefe das SS. Estava organizado, até 1942, em três escritórios – “Amt”, plural “Ämter”, que por sua vez eram subdivididos em várias “Divisões”, “Abteilung”, plural “Abteilungen” – com funções especificas: o “Escritório I” era dedicado à administração e aos cuidados de gestão do  “pessoal” do conjunto do SD; o “Escritório II” era voltado para a “Segurança Interna”, possuía várias divisões e foi estabelecido pelo SS Standartenführer Hermann Behrends, substituído em 1937 pelo SS Sturmerbannführer Franz von Six, um dos mais importantes “ideólogos” do Holocausto; o “Escritório III” cuidava da “Segurança Externa”, ou seja, a espionagem, inteligência e contra inteligência.

Foi no âmbito do “Escritório II” que o documento em análise foi produzido, logo em seguida da organização das diversas “Divisões” do SD.  A “Divisão II/112” era dedicada exclusivamente a “Judenfrage” ou simplesmente “Juden” – outras divisões do mesmo “Escritório II” dedicavam-se aos maçons, marxistas, oposição, etc…  A organização da Divisão II/112 deve muito a Leopold von Mildstein, o “especialista” em questões judaicas da SS, na verdade um ideólogo do racismo,  e que dirige o serviço, no SD, em 1936.

A Divisão II/112 foi dirigida sucessivamente por vários oficiais superiores da SS. No momento da redação do documento estudado seu chefe era o SS Unterstürmerführer Dieter Wisliceny, não só um ideólogo do antissemitismo, como ainda um dos seus executores. Foi ele que indicou o colega SS Hauptscharführer Schröder (substituído em 1938 por Herbert Hagen, em 1940 por Hans Richter) para a função de “Referent”, algo como “Relator”, da organização da  documentação,   propaganda  e das orientações práticas ( “Rechtlinien”) do antissemitismo  no Reich alemão.

Dieter Wisliceny (1911-1948) com o começo da guerra foi transferido para a função de “Beauftragter für judische Angelegenheiten” ( “Responsável pelos Negócios Judaicos”), leia-se, a “Solução Final”, nos territórios da Eslováquia, Hungria e Grécia. Wisliceny, um antigo estudante de Teologia, que adere ao Partido Nazista em 1931, faz uma rápida carreira no interior do SD – em boa parte em virtude de suas relações pessoais com Adolf Eichmann, tornando-se um “especialista na Questão Judia”. Participou, como “Sonderkommando” na aniquilação direta  dos judeus de Solônica, além de organizar e informar o SD em ampla área da Europa central e do sul, sendo um dos organizadores da deportação dos judeus orientais para Auschwitz. Wisliceny compareceu ao Tribunal de Nuremberg, como testemunha, sendo deportado, então, para a Tchecoslováquia, onde foi julgado por crimes contra a Humanidade, condenado e enforcado em 1948 na cidade de Bratislava[7]. Já Herbert Hagen (1911-1999) era um jornalista, culto e falante de vários idiomas,  mas com sérias dificuldades financeiras, que se junta às SS somente em outubro de 1933, depois da tomada do poder.  Através de seus contatos com Franz von Six torna-se um espião a serviço de Heinrich Himmler, tendo desempenado um papel de monta nos assassinatos de membros da SA – incluindo aqueles mortos onde hoje funciona o Bundesarchiv Lichterfeld, onde o documento analisado foi encontrado – e outros oponentes do Regime Nazi na chamada “Nacht der langen Messer”.  A “Noite das Longas Facas”, em 30 de junho/1 de julho de 1934, deu-se  quando Hitler, apoiado pelas Forças Armadas alemães e pelo “establishment” político em torno do velho presidente Marechal Hidenburg, expurgou e assassinou  a oposição interna no Partido  Nazista – liderada por Ernst Röhm, chefe das AS. Coube as SS o papel central neste banho de sangue. Por seus “serviços”,  Hagen fez uma rápida carreira, sendo enviado, mais tarde, para França ocupada para chefiar o SD em várias cidades francesas, além de ações brutais contra judeus da Áustria e da Caríntia.

Em 1937 foi nomeado chefe da Divisão II/112 Judeus do SD, onde acumulou credenciais para as perseguições que colocaria em prática na França. Por isso foi acusado por um tribunal francês de organizar 70 comboios de deportação de judeus, com 70.790 judeus franceses ou refugiados na França, para campos de extermínio na Alemanha e na Europa Oriental.  Por tais ações foi condenado a prisão perpétua, mas as autoridades britânicas não o entregaram aos franceses. Preso na Alemanha acabou sendo libertado, morrendo num asilo em 1999.

Leopold von Mildenstein (1902-1968), engenheiro e jornalista, alista-se no Partido Nazista em desde 1929 e torna-se membro das SS desde 1931. Era considerado um “especialista na Questão Judia” , tendo feito inúmeras viagens para a Palestina britânica, e defendido a expulsão dos judeus para aquela região, mantido contatos constantes com o “Hagana”, em negociações – envolvendo grandes somas de dinheiro – para a autorização de migração para a Palestina. Em 1936 dirigiu a Divisão II/112 Judeus, tendo então entrado em atrito com Heydrich, voltando-se para Joseph Gobbels, com quem vai trabalhar no Ministério da Propaganda.  Tornou-se rapidamente próximo da “Gehlen Organization” (organização estabelecida em 1946 pelas autoridades americanas para alistar nazistas que seriam úteis para a Inteligência antissoviética)[8], não sendo acusado pelos aliados depois da guerra, indo trabalhar na empresa “Coca-Cola”, como cobertura para atividades de espionagem no Oriente Médio para a CIA[9].

Hans Richter (1903-1972), formado em Direito, com ambições artísticas – estudou música em Berlim – adere ao NSDAP em 1932, como uma alternativa ao desemprego e pobreza que o atingiu a crise de 1929, atuando como informante e depois de 1933 como responsável por presos e delações.  É contratado para a Divisão II/111, onde se torna responsável pela repressão dos maçons, passando rapidamente – e com a ajuda de Adolf Eichmann – para a Divisão II/112 Judeus, onde desenvolve intensa atividade, não sendo, entretanto, acusado depois da guerra[10].

Wilhelm Spengler (1907-1961) foi chefe, durante longo tempo do “Escritório III K”, do SD, responsável pelas questões culturais – daí uma íntima relação com Joseph Gobbels – e pela propaganda e censura no âmbito da vida cultural do Terceiro Reich, incluindo, claro, a propaganda antissemitismo.  Com uma profunda formação em engenharia e Germanística – história, literatura e arte alemã – distinhuia-se no SD como um guia cultural e ideológico da instituição de Himmler. Aderiu ao SD em 1933 e chegou a fazer parte do “Einsatzgruppen IV” (EGR) na Polônia, nos Bálcãs e na URSS, especializando-se no assassinato de funcionários públicos, professores, judeus e doentes.  Depois de um curto internamento, na zona de ocupação britânica, entre 1945 e 1947, Spengler une-se ao grupo “Stillen Hilfe”, de ajuda aos prisioneiros nazistas, atuando claramente como uma liderança nazista na República Federal Alemã[11].

Também parte do círculo restrito do SD voltado para a “Questão Judia” apontamos o SS  Brigadeführer Frans Six (1909-1975), talvez o mais influente de todos os funcionários do SD. Six adere ao NSDP em 1930, entrando para as SA em 1932, indo trabalhar diretamente no SD-Hauptamt, no setor de Jornalismo – era pós-graduado em jornalismo, lecionando na Friedrich-Wilhelm-Universität Berlin, trabalhando ativamente na “logística” da Solução Final, compondo, com os colegas acima, o dito “Eichmannreferat”.  Como membro do “Vorkommando Moscou” participou ativamente dos assassinatos do gueto de Smolenski, na URSS. No imediato pós-Guerra integrou-se a “Gehlen Organization”,  mas, mesmo  assim, acusado de crimes contra a Humanidade é condenado a 20 anos de prisão, em 1948, nos Nuremberg Einsatzgruppenprozess. Contudo, já em 1952 é posto em liberdade por intervenção direta do governo americano[12].

Já o autor direto, aquele que escreveu as primeiras “orientações” do  “plano de aula”, Kuno Schröder,  não temos informações claras depois de 1945, sendo citado, numa obra geral sobre as SS, como um “jovem dinâmico e dedicado” à Questão Judia[13].

O documento –  que objetivava ser um conjunto de  “orientações” para as SS, é decorrente de uma série de conferências de chefes de Divisões da SD realizada para “25-30” líderes, na sede do SD no Prinz-Albrecht Straβe, em Berlin, a partir de 6 de fevereiro de 1937  ( repetindo-se em 12 de março de 1937  devendo estar completas a proposta até 31 de setembro de 1937) – está depositado no Bundesarchiv, Abteilung Massenorganizationen ( na Finckensteinallee 63), sob a cifra, manual, de R 58/623, com as páginas numeradas de 42 até 63, sendo as paginas 62 e 63  um apenso, escrito em gótico cursivo com os pareceres de Wisliceny e do colega Schütt sobre a qualidade do material e a “pedagogia” a ser aplicada. O objetivo principal era a formação  do conjunto dos policiais da Divisão II/112 Judeus.

O documento é parte de um amplo acervo – o Fundo RSHA – depositado no Bundesarchiv/Lichterfelde/Berlim após os acordos de Reunificação Alemã, entre 1989 e 1991.  Haviam sido transferidos, em 1945, para Moscou, dados a riqueza de nomes e ações descritas nas fichas de milhares de militantes, informantes e simpatizantes do nazismo, e de lá para Berlim Oriental, na antiga República Democrática Alemã. Com a unificação os documentos vão para o prédio em que funcionava, entre 1873 e 1919, a Academia Militar alemã, extinta pelo Tratado de Versalhes, em 1919, passando ser uma escola depois dessa data. Em 1933 passa ser a sede do “Leibstandarte SS Adolf Hitler”. Em 1934 foi o local do assassinato de vários oponentes de Hitler durante a “Noite das Longas Facas”, em 1934.  Tomada pelas tropas aliadas em 1945, passando depois do ano de 1951, a abrigar o arquivo federal e para onde foram destinados os documentos tomados pelos soviéticos em 1945.

Todos estes, e mais alguns, foram muito corretamente denominados de “o Grupo de Eichmann”.

2.               O “Programa”:

Nas 11 páginas da “Disposition” do SD-Hauptamt sobre a “formação de policiais sobre a questão da Raça” tem-nos uma programação, num estilo comum de programas de disciplinas, estabelecendo os temas e a cronologia dos “estudos judaicos” necessários para a formação do público escolhido. Assim, já na página 69 do documento, as temáticas são claramente definidas em ordem cronológica:

  1. História dos judeus de 70 d.C., até 1933;
  2. A natureza (das Wesen) dos judeus;
  3. Livros Religiosos e as Leis Judaicas;
  4. O sionismo desde o começo (sic) até o presente;
  5. As organizações judaicas na Alemanha;
  6. A organização internacional dos judeus;
  7. As leis (anti)judaicas desde 1933.

