O PÊNIS E A LEI

As instituições sociais numa sociedade minimamente civilizada deveriam ter, e tem mesmo entre nós e mesmo neste momento de crise, mediações e espaços de amparo. Entre a situação “prisão” – no Brasil terrível penalização para além da pena de privação da liberdade – e a vulnerabilidade da cidadania e da dignidade do outro – no caso especifico do chamado “Estuprador do Ônibus”, mulheres trabalhadoras, devemos pensar alternativas. A liberdade sempre vem acompanhada da responsabilidade, neste caso tanto do rapaz agressor quanto do juiz, este último claramente vagando entre o despreparado para tal caso ou, no mínimo, displicente perante o histórico do agressor. Não se trata aqui de discutir as tecnicidades do Direito e de suas operações – aliás, de grande flexibilidade hoje no país, conforme as cortes de primeira instância e o próprio STF, quando se fala da defesa de patrimônio, seja público ou privado. Também