Mais à frente, no apenso em gótico cursivo, surgem outras preocupações, notavelmente mais complexas que aquelas acima. Essas, muito possivelmente propostas por Kuno Schröder – de certa forma linear e bastante óbvias para a finalidade prevista, são fortalecidas ( em uma numeração falha ou completada por outro documento, no caso perdido) e claramente de autoria do SS Untersturmerführer Wisleceny, traduzindo seu pedantismo e uma formação universitária típica do “idealismo” vigente nas universidades alemães. Assim, Wisleceny propõe:

  1. A natureza ( das Wesen ) dos judeus em comparação com a natureza dos arianos.

Para este item propõe, de forma clara, o estudo do “Mein Kampf’, citando as páginas 329 e seguintes.  De certa forma traduzindo sua contrariedade com o caráter “escolar” do programa proposta, aponta a necessidade de uma temática introdutória sobre

  1. “A História dos Judeus como parasita ( “Parasit”) dos povos.

Nesse caso, o novo item do programa, que substituiria o Item 3 anterior ( “Livros Religiosos e as Leis Judaicas”), Wisleceny volta a propor o “Mein kampf” como fonte fundamental do “Programa”,  citando dessa vez as páginas 338 até 358 para caracterizar o  “parasitismo judaico”.

Assim, os Itens 1 e 3 do “Programa”, sobre a longa história dos judeus e seus Livros Sagrados, deveriam ser substituídos – aparentemente por sua obviedade – por dois outros itens que mais diretamente caracterizariam os judeus como “inimigos” não só do povo alemão, como também dos “povos” mundiais. Em seguida, introduz um complexo tema, como Item 2 do Programa:

  1. Considerações Racistas;
  2. Os judeus como força destrutivana vida dos povos desde a Antiguidade (Bíblia, Império Romano, a destruição do Templo);
  3. A infiltração do Judaísmo na Europa;
  4. O judeu por ocasião da Revolução Francesa( o “Aufklärung/Iluminismo”, a emancipação dos judeus);
  5. Os Rothschilds;
  6. Os judeus como dirigentes do Capitalismo e do Marxismo;
  7. A eficiência dos judeus durante a (Primeira) Guerra Mundial ( a formação do Lar Nacional judaico na Palestina);
  8. A Revolta judaica e [a natureza] da sua “sub-humanidade” ( “Untermenschentum”);

Aqui, no Item 11, voltamos a ter uma forte intervenção e uma chamada de atenção, sublinhando a forma na qual o item do “Programa” deveria ser redigido:

  1. Formas de aparência e meios de luta do judaísmo ( espiritual-terror-“objetivos” para outros povos, egoísmo para si. Imprensa; boicotes; maçonaria; marxismo; Protocolos);
  2. Os pontos centrais do judaísmo mundial (judaísmo religiosoortodoxo);
  3. O sionismo como força política no mundo;

Mais uma vez o SS  Untersturmerführer intervém, no Item 14, para reforçar uma temática que considera importante:

  1. Combate ao judaísmo desde sua mais antiga manifestação;

As reações de Schröder e Spengler face ás observações, de fundo críticas, de Wisleceny, traduzem irritação e uma clara disputada, não muito diferente daquelas que as universidades e outras instituições acadêmicas alemães viviam, então sobre a chamada “Questão Judaica”.  O debate sobre o Item 2 do “Programa”, já na página 62 do documento,  sobre a natureza – ou essência – do “ser judeu”, acrescido por Wisleceny de “…em comparação com a natureza dos arianos”, merece uma resposta irritadiça por parte dos autores: além da advertência de serem  os itens  somente “Indicação Preliminar” destacam especificamente este Item 2. Assim, afirmam que “a aula 2 pode ser ampliada  com diversos exemplos sobre a descendência racial dos judeus”.  Em seguida afirmam que a questão possui “pouco material do ponto de vista cientifico” e que só poderia ser remetido “após pesquisa da literatura especifica”.  Recepcionam a proposta de Wisleceny de comparar com a “natureza ariana”, propondo a utilização de diversos discursos e trechos literários de autores Dubnow ( de Simon Dubnow, 1860-1941, historiador); Graetz (Heinrich Graetz, 1817-1891, historiador); Buber (Martin Buber, 1878-1965, filósofo); Rathenau ( Walter Rathenau, 1867-1922, industrial e político); d´Israeli ( Benjamin Disraeli, 1804-1881, líder conservador e primeiro-ministro da Grã-Bretanha)… sem, contudo citar os Rothchilds.

O clima de intriga e querelas, muitas vezes em clara disputa de “erudição” em “assuntos judaicos”, o que representava ascensão na carreira e melhores condições de galgar as posições de liderança no interior do SD. As “ausências” assinaladas, de forma crítica, por Wisleceny são respondidas de forma direta, como decorrentes da “falta de tempo […] não é possível manda-los escrupulosamente”.

Por fim, os autores originais deixam claro, já na página 60 do documento, que precisavam, queriam em verdade, potencializar a “Divisão IV/112”, o que representava aumento de poder no interior do SD: “…caso deseje mais aulas sobre o posicionamento do cristianismo e do judaísmo  e o desenvolvimento do antissemitismo, podem ser remetidas desde que nos dê tempo e pessoal para estes trabalhos especiais”.

3. O “judeu” como objeto de aula:

Desde sua primeira página ( número 42) o documento do SD-Hauptamt seus autores estabelecem, com nitidez, o seu objetivo: “O Judaísmo como adversário mundial do Nacional-Socialismo”. Tendo isto em vista, fazem uma clara observação de tipo “militar”: para combater o adversário é preciso conhecer suas particularidades do “ponto de vista do NS”.  A naturalização da oposição judeu-ariano, um fato nem sempre claro para um país onde a presença judaica era, então, já multissecular. Assim, desde logo, a tarefa imediata é diferenciar a “condição” judaica e a natureza diferenciada dos arianos.

O documento aponta a existência, em 1933, de 16.5 milhões de judeus no mundo ( o Anuário Judaico Norte-Americano apontava, em 1933, cerca de 15.5 milhões de judeus), sendo que 6.5 milhões nos Estados Unidos; 2.3 milhões na “Rússia Europeia”; 6.8 milhões nos demais países europeus e 0.9 milhão nos demais continentes ( enquanto o Anuário Judaico fala, na sua edição de 1933, 5.5 milhões na Polônia e União Soviética)[14]. O documento afirma existir, ainda, em 1937  cerca de 390 mil judeus identificados na Alemanha, sendo que desde 1933 outros 105 mil já haviam emigrado. O Anuário Judaico, no entanto, fala em cerca de 500 mil judeus alemães. A maior concentração vivia nas grandes cidades como Berlim, com 160 mil judeus, Frankfurt com 26 mil e Hamburgo com  17 mil cidadãos de religião judaica ( na verdade era identificado pelos avós, conforme a nova legislação nazista)[15].

De qualquer forma, além do número discutível de judeus na Alemanha em 1933, nunca foram mais de 1% da população alemã, então em torno de 67 milhões de pessoas. A própria compreensão destes números obrigava os autores do documento a duas análises complementares para comprovar o “perigo” judaico. De um lado, argumentava-se, já na página 42, sobre a desproporcional concentração de judeus em alguns setores da vida alemã, redundando num “Pensamento Orientador” a ser implementado em todo o país: “…Repressão da influencia judaica na Alemanha – restrições da possibilidade de existência”. Em  seguida são descritos os setores onde a desproporcionalidade fosse evidente na Alemanha, tais como “na vida política… no comércio e nas áreas artísticas”. O documento sugere ainda que sejamT apresentadas estatísticas da “…influencia judaica por grupos específicos… e a atividade arianas e judaicas”.  Por outro lado, mesmo sendo 1% da população total da Alemanha – estatística não apresentada pelos planos de aulas – a presença dos judeus seria perniciosa por si mesma dada sua natureza “destrutiva”.  O documento considera que “a invasão judaica na vida íntima popular de uma nação demonstra um efeito negativo”. Junta-se a isso a natureza “biológica” do judeu, considerado como “…em sua totalidade [é] um bastardo”. Neste sentido, e a novidade do antissemitismo nazista, os judeus seriam, conforme a página 47, biologicamente uma raça diferente, o que seria provado por pesquisas cientificas de conhecidos cientistas “higienistas”, tendo  uma origem mestiça, misturando “egípcios, babilônios, assírios, filisteus, cananeus,  moabita e, mais tarde também, kasares”[16].

4. A luta contra os judeus:

Coube a “Divisão V/112 Judeus” do SD-Hauptamt a construção de uma tese de combate ao “judaísmo” que anuncia claramente o que atualmente chamaríamos de “pós-verdade”. Para justificar a culpabilização dos judeus e seu caráter destrutivo como um problema mundial, os “intelectuais” da “Divisão”, em especial Six, utilizando-se do “Mein Kampf” como fonte, afirma o caráter “mundial” e “dissimulado” do judeu ( “Judentum”) que dominaria as grandes potencias: a União Soviética, através do bolchevismo; a Grã-Bretanha, através da infiltração na elite dirigente do país e nos Estados Unidos, através do controle das grandes finanças. Este era um tema comum dos fascismos. Mesmo Benito Mussolini já havia falado e criticado a improvável divisão do mundo entre a “Roma Negra”, o catolicismo, e a “Roma Negra”, o bolchevismo em Moscou. A lógica da argumentação – reunindo notórios rivais entre 1933 e 1941 como a Grã-Bretanha e a URSS, além, claro, dos Estados Unidos, não precisava ser comprovada. Bastava afirmar a sagacidade, o egoísmo e a dissimulação dos judeus. O aparente paradoxo da afirmação acima era explicada, já na páginas 47/48, pelo natureza do “Volkstum” ( a essência do povo) judeu: “…um povo diversificado que nem sempre precisa ser unificado. Ao contrário , pode-se  concluir que, durante os séculos, os judeus sempre tentaram assimilar seu “Volkstum” aos povos hospedeiros”.

[1] Ver para análise da “Kristallnacht”: Browning, Christopher . Collected memories: Holocaust history and postwar testimony. In: Mosse, Mosse Series in Modern European Cultural and Intellectual History, Madison,  University of Wisconsin Press, 2003,

[2]Mommsen, Hans. “Auschwitz, 17. Juli 1942”. In: Frei, Norbert e Henke, Klaus. Der Weg zur europäischen „Endlösung der Judenfrage“. In:  München, DTV, 2002.

[3] Martin Broszat:  “ Kommissarbefehl und Massenexekutionen sowjetischer Kriegsgefangener”. In: Anatomie des SS–Staates. Band 2. Org. Hans Buchheim, Broszat, Hans-Adolf JacobsenHelmut Krausnick. Freiburg 1965, S. 163–283 – e ainda  Dtv, München 2005. Para o texto original completo ver: https://de.wikisource.org/wiki/Kommissarbefehl.

[4]Mommsen, Hans. Op. Cit., pp. 113/150.

[5] Goldmann, Guido. Holokaust, Hamburgo, Goldmann, 2001.

[6] Poulantzas, Nicos. Ditadura e Fascismo. Lisboa, Editorial Estampa, 1970.

[7] Richard OveryInterrogations: The Nazi Elite in Allied Hands 1945 Allen Lane, The Penguin Press, London 2001

[8] Höhne, Heinz; Zolling, Hermann (1972). The General Was a Spy: The Truth about General Gehlen and his spy ring. Nova York: Coward, McCann & Geoghegan.

[9] Joseph Verbovszky: Leopold von Mildenstein and the Jewish Question. Case Western Reserve University, Cleveland/Ohio 2013,

[10] Ver: Michael WildtGeneration des Unbedingten. Das Führungskorps des Reichssicherheitshauptamtes, Hamburg, HIS Verlag, 2002.

 

[11] Para a atuação das autoridades norte-americanas no alistamento de nazistas para a CIA ver: Boghardt. Thomas. America’s Secret Vanguard: US Army Intelligence Operations in Germany, 1944–47. In: CIA Files: https://www.cia.gov/library/center-for-the-study-of-intelligence/csi-publications/csi-studies/studies/vol-57-no-2/pdfs/Boghardt-Secret%20Vanguard.pdf, consultado em 21/11/2016.

[12] Hachmeister, Lutz Der Gegnerforscher. Die Karriere des SS-Führers Franz Alfred Six, Munique, 1998

[13] Weale, Adrian. The SS: a new history. Londres, Abacus Ed., 2011.

[14] Ver em: https://www.ushmm.org/wlc/ptbr/media_nm.php?ModuleId=0&MediaId=270, consultado em 21/11/2016.

[15] Ver em: https://www.ushmm.org/outreach/ptbr/article.php?ModuleId=10007687.

[16] Ver Black, Edwin. A Guerra Contra os Fracos. São Paulo, Editora Girafa, 2003, em especial p. 449 e ss.

Imperialismo, Etnocentrismo e Arabicidade perante a questão do Islã Militante

“Senhor, alivia-me o peito, pediu Moisés,

E facilita minha tarefa,

E desata um nó em minha língua

Para que todos me compreendam…”

(Moisés, citado no Santo Corão, Surata XX, Taha, Versículos 25-28).

Em meados do século XIX, a partir de uma literatura de viagem (mais tarde reforçada por uma antropologia colonial) saturada de evolucionismo e etnocentrismo, emerge uma, então, “nova” visão dos povos africanos, asiáticos, polinésios e australianos baseada nos princípios ditos “científicos” em ascensão na Europa.

Juntar-se-ia a uma já vasta coleção de textos e considerações, desde os primeiros momentos do “contato” que formaria uma coleção infindável de característica física e cultural, de ritos e costumes considerados bizarros e mesmo escatológicos sobre os povos “primitivos”.  Na sua grande maioria, buscavam, via comparação, comprovar a superioridade do homem ocidental, de sua cultura – incluindo aí sua religião, forma de governo (quando existentes-visíveis), economia e seus costumes e hábitos – e, claro, sua “raça” em relação aos demais povos. Com sua típica obsessão “cientifica” em catalogar e “tipificar” , exploradores, médicos, antropólogos, botânicos, zoólogos ou simples aventureiros (além, claro, de missionários) escreveram e publicaram imensos “catálogos das diferenças” que deveriam comprovar a originalidade de um “nós” europeu – branco, cristão e civilizado – e um “eles” – bárbaro, ou mesmo selvagem, com todos os caracteres daí decorrentes.  Algumas vezes, “selvagens” foram levados para Europa e exibidos em feiras e “mostras cientificas”, lado a lado, com animais e artefatos, para grande divertimento e espanto das novas classes médias ilustradas europeias, formando-se verdadeiros “zoológicos humanos”. “Aldeias” inteiras foram recriadas em Paris, Londres e Bruxelas para que a população europeia pudesse observar como viviam os selvagens, como no caso de jovens javanesas durante a Exposição Universal de Paris de 1889 ou hotentotes e boxímanos levados para Londres. Algumas vezes, como no caso do famoso “cowboy” Coronel William Frederick Cody, autodenominado “Buffalo Bill”, viajou com seu circo “Wild West Show” pela Grã-Bretanha, França, Alemanha e Espanha, em 1887, levando “peles vermelhas” autênticos, que participavam de espetáculos de roubos, cavalgadas, ataques e lutas contra diligencias e comboio de homens brancos na simulação de sua “civilizada” marcha para o Oeste americano[1].

Jovens Javanesas expostas durante a Exposição Universal de Paris, 1889. In: http://www.museudeimagens.com.br/zoologicos-humanos/.

A literatura de viagem, seja a pretensamente cientifica, seja a meramente “aventuresca”, e mesmo aquela nascida “nos trópicos”, algumas vezes com valor estético indiscutível – como em Joseph Conrad (1857-1924) ou Rudyard Kipling (1865-1936) – forneceram os elementos chaves para a construção desta díade “nós” / “eles” que permitiria o avanço, sem culpa, dos Imperialismos europeus (ou norte-atlânticos em geral, considerando os Estados Unidos, a partir da Guerra Hispano-Americana de 1898) e imposição de um modo de vida – capitalismo, cristianismo, família ocidental, direito positivo, propriedade privada, etc… –  que redundariam numa profunda desordem das formas “não-ocidentais” de organização da vida comum. Tratava-se de ver no “Ocidente”, contraposto a um “Oriente”, a única racionalidade possível na organização da vida e das instituições. Tal “contato” entre civilizações, ora brutal, conquistador e mesmo aniquilador, como na Argélia, Madagascar, Havaí ou Sudão, ora insidioso e desorganizador, como na Índia e Egito e, por vezes, informal e distante, mas capaz de impor sua vontade, como no Irã (antiga Pérsia) ou Tailândia (antigo reino do Sião) exerceu uma pressão suficiente para desorganizar as formas anteriores de reprodução social e criação simbólica e, ao mesmo tempo, impor formas e redirecionar outras, antigas e tradicionais, em função dos interesses do processo de enriquecimento das economias metropolitanas[2]. A violência e iniquidade das Guerras do Ópio (1839-1842 e 1856-1860) são, talvez, o exemplo mais visível, mas de forma alguma único, do brutal “contato” entre civilizações na Época dos Imperialismos.

A constituição, na Europa e América do Norte, de disciplinas “científicas” no século XIX – como a medicina, o higienismo, a antropologia e a sociologia e a psicologia, quase sempre com forte cunho de darwinismo social – viriam a dar suporte a estas “diferenças” básicas entre Ocidente/Oriente, valorizando a superioridade ocidental.

Tais colonialismos do século XIX entendiam, ora uma incapacidade inata dos povos genericamente ditos “de cor” ou “coloniais” em “evoluir” em direção ao “estado civilizado” europeu, possibilitando a sua pura e simples aniquilação – como no caso do genocídio dos hereros da Namíbia alemã entre 1904 e 1907 – ora, entendiam que tal “evolução” só se daria muito lentamente ao longo da adoção de instituições europeias por parte dos “nativos” – como na Índia. Em ambos os casos a presença colonial era, por isso mesmo, necessária, benéfica e justificada. Assim, a impunha-se a ideologia do chamado “The White Men´s Burden” (“o fardo do homem branco”), ou seja, o colonialismo e o seu “fardo” – a obrigação de viver nos trópicos tolerando seu calor e incômodos, longe de seus rincões verdejantes na Inglaterra ou na França – como escreve Rudyard Kipling incentivando os Estados Unidos durante a Guerra Hispano-americana (1899-1902) a tomar para si “o fardo de civilizar” as Filipinas[3].

Em alguns casos, como na China e no Mundo Árabe, era bem mais difícil justificar a ocupação e a presença colonial, posto que tais culturas já tivessem sido focos de brilhantes civilizações no passado, atestados na arquitetura e na literatura. Nestes casos, uma longa história de “decadência” e de “degeneração” se impunha como narrativa explicativa para uma civilização antiga, como a árabe, que tinha sido tão poderosa a ponto de ameaçar o Ocidente cristão, e que então, no século XIX, encontrava-se prostrada sob a tutela nominal do Sultão-Califa da Turquia Otomano.

A proximidade do mundo muçulmano em face da Europa e a precocidade da expansão europeia em direção ao Oriente (corretamente dito) Próximo produziu, desde meados do século XIX uma vasta literatura sobre a “inferioridade” dos árabes. A França, que iniciara a ocupação do Norte da África, pela Argélia desde os anos de 1830, deu a partida no processo de justificativa “científica” do colonialismo via a inferiorização do povo árabe.

Viajantes, diplomatas, comerciantes e mercenários que viveram em cidades muçulmanas e prestaram serviços às autoridades muçulmanas – árabes, turcas ou berberes do norte da África – criaram, desde os anos de 1830-1850, uma vasta literatura sobre o exotismo do mundo muçulmano, disputando entre si, via narrativas cada vez mais escabrosas, um público europeu ávido por folhetins escandalosos, numa época em que a imprensa vinha se tornando cada vez mais popular. Assim, narrativas sobre estranhos hábitos, em especial uma sexualidade lúgubre e uma devassidão generalizada, invadem a Europa a partir de 1850, quando médicos e “higienistas” franceses acompanham as tropas e os colonos que vão se estabelecer em Argel.

Na década de 1930, culmina na emergência de uma “escola” de psiquiatria francesa, dirigida pelo médico Antoine Parot (1876-1965), voltada para o estudo da “inferioridade mental dos povos árabes” do Norte da África, comprovando-se de “forma cientifica” sua incapacidade para o autogoverno. Defendia-se a tese de um inato “primitivismo” mental dos povos árabes -, o que provocará um forte, e decisivo, impacto no jovem médico Frantz Fanon e sua consequente ação modernizadora e emancipadora no hospital psiquiátrico de Bilda-Joinville, na Argélia [4].

Esta narrativa “primitivista”, muitas vezes expressa sob a forma de “infantilismo polar” do árabe, que oscilava entre a idiotia e a perversão do nativo, irá povoar os romances, os folhetins baratos e em seguida os filmes de aventura dos grandes estúdios cinematográficos, conformando as mentes de milhões de pessoas no Ocidente sobre a “natureza” do árabe  e resumindo-se em tudo que poderiam saber sobre o “Oriente” [5].

A história, e visão dos árabes, desde então, passou a ser uma espécie de negativo da vida pretensamente regrada e civilizada do europeu, emergindo daí uma clara dicotomia entre Ocidente/Oriente numa díade positivo/negativo sempre desfavorável à emancipação e a independência dos países coloniais, que deveriam, por razões cientificas, ficar sob controle colonial[6]. Ainda no auge dos Impérios coloniais – apenas a Alemanha havia sido despojada do seu em Versalhes em 1918-19 – Hollywood estreia o modelar “O Ladrão de Bagdá” (The Thief of Bagdad, 1924), dirigido por Raoul Walsh (1887-1980), apresentando ao grande público – o imenso público de cinema de então – os diversos pastiches do “Oriente”, seus encantamentos – tapetes voadores, lâmpadas mágicas, gênios, cavernas dotas de vontade e, claro, uma população de ladrões, vagabundos, mentirosos – e suas figuras arquetípicas, normalmente os políticos – califas, “vizires”, chefes de guarda sádicos e princesas, comerciantes sórdidos, mentirosos e aproveitadores com os quais qualquer negócio é duvidosos. O filme de Walsh, com a colaboração inestimável de construção corporal de personagem de Douglas Fairbanks (1883-1939), criaria – e trata-se a bem da verdade de uma “invenção” na história – de uma Bagdá mítica, sensual, perigosa e encantada onde princípios éticos “fundamentalistas” convivem com a traição, a magia, a pobreza e a honra com a humilhação. O caminho aberto por Walsh/Fairbanks fará história, pautando com seu filme – sem dúvida a obra mais coreográfica e cinematográfica até então realizada – a visão do público ocidental sobre este “Oriente” mostrado por esta Bagdá de papelão e gesso colorido[7].

O cinema do século XX, talvez bem mais que a literatura do século XIX, foi o responsável pela popularização dos traços centrais da “explicação da degenerescência” que a civilização árabe tenha sofrido e, por esta via, explicar-se-ia sua decadência. Ao seu lado  dá-se a invenção, por comparação ao legionário europeu, o colonizador, o lanceiro de Bengala, e demais tipos, um “contra-tipo” árabe infantilizado, lascivo, mentiroso e cruel.

Poucas vezes o cinema ocidental buscou uma representação digna do mundo árabe. Talvez a única exceção – e assim mesmo para valorizar um personagem europeu por “entender” os nativos – tenha sido no grandioso filme de David Lean (1908-1991), “Lawrence da Arábia”, de 1963, onde as intrigas e os interesses colonialistas britânicos, o racismo explícito dos oficiais, ficam nitidamente desmascarados, evidenciando o caráter pérfido da política europeia em relação aos povos coloniais do Oriente Médio. Mas, de qualquer forma, os árabes, mesmo quando lutam – em “Lawrence da Arábia” são aliados -, não possuem objetivos ou regras, se comportam como salteadores e ladrões, sem quaisquer relações com a honra e a disciplina militares, observadas por Lawrence com certa tristeza. Muitas  o oficial britânico mostra-se perplexo pela ausência honra militar de seus protegidos, exceto na mais alta nobreza dos hachemitas.

Assim, da literatura do século XIX, com Rudyard Kipling (1865-1936) com sua genialidade etnocêntrica e culturalista, até a massificação fílmica do século XX, o mundo colonial, e em especial árabe, surgiu sob um conjunto simples e facilmente identificável de traços culturais apontando para a ignorância, infantilização, fanatismo, pobreza, credulidade e sensualidade.

Com Frantz Fanon a “infantilização” assumiria condição de conceito  psicanalítico – incluindo aí traços de perversidade, vaidade e indisciplina –  elementos constantes na construção do “outro” árabe em face de um “europeu” adulto, racional, sensato e responsável. Assim, essa “infantilização do homem árabe”, seja o “idiota” fanfarão, sexomaníaco, fanático, seja o fanático e perverso, é incapacitado e distanciado dos valores “universais” de um “Ocidente” adulto e racional, e portanto claramente considerado incapaz[8]. Tal “infantilização” é bastante evidente, por exemplo, no clássico, hollywoodiano, “Gunga Din”, de 1939, dirigido por George Stevens (1904-1975), a partir de um poema de Rudyard Kipling, onde um jovem nativo – o personagem título Gunga Din – de idade incerta, infantilizado como um “scort” da tropa – , sonha em ser “um soldado da Rainha (Vitória)” e só vê sua realização como indivíduo, enquanto pessoa, no Outro absoluto, no colonialista que ocupa e saqueia o seu próprio país – literalmente – o seu próprio povo. Nesse espelho perverso,  o exército colonial britânico é a única realização possível de Gunga Din enquanto persona. O poema de Kipling, neste caso, encaixa a perfeição, no processo descrito por Frantz Fanon de “interiorização do colonialismo” na realização do Eu exclusivamente enquanto projeção do colonizado no colonizador. Neste sentido o filme de Stevens, mais uma vez com a participação primorosa de Douglas Fairbanks, é uma obra-prima da aniquilação do Eu como um processo fundamental do fenômeno colonial e da negação dos aspectos mais brutais do Imperialismo[9].

Outra forma de tratar o “Oriente”, era ignorá-lo: houve um tempo do silêncio; o tempo das independências dos países árabes, em especial entre os anos de 1950 e 1970, quando praticamente as grandes aventuras do cinema se deslocaram da região. Com a guerra de independência da Argélia e o nasserismo campeando no Egito, e o pan-arabismo por quase todo O Oriente Médio, foi difícil manter a visão de credulidade e ignorância ingênua apostas ao homem árabe. Algumas produções, poucas em verdade, na maioria das vezes em circuitos alternativos, deram uma visão alternativa, dura da luta pela libertação do colonialismo. É desta época, 1966, o incrivelmente tenso filme de Gillo Pontecorvo (1919-2006) “A Batalha de Argel”. Agora, o árabe, no caso o argelino, organizado e combatente, surge com uma imensa capacidade política, engenhosidade, sangue frio e sentido de coletividade. O traço de violência desloca-se do perverso, infantil e fanático, para a luta coletiva pela liberdade e o cálculo político, abrindo um debate que envolveria os grandes nomes da filosofia e da política contemporânea, como Jean-Paul Sartre, Merleau-Ponty, Marcel Camus e o próprio Frantz Fanon sobre a mística do Terrorismo e que irá, em pouco desembocar, via a emergência do movimento negro antilhano, nos “Panteras Negras” nos Estados Unidos[10].

Mais tarde, por um curto espaço de tempo – a ilusão duraria pouco – os mujahidins, os chamados combatentes da liberdade pelo então presidente Ronald Reagan (1981-1989), foram chamadas às telas para ilustrar o “valor” combatente muçulmano. Eram tempos da “Segunda Guerra Fria” (1979-1991), quando o Presidente Reagan valia-se do fundamentalismo islâmico para combater o “Império do Mal” no Afeganistão – referência à invasão do país pelos soviéticos em 1979.  Talvez, os mujahidins ou “combatentes da liberdade” afegãos fossem um tanto bárbaros e fanáticos na sua luta contra os soviéticos, mas ciosos da sua liberdade e da sua filiação ao lado do “Ocidente”, como no fanfarão filme Rambo III (direção de Peter MacDonald, 1988), traz para o grande público ocidental uma mensagem positiva de um guerreiro muçulmano antissoviético, bastante adequado para a propaganda americana. Mais uma vez trata-se de um indivíduo indisciplinado, reunido em pequenos grupos, que não luta num exército disciplinado e não obedece a regras, mas usa sua ferocidade na defesa da terra e da sua fé, perverso na luta, limitado e preconceituoso. Só que agora não importava, posto que matasse comunistas.

Tal ilusão duraria pouco. Logo após 11 de setembro de 2001, ou mesmo antes, quando de ataques muçulmanos a alvos americanos como o desastre de uma missão na Somália em 1993 – origem de “O Falcão Negro em Perigo”, de Ridley Scott, em 2002 – ou os ataques contra as embaixadas no Quênia e Uganda em 1998, o muçulmano, e em especial o árabe, passa a ser visto como o substituto ideal para o “soviético” impiedoso das franquias cinematográficas e series televisivas do tempo da Guerra Fria[11].

A partir deste momento, a fala árabe – e de outras culturas – tornou-se, para o Ocidente, a fala do radicalismo islâmico. A publicação, primeiro como artigo e depois como livro, de “Choque de Civilizações”, de Samuel Huntington, em 1996 (o artigo é publicado na revista “Foreign Affairs”, em 1993) veio aprofundar ainda mais a díade Ocidente/Oriente como construções identitárias opostas e retroalimentadas.

Mesmo que bons intelectuais na Europa, em especial em países com forte presença muçulmana, como França, Inglaterra e Alemanha, tenham ainda por um tempo, apostado no multiculturalismo, à chegada ao poder de partidos mais “nacionais” ou a conversão de antigos partidos universalistas a uma posição mais “nacional”, em especial frente à maré conservadora e xenófoba em ascensão (em especial na Inglaterra, França e Alemanha, com o “Front Nationale”, a “Alternatif für Deustschland”, o fenômeno do “Brexit”, etc…), o fosso entre uma visão do “nós” e o “eles” aprofundou-se e espraiou-se por amplas camadas populares.

A expansão e intensificação dos atentados terroristas do ISIS/Daesh, entre 2016/2018, só veio ampliar tal fosso e construir uma imensa “zona cinza” de relacionamentos mutuamente povoado de incompreensão, desconfiança, raiva e preconceito entre cidadãos de origens árabes e europeus. Esta “zona cinza” é ainda mais perigosa posto ser mais concreta, real, nas relações diárias entre as camadas sociais mais populares (e atingidas pela crise econômica e o desemprego decorrentes da Crise de 2008) que colocam face a face camadas médias de brancos europeus e europeus de origens árabes, turcos e demais procedências muçulmanas. Assim, nestes grupos, no dia-a-dia a possibilidade da emergência do desafeto é crescente e o preconceito se enraíza.

Ante a desconfiança e o preconceito os grupos de “beurs”, turcos, “blacks” e outros tendem a se refugiar em suas identidades originais, muitas vezes reconstruídas e imaginadas. Jovens, filhos da imigração, passam a usar véus ou a jalaba e muitos se convertem a formas mais integristas do Islã, buscando uma comunidade imaginária onde se sintam parte integral de algum passado e encontrem uma solidariedade e uma história que de sentido a toda uma vida marginalizada. Normalmente, e eis que aqui a “fuga” para uma identidade reconstruída emerge como um novo problema, tal reconversão se dá em direção a um Islã que não consegue conviver com uma sociedade envolvente laica, consumista e permissiva.

Abrem-se as portas para grandes e trágicas possibilidades de choque. Principalmente porque o Islã integrista não reconhece um elemento central da construção das modernas sociedades ocidentais: a distinção das esferas do agir público e das escolhas da vida privada.

É aí, na profunda interconexão, ou mesmo indistinção, entre agir público e vida privada, no caráter exteriorizado, quase “codificado” do Islã – o que explica a relevância da adoção da “Charia” [12]-, que surgem as diferenças culturais mais valorizadas por proeminentes representantes, radicalizados, do “contato” ou “choque” entre Oriente/Ocidente. Um ponto polêmico, e sempre explorado, reside na certeza do integrismo muçulmano – e de todo fundamentalismo –  de que não é possível a salvação da alma individual com descompromisso com as condições materiais e do agir público do próprio fiel, com sua vida cotidiana e sua relação com a sociedade envolvente, com o todo. Um só ato “haram”, pecaminoso, um ilícito, ou um indivíduo que insiste neste ilícito, pode prejudicar toda a comunidade. A escolha individual, a prática religiosa própria e adequada de cada um, não é para tais rigoristas o suficiente: toda a comunidade, a “ummah”, deve ser igualmente “temente” e isenta da presença do ilícito – o que explica a insistência em converter todos em sua volta[13].

A própria presença da noção de “haram”, podendo ser traduzido para além de pecado por “lícito”, evidencia a íntima relação entre o Direito, incluindo o Direito Público e Constitucional, e a religião no mundo arabo-muçulmano. Aqui reside uma das incompreensões básicas na percepção do Ocidente sobre o Islã, muitas vezes esquecendo-se do papel do Direito Canônico, da primazia do papel da religião nas sociedades de Antigo Regime no Ocidente e mesmo nos países coloniais – o padroado, no Brasil, por exemplo, ao menos até o século XVII e as soluções encontradas nos chamados Tratados de Vestefália de 1648.

O Islã, ao contrário, indistingue a esfera pública e a esfera privada na sociedade, buscando no agir político uma integralidade evidente com a fé, a partir do que se define o licito (“halal”) e o ilícito (“haram”). Assim, um poder político que permita o “deboche” – uma referência aos costumes e formas de comportamento públicos considerados excessivos ou imorais, como no Ocidente -, os vícios e o relaxamento dos costumes – muito especialmente em relação à família heteronormativa, no mais das vezes patriarcal e autoritária  – não poderia, nunca, ser um regime considerado justo e temeroso à Deus pelos islâmicos[14]. A principal fonte do debate não reside, por exemplo, na origem ou no caráter democrático de um regime político, mas no fato de ser, ou não, temente à Deus. Para os rigoristas o principal mérito de um Estado é ser pio, submetido à vontade Divina e seguidor das regras estabelecidas conforme o Corão e a Charia e os Hadidts. Evidentemente, eleições diretas – como no Irã e recentemente no Egito e Tunísia, são plenamente aceitáveis, dentre condições que não permitam colocar em risco ou renegar a fé do Profeta, impondo-se, desta forma, um controle superior, religioso, à expressão da vontade popular.

A ideia, de origem europeia, racionalista e iluminista, consolidada no Ocidente do século XVIII, de separação entre a esfera da vida pública, onde vigem critérios laicos, e a vida privada, de livre escolha do indivíduo e de não intervenção do Estado, por exemplo, na educação dos filhos ou na gestão doméstica – no âmbito esfera privada está a casa, a família, a religião – não seria, para estes setores rigoristas do Islã, aceitável[15]. Eis aí as bases de um forte debate. Mas, note bene, um debate interno ao Islã, onde correntes ditas “moderadas”, “progressistas”, que muitos denominam – conforme a imprensa egípcia incialmente o fez nos anos de 1930 – de “Islã das Luzes”, colocam-se claramente contrários à imposição estatal da fé e dos costumes daí derivados, através do código legal-religioso da Charia. A imposição da Lei Islâmica, na forma da Charia, tornou-se, contudo, o imperativo básico dos movimentos rigoristas, desde os Talibãs, até a Al-Qaeda, passando por entidades como o Boko Haram, na Nigéria, e o autodenominado “Califado Islâmico”, na Síria-Iraque.

Desde o século XIX, no entanto, primeiramente no Império Otomano, depois na Pérsia e no Egito, surgiram movimentos favoráveis à adoção de uma legislação civil, não religiosa, abrindo um amplo debate nas sociedades muçulmanas contemporâneas. Particularmente no âmbito do Direito Constitucional, onde estão as regras que vigoram na relação do Estado com a cidadania, e no âmbito do Direito Civil referente à família, dá-se um forte embate entre as correntes religiosas mais rigoristas e o Islã modernizante. Tal debate, desde os anos de 1920, levou, também, a emergência de forma reativa de entidades rigoristas, contrárias à superação da Tradição, passando uma boa parte da intelectualidade (e da população) a rejeição de qualquer tipo de “modernização” ou “inovação”, considerando tais “importações”, identificadas com o poder colonial imperialista e a intervenção estrangeira, como “bid´ah” (“inovação” indevida), e, portanto, ilícito, “haram”[16]. Não há, entretanto, de forma alguma, uma visão única, homogênea, neste debate e nem mesmo os rigoristas são unificados sob uma única corrente de opinião ou mesmo majoritários.

No Ocidente a emergência da diferenciação entre público e privado foi, exatamente, uma resposta às terríveis guerras de religião que sacudiram a Europa entre 1517 (Proclamação das Teses de Lutero) até o século XVII. A resposta de intelectuais e políticos (muito especialmente depois dos Tratados de Vestefália, de 1648) foi deixar para esfera das escolhas privadas a questão religiosa, mantendo-se uma noção superior à pertença religiosa: primeiro de “leal” súdito e, com advento das Repúblicas, de “cidadão”. Contudo, mesmo nos dias de hoje, setores influentes nos Estados Unidos e na Europa – e agora no Brasil – exigem uma postura regressista do Estado sobre casamento, aborto, união civil de gays, condição feminina, etc.. o que viola a clássica noção de um Estado laico, acima é indiferente às escolhas religiosas de seus cidadãos e sua incidência na vida particular de cada um. Assim, muitos rigoristas, na confluência com os fundamentalismos, defendem que seja regulada e imposta pelo Estado normas e costumes ao conjunto dos cidadãos, mesmo aos não religiosos ou aqueles com entendimento religioso diverso, impedindo a livre escolha dos indivíduos. Na verdade, em vários países ocidentais e em jovens nações africanas de dominância evangélica (e onde agem missionários ocidentais) a liberdade de escolha sobre família, costumes e gênero é fortemente combatida[17].

O Islã, para os clérigos mais conservadores e integristas, em face dos graves vícios e danos da vida moderna (mais uma vez a ênfase recai na família arcaica normativa ) duvida da resposta gerada no Ocidente e na sua capacidade de forjar pessoas íntegras e felizes, apontando para a disseminação do uso de drogas, o sexo pré-marital e de doenças como o sintoma de uma crise terminal. Muito especialmente o divórcio e o adultério, ao lado da homossexualidade, são vistos como fontes da infelicidade e de ofensa à “ummah” – o conjunto dos fiéis, além de imperdoável “deboche” nos costumes. Neste sentido para estes segmentos religiosos o Islã tornou-se uma forma de ação política, já que define tarefas para o Estado, remetendo a uma antiga polêmica sobre a natureza da primeira comunidade de fiéis em Medina após a vitória do Profeta sobre os idólatras de Meca.

Já naquele momento, em 630, colocava-se a questão da união, na pessoa do Profeta, do poder político – comandando do Exército, Juiz, distribuidor de ajudas e do butim de guerra – com a figura do “pregador enviado por Deus”. A questão, colocada pelo teólogo Ali Abdemaziq, em 1925, sobre a natureza da comunidade de Medina e o papel do Profeta – voltando-se para uma passagem do Antigo Testamento, aceita e incorporada pelo Corão onde se afirma: “… os Profetas são eleitos de Deus, poucos reis o são” – implicava em abrir em brecha a unicidade do poder espiritual e secular no Islã (e assim na própria natureza do califado), prometendo, por esta via, uma ampla reforma do Islã. Este compreendido como a soma do Corão, da Charia e dos Hadiths, mas afirmando que enquanto o Corão é “dinâmico”, a Charia e os Hadiths, logo a Tradição ou “Suna”, são históricos. Como obras históricas são interpretáveis, ao contrário da dinâmica de um Corão “incriado”, eterno e divino. Textos históricos, são obras de um grande número de homens que viveram nos três séculos após a morte do Profeta, são, portanto reformáveis e passíveis de interpretação. Aqui residiria a chave da “Grande Discórdia” – a chamada “Fitna Kubra” [18]-, aberta pelas reformas na Turquia Otomana, na Pérsia e na emergência do “Islã das Luzes” no Egito e Síria, contra os quais se ergueriam a autoridade dos “antigos”, os “Predecessores das primeiras gerações” de seguidores do Profeta, os denominados “salafi” ou salafitas, os antigos[19]. E em primeiro lugar os “antigos” da Arábia Saudita, recém-fundada, onde a família Saud – para garantir seu trono contra a família Hachemita de Meca – alia-se estreitamente ao “salafismo” de tipo “wahabita” ultra ortodoxo, mas voltado para o cumprimento da Charia do que para uma interpretação solidária e generosa do Divino Corão – é opção pela conservação em face da caridade. Uma versão “teocrática” da “ummah” de Medina, desde 630, é atualizada, tornando a história do Islã “presentificada”, imóvel e inspirada num conjunto de obras que são, indevidamente, ditas como “reveladas”: o Corão, a Charia e os Hadiths, com ênfase nos dois últimos corpos de leis (a “Fiqh”) – o que os teólogos “das Luzes” do Islã não poderiam aceitar.

O Corão jamais poderia estar em igualdade com a Charia e os Hadidts.

Para estes “antigos”, desde os primeiros tempos da expansão muçulmana, a política num país convertido é islâmica ou então estranha ao Islã, e logo ímpia. Uma política pia, centrada na Charia, seria a única possibilidade de evitar a perda das pessoas frente a um Estado moralmente relaxado. O Estado laico seria visto como um Estado sem Deus, onde o vício poderia instalar-se livremente. Para o Islã não basta uma alma limpa, mas busca-se junto o corpo limpo do conjunto da “ummah”. Para o verdadeiro “muslim”, devem-se executar as leis de Deus na terra. Como “leis” entendendo-se não somente as regras do Corão reveladas pelo Profeta, como ainda o vasto corpo de prescrições da Charia, construído de interpretações ao longo de três séculos após a morte do Profeta e, ainda, a coleção de “Hadiths” [20].  Este seria seu verdadeiro papel e não a conformação com as leis dos homens, expressa pelo Estado laico, e produzidas por assembleia eleita. Neste sentido, a busca de um Estado verdadeiramente muçulmano, pio, implicava na recusa da intromissão colonial e neocolonial do poder político do Ocidente bem como os Estados árabes afastados da Tradição (como nas suas formas de socialismo, pan-arabismo ou liberalismo) e, ainda, da completa independência do Estado face à Religião.

Desta forma, desde o início da expansão do Imperialismo na região (a França já em 1830 na Argélia e a Grã-Bretanha com o Canal de Suez em 1869), religião e política estiveram profundamente associadas na luta anti-imperialista travada por alguns setores religiosos árabes[21]. Foi um processo natural que um seguimento importante do Mundo Árabe associasse com a religião muçulmana enquanto trincheira da resistência contra a ocupação de seus países e contra a relação espoliadora com o Ocidente (em especial depois da descoberta do petróleo e a intromissão dos ingleses no Irã e dos americanos na Arábia).

Contudo, este não era o todo do Mundo Árabe, havia outros seguimentos, outras falas. Muitos buscaram uma modernização das instituições, voltando-se bem mais para as características solidárias e generosas do Corão – garantido como “Livro Revelado” – e abandonando ou relativizando o papel dos “Hadiths” e da Charia, enquanto criação humana, datada e com uma história presa ao passado Inúmeros pensadores, em países como Egito, Síria e Marrocos, propuseram processos diversos de “aggiormnamento” do Islã, muito antes do Concilio Vaticano II (1961-1965) voltar-se para atualização do cristianismo.

Há todo um “mundo” árabe e muçulmano negado pela visão homogênea do lugar de fala imperialista e orientalista.

A experiência colonial, o trauma da ocupação e depois o “Nakba”[22], além é claro, a vigência de regimes obscurantistas e tirânicos no pós-independência, favoreceram a prevalência em mesquitas, escolas e universidades de um clero conservador, reativo a quaisquer mudanças e que, em troca do controle das instituições religiosas, da instrução (tão precária) e de várias instâncias jurídicas, aceitavam regimes profundamente corruptos e ditatoriais, como na Arábia Saudita, Tunísia, Marrocos, etc…

Assim, a “especificidade” da história árabe, e daí por diante do próprio Mundo Árabe, comportariam uma originalidade – mais uma vez a tese do “sonderweg”, ou seja, das vias únicas de desenvolvimento histórico de determinado país ou sociedade – tão diferente do Ocidente que seria incapaz de gerar uma classe média numerosa e próspera (no Ocidente uma “burguesia”) e consequentemente uma sociedade civil capaz de mediar os temas religiosos e o Estado, não eclodiu no mundo árabo-muçulmano. Daí produziu-se diagnósticos de arcaísmos atávicos que marcariam a literatura ocidental sobre o Islã e suas sociedades, mal disfarçando as justificativas (neo)colonialistas e a continua intervenção ocidental. A única saída para evitar a intolerância, proteger minorias, seriam governantes fortes, autoritários, capazes de controlar as massas e evitar que o clero muçulmano impusesse  uma ditadura religiosa. Neste sentido, a ditadura pessoal, militar ou regimes semifascistas, de qualquer forma considerados modernos – posto que laicos – seriam preferíveis ao Ocidente. O exemplo da Revolução Iraniana de 1979 e a fundação da República Islâmica no país comprovariam a tese da inaptidão dos muçulmanos ao regime democrático e a preferência do Ocidente por longos e “estáveis” regimes tirânicos, como do Xá Reza Pahlevi (1941-1979).

A esta pretensa excepcionalidade, ou impermeabilidade do Islã ao modernismo e a democracia, juntar-se-ia uma boa dose de evolucionismo e eurocentrismo, marcando as obras dos historiadores e cientistas políticos. Por esta via, o mundo arabo-muçulmano seria obrigado a repetir a história do Ocidente e organizar-se conforme as regras oriundas das Revoluções ditas “burguesas” da Inglaterra (1698), dos Estados Unidos (1776) e da França (1789). A possibilidade de um desenvolvimento original não é considerada, mesmo quando a partir de 2011 as chamadas “Primaveras Árabes” sacudem os antigos regimes tirânicos apoiados (Egito, Tunísia, Líbia, Bahrain, Marrocos) ou malvistos (Síria) pelo Ocidente e, malgrado as adversidades, continuam a produzir novos cenários políticos (Tunísia, Egito).

Um debate contemporâneo, já 2003, conduzido por Abdou Filadi-Ansary – importante cientista político marroquino radicado em Londres e responsável por boa parte do relançamento do debate sobre o “Islã das Luzes” – colocava os pontos centrais das principais teses ocidentais sobre o Islã e sua pretensa “excepcionalidade”. Tratava-se de insistir na questão sobre a necessidade, capacidade e possibilidade de se reformar o próprio Islã internamente em direção à democracia. Neste sentido, as teses de grandes pensadores e cientistas sociais ocidentais, como Ernst Geller e Maxime Robinson, sobre a religião muçulmana e sua (não)aptidão para o regime representativo são colocadas à prova em conformidade com textos clássicos de pensadores muçulmanos, como veremos mais à frente. No âmago de debate reside o risco historicista, sempre presente, de acolher um momento da história – onde o Islã tornou-se o principal traço de identidade do árabe, nos anos finais da vida do Profeta em Medina – e considerá-lo como permanente, ahistórico e insuplantável. Praticamente todos os observadores fizeram isso após o impacto da Revolução Iraniana de 1979, desconhecendo o debate interno entre as diversas percepções do Islã. Os grandes atentados terroristas organizados sob a égide da “nebulosa Al-Qaeda” desde 1991 (e acentuados de forma “espetacular”, massiva e cruel depois dos 11 de setembro de 2001) teriam confirmado a inevitabilidade do Islã militante e integrista como fala única e legítima do Mundo Árabe. A capacidade de ver as especificidades, de ler as diferenças e de dar voz aos mais diferentes agentes das sociedades árabes desaparece nesta visão homogeneizante e imutável do “outro” – o árabe muçulmano terrorista. Esta leitura, infelizmente presente em trabalhos de grande relevância, mostra-se ainda uma vez herdeira da tradição colonial e acima de tudo a continuidade da sobredeterminação dos sistemas de interpretações sociais pela história, num excesso historicizante onde o tempo vivido é absolutizado como experiência insuperável, permanente. Assim, a “mouvance” islâmica das décadas de 1970 e 1980 do século XX acaba por ser toda a possibilidade de mobilização social no conjunto do mundo árabe, visto como homogêneo e atemporal[23]. O que as mídias ocidentais mostram, e destacam, é quase sempre a reação ultraconservadora, salafita, ao impacto da “Grande Discórdia”, deixando de lado os amplos setores reformistas e a imensa maioria de crentes estranha ao debate. Mas, o caráter “espetacular” da ação fundamentalista acaba por identificar todo o Islã, como antes o “exotismo” do Orientalismo, como a face revelada do mundo muçulmano.

Esta “especificidade” das sociedades arabo-muçulmano foi, claramente, exposta como a material básico de grande parte da literatura ocidental sobre a temática por Edward Said, sob a forma de “Orientalismo”, base sobre qual se ergueram institutos, departamentos e carreiras acadêmicas, tudo isso sem consideração do “impacto” das relações – “choque” sim, como querem alguns culturalistas imperialistas, mas também como cooperação, empréstimos, difusão, integração e complementaridade. A escolha de um ou outro destes fenômenos para caracterizar o Islã ou as sociedades muçulmanas depende inteiramente do momento e do “lugar de fala” de cada especialista[24]. E estes nem sempre estão em condições de avaliar seus próprios lugares neste longo debate. Desde a moderna intrusão do Ocidente no Oriente Médio – e podemos datar isso com a tentativa de conquista do Egito por Napoleão, entre 1798 e 1801 – as relações Ocidente-Islã (tão ricas no campo da filosofia na Idade Média, nas técnicas e no comércio na Idade Moderna) tornaram-se conflituosas e marcadas pelos fenômenos do Imperialismo e do Colonialismo.

Devemos destacar que poucas vezes a história da conquista, ocupação e partilha do Oriente Médio, com o primeiro “Nakba”  – a Partilha da Grande Síria -, conforme a expressão original do historiador árabe George Habbib Antonius, 1891-1942[25] – é considerada e muitas vezes a repetição das intromissões ocidentais, mesmo que sob motivos ditos humanitários, como aqueles derivadas do instituto do “RtoP” – ou seja, a “Responsabilidade de Proteger” grupos minoritários – redunda na reatualizarão da história, presentificando de fato ou no imaginário das populações arabo-muçulmanas fenômenos como as Cruzadas ou a Conquista colonial do século XIX.

Não sendo bastante, um segundo “Nakba” virá na esteira da derrota na Guerra dos Seis Dias, de 1967 – enquanto para os árabes não-palestinos aparece apenas como “an-Naksah”, a Derrota -, com a ocupação da Palestina histórica e uma nova leva de refugiados – ao menos 711 mil refugiados – tendo que abandonar seus lares. Hoje, com a longa ocupação e a ameaça constante de nova partilha da Palestina, desenha-se o “terceiro Nakba”, a inviabilização de um Estado Palestino factível ao lado do Estado de Israel.

O próprio desconhecimento da obra, e da vida, George Antonius é um sinal da incapacidade da historiografia ocidental em ler o pensamento arabo-palestino em suas próprias formulações[26].

Historiador e diplomata Georges Habbib Antonius/ 1891-1942.

Além disso, o impacto do Imperialismo, ou “Primeiro Nakba”, dois importantes fenômenos históricos, de caráter processual e longe do episódico, são, frequentemente descartados da análise da “especificidade árabe”. De um lado, a longa tolerância do Islã com outras religiões, sua convivência pacífica e tolerante com o Cristianismo e o Judaísmo – religiões ditas “do Livro”, como denomina o Corão, a Bíblia e a Torá. O fato de que a vida cotidiana de judeus e cristãos na sociedade muçulmana – os chamados “dhimmi” – só sofreu problemas sistêmicos e impactantes depois do ataque pelo Ocidente com as Cruzadas (1096), com sua incrível violência (como a chacina da população muçulmana, judaica e mesmo cristã de Jerusalém em 1099) [27]. Mesmo depois das cruzadas, cristãos e judeus tiveram papel de destaque na Síria, Iraque e na própria Turquia Otomana. Historiadores como Marc Ferro insistem na imbricação das comunidades judias, cristãs e muçulmanas sob a administração turco-otomana até avançado o século XIX, inclusive no Al-Andalus ibérico, com tradições e ritos muitas vezes comuns e de mútuo respeito. Foi a penetração ocidental, sob a forma do Imperialismo e do Colonialismo, ao largo do século XIX, que levou a demarcação forçada e extrema entre Islã e Cristandade, distinção animada e reforçada pelos missionários e as ordens religiosas interessadas em constituir-se em “protetores” das recém-inventadas “minorias” – cristãos de variadas confissões, armênios, yazids, drusos, coptas, etc… – no Oriente. Nega-se, assim, uma história secular de convivência – na Síria, no Iraque, no Egito, no Al-Andalus em favor de uma história presentificada no terror do Califado islâmico, um simulacro de história.

No momento em que tais minorias constituíram-se em ferramentas de penetração, desestabilização e partilha do Estado multiétnico e multireligioso otomano tornar-se-iam também em alvos preferenciais da repressão estatal otomana e das ações de reforço identitário muçulmano (em especial contra cristãos armênios, desde os massacres de 1895-1897 e gregos a partir de 1897, culminado no Genocídio Armênio, Medz Yeghern, de 1915-1917 ).[28].

O Outro fenômeno foi a repressão contínua que franceses e ingleses praticaram contra toda liderança árabe – muçulmana ou não! – capaz de contrapor-se ao domínio colonial, destruindo as bases laicas e nacionalistas árabes. Assim, as lideranças árabes laicas, progressistas e dispostas ao diálogo com o “aggiormnamento” do Islã – enquanto ferramenta de resistência anti-ocidental – foram sistematicamente combatidas no Líbano, Síria, Iraque, Argélia e Egito chegando, muitas vezes, a intervenção direta do poder (ex)colonial desde o século XIX como no caso do Egito e Sudão e no século XX no Iraque, por W. Churchill em 1924 com seus ataques aéreas contra aldeias curdas, por exemplo[29]; ou no Irã, contra o primeiro-ministro Dr. Mohamed Mossadeqq, em 1953; contra  o “raíz” Gamal Abel Nasser, no Egito em 1956 ou de forma permanente pela França na Argélia, no Tchad e no Mali depois dos anos de 1960[30].  Em suma, o Ocidente trabalhou ativamente na destruição de lideranças anticoloniais que não fossem religiosas e, ao mesmo tempo, valorizou como o “muçulmano bom”, a resistência muçulmana, religiosa e conservadora e terrorista[31].  No caso, seria mais uma vez a mesma estratégia – como foi no Afeganistão – de apoiar radicais islâmicos contra regimes moderados, laicos ou de Esquerda que contrariassem os interesses ocidentais[32].

Assim, durante décadas, antes e depois da Guerra Fria (1946-1991), o Imperialismo podia esgrimir o argumento da tolerância e da “especificidade árabe” para apoiar ditaduras extremamente cruéis, posto que a única alternativa fosse o Islamismo radical. A negação do Imperialismo e da sua história, no Mundo árabe, é parte fundamental do atual processo de revisionismo histórico e da construção de um Outro como o mal absoluto.

[1] LEUTRAT, Jean-Louis. Le Western. Paris, Galimard, 2001, p.13.

[2] FANON, Frantz. Les Damnés de la Terre. Paris, Maspero, 1961, p. 22 e ss.

[3] Originalmente o poema de Kipling teria sido escrito para festejar o Jubileu de Diamante do reinado da Rainha Vitória (1837-1901), mas o autor teria refeito o texto e publicado no “The New YorK Sun”, em 1899, incentivando os Estados Unidos a assumir o controle das Filipinas. Ver: MAMA, Amina. Beyond the Masks: Race, Gender, and Subjectivity. Nova York, Routledge, 1995.

[4] Ver: KELLER, Richard. Action psychologique »: french psychiatry in colonial North Africa, 1900-1962, Rutgers University. The State University of New Jersey, 2001, 310 p

[5] SAID, Eward. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, Companhia de Bolso, 2007, p. 18 e ss.

[6] LA COUR GRANDMAISON, Olivier. Coloniser, Exterminer. Sur la guerre et l´état colonial. Paris, Fayad, 2005, p. 60 e ss.

[7] Ver ASSIM ERA HOLLYWOOD. In: https://assimerahollywood.wordpress.com/2013/04/30/filmes-o-ladrao-de-bagda-1924/. Consultado em 16/02/2017.

[8] FANON, Frantz. Les Damnés de la Terre, 1961, éd. La Découverte poche, 2002,

[9] NEUMANN, Franz.

[10]MATHIEU, Anne. Jean-Paul Sartre et la Guerre de l´Algerie. In: file:///C:/Users/FranciscoCarlos/Downloads/ESSF_article-4479.pdf, consultado em 16/01/2017.

[11] Ver: Qui sont les prophètes et les envoyés de Dieu ?In: http://comprendre-islam.com/contact/. Consultado em 16/01/2017.

[12] Para a terminologia teológico-juridica muçulmana utilizamos, além da GOLDZIHER, Ignaz, Muhammedanische Studien. Halle, Universitätsverlag, (1890), 1961, os seguintes autores: GULLAUME, A. The Tradition of Islam, Oxford, University Press, 1924; BOUSQUET, George-Henri. Le Droit  musulman, Paris, Armand Colin, 1963;

[13] As referências aos termos árabes, todos “codificados” na tradição muçulmana serão repetidos ao longo do texto. Assim, cabe uma definição que será aperfeiçoada ao longo do texto. A saber: “Charia” (também “sharia” ou “sharīʿah”): trata-se do imenso acervo de jurisprudência do Islã, caracterizando a especificidade da religião nas sociedades arabo-muçulmanas como a indistinção entre religião e Direito, daí a expressão de uma religiosidade codificada; “haram” (ḥarām): o ilícito, proibido ou pecado, advém de uma expressão pré-muçulmana, incorporado no Corão (o contrário de “halal”, aquilo que é licito); “ummah”: a comunidade ou nação dos fiéis, unidos na crença ao monoteísmo de Allah, no papel do profeta e no Juízo Final, independente de raça, nacionalidade ou gênero, dando ao Islã seu caráter de universalismo.

[14] Boa parte do material desta introdução advém de uma entrevista realizada pelo autor com o “sheik dos fiéis” no Brasil, Dr. Ahmed Amim, publicada em: TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. A Voz do Islã no FSM, In: CARTA MAIOR. http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/6, Belém, 2009.

[15] Devemos lembrar que grandes potências, como no Japão Imperial até 1945, a ideia de uma comunhão do sagrado com a vida política, centrada na crença da divindade do Imperador, eram plenamente aceitáveis e que mesmo, na região, as relações entre Estado e Religião são estreitas, como no caso do moderno Israel.

[16] “Bid´ah”, em árabe, inovação, é uma expressão, no campo religioso, que se aplica às tentativas de modernização ou de reinterpretação racionalista do Islã, na maioria considerada como uma doutrina herética.

[17] EL PAÍS. “Africa persigue a los homosexuales”, 06/02/2011, p. 36.

[18] DIAIT, Hichem. La Grande Discorde: politique e religion dans l`Ilam des origines. Paris, Gallimard, 1989.

[19]MARTIN, Richard ( Ed.).  Encyclopedia of Islam and the Muslim World, Londres, Macmillan Reference, 2004, v.2, p.609. Ver ainda a nota 2.

[20] “Hadiths” ( em árabe, “hadith, sendo o plural correto “ahadith”) são o conjunto das “narrativas”, feitas por próximos do Profeto ou próximos aos próximos do Profeta, sobre a vida de Mohammed, de onde se deduziriam regras e ensinamentos para o bom fiel. Ver: AL-BUKHARI, Mohammed Ismail (810-870). Les Traditions Islamiaues. Paris, A. Honda et W. Marcais Ed., 1903-1904 e para uma análise dos textos: The Canonization of Al-Bukhari and Muslim: BROWN, Jonathan. The Formation and Function of the Sunni Hadith Canon.Leiden, BRILL, 2007

[21] Para um amplo debate sobre o tema temos duas obras básicas: MARIN GUZMÁN, Roberto. El fundamentalismo islâmico em El Medio Oriente contemporâneo. San José, Editorial de La Universidad de Costa Rica, 2001 e ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus. São Paulo, Cia das Letras, 2001. Deve-se ter sempre, para este debate, em mãos e em mente, o texto fundante e de onde são retirados, muitas vezes de forma acrítica e sem os devidos cuidados, os próprios termos do debate: The Koran. Oxford, Oxford World´s Classics, 1964.

[22] “Nakba” ( ou al-Hijra al-Filasṭīnīya ), a “catástrofe”, termo que designa o êxodo de cerca de ( no mínimo) 711 mil palestinos de suas casas após a Guerra Árabe-Israelense de 1947-1948, sendo deslocados para campos de refugiados. Ver Relatório da UNRWA In: http://www.unrwa.org/search/google/userfiles%20reg%20ref%202%20pdf.

[23] É essa a principal crítica de Filali-Ansary aos textos de Ernst Geller e dos demais especialistas ocidentais sobre o Islã, assumindo que a história só seria um devir constante no Ocidente enquanto para o Oriente o tempo seria morto, paralisado, simplesmente presentificado no momento de sua descoberta pela ciência social ocidental, residindo aí a característica básica do Islã, sua “especificidade”. Ver FILALI-ANSARY, Abdou. Réformer l´Islam? Paris, Découverte, 2003, pp. 59 e ss.

[24] Ver para isso o trabalho seminal de SAID, Edward. Cultura e Orientalismo, São Paulo, Companhia das Letras, (1993), 2011.

[25] Sob a denominação de “primeiro” Nakba nos referimos a partilha do Oriente Médio, em especial da Grande Síria, logo após a Grande Guerra Mundial, em 1920, em decorrência do acordo colonial Sykes-Picot, entre a França e a Grã-Bretanha, dando origem a Síria, amputada de boa parte do seu litoral, o Líbano e o mandato Britânico da Palestina, que daria origem a Israel e Palestina. Ver:  KRAMER, Martin. Ambition, Arabism, and George Antonius.  In: KRAMER, Martin. Arab Awakening and Islamic Revival: The Politics of Ideas in the Middle East. New Brunswick, Transaction, 1996, 112-23.

[26] ANTONIUS, George. The Arab awakening: the story of the Arab national movement. Philadelphia, J.B. Lippincott Ed., 1939 e PICAUDOU, Nadine.1948 dans l’historiographie arabe et palestinienne, 2010, In: https://www.sciencespo.fr/mass-violence-war-massacre-resistance/fr/document/1948-dans-lhistoriographie-arabe-et-palestinienne, consultado em 13/07/2019.

[27] MICHAUD, J. F. e ROBSON, W. History of Cruzades. New York, Bibliofile, 2009, pp. 61 e ss.

[28] FERRO, Marc. Le choc de l´Islam. Paris, Jocob Odile, 2002, PP. 20 e 21. Ver ainda para a questão das minorias e a intervenções ocidentais: RENOUVIN, Pierre. Histoire des Relations Internationales. V.6, Paris, Hachette, 1955, p. 192 e ss.

[29] TOYE, Richard. Churchill´s Empire. Londres, Macmillan, 2011.

[30] Ver: POLLACK, Kenneth. Arabs at War. Lincoln, University of Nebraska Press, 2002 e LONG, David E. e REICH, Bernard. Middle East and North Africa. Oxford, Westview, 2002.

[31] Ver: FROMKIN, David. Paz e Guerra no Oriente Médio. Rio de Janeiro, Contraponto, 2008.

[32] EL PAÍS. Fetulá Gülen, de mentor de Erdogan a acusado de ser su verdugo, In: http://internacional.elpais.com/internacional/2016/07/16/actualidad/1468694404_803312.html, 17/07/2016, consultado no memso dia.

General sem alma, Pazuello gerou crise que poderia ter dado a Bolsonaro ‘seu Exército

[RESUMO] Deboche, incompetência e indisciplina de Eduardo Pazuello —que ocupou o Ministério da Saúde durante o período mais agudo da pandemia, passeou sem máscara e subiu em palanque— uniu as Forças Armadas em torno da sua imediata punição e passagem para a reserva. Essa expectativa, porém, foi frustrada pelos custos e consequências de uma nova crise militar, que poderia permitir a Bolsonaro nomear “seu” general para comandar “seu” Exército.

As ações do general Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde e sua participação em um ato de apoio a Bolsonaro depois de deixar a pasta trouxeram para o julgamento da cidadania, mais uma vez, o papel dos militares na vida política do Brasil.

Depois de inúmeras intervenções no processo político e administrativo ao longo da história brasileira, desde a Constituição de 1988 considerávamos que o risco de militarização das instituições era baixo.

No entanto, após um período de “profissionalismo”, em que se dedicaram aos deveres da caserna, fizeram dezenas de MBAs especializados e foram contratados em fundações privadas, os militares acharam que havia chegado a hora de promover um retorno à política.

Bolsonaro participa de homenagem ao Exército em 2019

Buscando uma breve intervenção –em nome das boas práticas, embevecidos pela performance do juiz de Curitiba e horrorizados pelas “provas” do lavajatismo–, apenas repetiram a história, consolidando um habitus de “salvar” a República de seus vícios.

Isso já havia acontecido antes: no tenentismo dos anos 1920, na Revolução de 1930, no golpe do Estado Novo de 1937, na deposição de Vargas em 1945, nos constantes “pronunciamentos” do Clube Militar durante a Quarta República (1946-1964), culminando no regime civil-militar de 1964-1985 —em que tiveram uma República para dizer e fazer como imaginavam o Brasil. Os resultados todos conhecem.

A transição para democracia, o projeto Geisel-Golbery, foi o mais longo e tortuoso da história de qualquer República, se estendendo de 1977 a 1988.

Em 1979, foi dada anistia a torturadores e torturados; depois, calou-se sobre os terroristas que, em 1980 e 1981, lutaram contra a democracia de dentro do Estado, atacando com bombas a oposição. Os episódios do Riocentro, da OAB e da Câmara dos Vereadores do Rio —todos crimes de sangue, terroristas e pós-anistia— são bons exemplos dessa atuação, além dos crimes “continuados”, de sequestro e desaparição de cadáveres.

A Constituição de 1988 incorporou a Lei da Anistia de 1979 em nome da concórdia. No entanto, nem todos a aceitaram. O projeto Geisel-Golbery, superado pelas ruas, continuou a ser combatido pelo lado de dentro, pelos bolsões “radicais, porém sinceros” no seu desamor ao Estado de Direito, que nunca aceitaram se habituar com a democracia.

Esses setores se consideravam herdeiros do ex-ministro golpista general Sylvio Frota, que tinha como ajudante de ordens um certo capitão Augusto Heleno. Os setores terroristas, que planejavam ataques até contra companheiros de farda, continuaram pregando a não existência da ditadura, do golpe, de sequestros e avançaram até a negação da escravidão e do racismo no Brasil —chegando, por fim, à vacina.

A máquina da repressão da ditadura militar

Aos poucos, passou a ser possível perceber que a transição democrática, a abertura de Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, não havia acontecido para amplos setores das Forças Armadas. Entre os modelos de transição –na Argentina, com punições; na África do Sul, com o reconhecimento público do passado e a defesa da concórdia; na Espanha, com pactos de “esquecimento”, mas sem repetição— o Brasil escolheu um modelo especial: o esquecimento repetitivo.

O tuíte do então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, pressionando o Supremo Tribunal Federal a não conceder habeas corpus ao ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, em 2018, marcou definitivamente o retorno dos comandantes militares à política.

É verdade que esse processo já se desenrolava desde 2016, quando a cúpula das Forças Armadas participou ativamente –ao lado da “frente parlamentar” e da “frente empresarial”, constituindo a “frente militar”– da garantia do impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT) por motivos hoje sabidamente irrisórios.

O que os comandantes militares da época colocaram em jogo abusivamente, no seu retorno à política, foi a imagem permanente das Forças Armadas brasileiras, evidenciando que a instituição não realizou a transição democrática e a habituação à Nova República.

O mesmo pode ser dito das polícias brasileiras, em especial a PM, da diplomacia e de boa parte da alta administração nacional, incluindo aí a Justiça —que o diga como o sistema judiciário lida com casos de racismo estrutural e com as chacinas de negros e pardos no país.

Apesar dessa conjuntura, parte dos analistas considerava que a presença de alguns generais no governo de Jair Bolsonaro (sem partido) era bem-vinda, dado o caráter “ideológico” da nova gestão, podendo desempenhar a função de tutelar e conter os arroubos do presidente.

Os militares no início do governo Bolsonaro

Com as primeiras demissões de militares de alta patente do governo —como os generais Carlos Alberto dos Santos Cruz e Maynard Santa Rosa, ambos extremamente conservadores e defenestrados exatamente por acreditarem na “tutela” do presidente—, evidenciou-se que Bolsonaro era o único responsável por seu governo.

O avanço da pandemia —previsto e calculado dia a dia por cientistas e instituições— fez emergir o “lado oculto” do governo: não sua incapacidade de agir, mas sua capacidade de colocar em prática um governo paralelo, camuflado, impondo aos brasileiros uma política de contágio impositivo de Covid-19.

Sucederam-se ministros da Saúde até chegar ao “homem no posto”: o general Eduardo Pazuello, dito especialista em logística, grande estrategista, trazendo nos ombros a expertise do Exército. Aí começaria o desastre. Os números de doentes, mortos e sequelados transbordam. Bolsonaro debochou, Pazuello obedeceu.

A imagem do Exército, e por antonomásia das Forças Armadas, se retraiu em pesquisas sobre a confiabilidade das instituições nacionais. A visibilidade não buscada trouxe, ainda, a publicidade sobre compras como de leite condensado, carnes e bebidas no momento em que brasileiros tinham que ser socorridos pelo auxílio emergencial e, ainda mais grave, de hospitais militares fechados —incluindo Manaus, epicentro da catástrofe– ao mesmo tempo que pessoas morriam e o general Pazuello, em visita à cidade, receitava cloroquina.

Mortes e mentiras se acumulavam. A ausência de prontidão, de estratégia ou de logística para salvar vidas ficou evidente.

O general mentiu, se portou de forma relaxada, descuidada e com grave incúria, assim como seus subordinados diretos, enquanto faltava oxigênio para os internados por Covid-19.

O drama em Manaus

A soma desses comportamentos se choca diretamente com os valores básicos que qualquer aluno deveria ter assimilado na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras): direção, comando, coragem moral, cumprimento da missão, criatividade, aprimoramento técnico, civismo, fé na missão, patriotismo. Pazuello faltou com todos esses valores básicos.

Alguns outros preciosos valores, de extrema sensibilidade exigidos na academia e na vida de qualquer um, também foram estranhos ao general Pazuello: sensibilidade moral: capacidade de se sentir moralmente afetado; julgamento moral: capacidade que permite refletir sobre situações que exigem interface com valores; empatia: capacidade que permite compreender ideais e valores dos demais; contextualização moral: capacidade que permite a reflexão moral.

Em resumo, no caso de Eduardo Pazuello, a Aman formou um general sem alma. Infelizmente, a história nos relata a trajetória de generais desse tipo, sem alma, sempre associadas a genocídios.

O caso Pazuello reforçou e estimulou o movimento do Exército em direção a um discreto distanciamento do governo Bolsonaro —tão discreto que muitos nem sequer o percebem. O afastamento, como tudo no Exército, deveria ser lento, seguro e gradual, sem dar razão e motivos aos críticos e sem despertar rancores.

No entanto, por sua própria lentidão e ausência de rumo, esse movimento despertou a desconfiança de todos os lados. Os militares encastelados no governo Bolsonaro temeram ficar isolados, denunciados na solidão do Planalto. Aqueles que queriam o afastamento, enojados com a indisciplina, a incompetência e o cabotinismo de Pazuello, queriam a punição imediata, como claro sinal do distanciamento em curso.

Jair Bolsonaro (esq.) e o general Eduardo Pazuello em cerimônia no Palácio do Planalto sobre a vacinação contra a Covid-19 – Ueslei Marcelino – 16.dez.20/Reuters

Fez-se o impasse. Eram os primeiros dias de junho, dois meses depois da exoneração dos generais Edson Pujol e Fernando Azevedo e Silva do Comando do Exército e do Ministério da Defesa, respectivamente –a segunda crise militar do governo dos generais.

Porém, havia mais. A crise desencadeada por Pazuello deixou escapar um nojo maior, uma escala de ressentimentos ainda mais profunda. Não eram apenas os cargos disputados em termos de “quem é o mais antigo? Agora é minha vez!”.

Eram os sinais evidentes de vaidade e arrogância. Era a compra de ternos caros, mochilas importadas, “pins” americanos “de Armas” para as gravatas, “cases” e, claro, computadores, visitas constantes ao eBay, corrida para vagas em embaixadas e missões diplomáticas. Por mais traumático e cruel que tenha sido 1964, havia um projeto: 2019 teve um ar de festa na província.

Ao longo de maio, Pazuello passeava leve e solto sem máscara em shoppings, participava de motociatas e subia em palanques. Tal atuação, que beirava o deboche, conseguiu uma façanha, na primeira semana de junho: uniu quase toda a Força ativa, boa parte da reserva –e eis aqui uma novidade– a Marinha e, bem ou mal, a Aeronáutica em torno de dois pontos: punição e imediata passagem para a reserva do general.

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Não bastava passá-lo para a reserva, era necessária uma punição, escrita ou oral, e uma advertência, mais ou menos dura. Haveria uma punição.

Então, entrou em cena a tropa do presidente. Coube ao general Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Casa Civil, a defesa do ministro da Saúde responsável pela catástrofe, tendo no ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, o suporte fundamental, desde abril e maio, para a defesa da “exemplar” gestão de Pazuello na pasta.

Assim, o Comando do Exército foi paralisado pelo ministro da Defesa: uma punição do general entraria em choque direto com o ministro e, claro, com o presidente. Bolsonaro, como comandante em chefe, não aceitaria e faria reverter o ato. O recém nomeado comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, e o Alto-Comando do Exército tiveram que avaliar o preço, os custos e as consequências de uma terceira crise militar em tão pouco tempo.

Na última quarta-feira (23), Bolsonaro publicou um decreto que permite que oficiais das Forças não sejam obrigados a passar para a reserva depois de dois anos em cargos civis, podendo exercer funções administrativas sem restrição de tempo. A medida vai na contramão da expectativa dos comandantes do Exército e pode levar a um novo acirramento da relação dos militares com o Palácio do Planalto.

O presidente, ao exonerar os generais Edson Pujol e Fernando Azevedo e Silva no final de março, conseguiu uma meia vitória no seu processo de bolsonarização das instituições. O caso Pazuello, orientado pelo general Ramos e secundado pela tremenda ausência e abandono da tropa pelo general Braga Netto, deveria ser a ceifada final do bolsonarismo contra a tímida tentativa do Exército de se manter distante da catástrofe. Tudo culminaria na exoneração do general Paulo Sérgio de Oliveira.

Bolsonaro estaria, então, livre para nomear o “seu” general para comandar o “seu Exército”. Com isso, finalmente, o tenente expulso da Força por indisciplina e ausência de fé, que se tornou capitão por ato de graça, teria um Exército para chamar de seu.

No entanto, esse roteiro não se concretizou. Ainda.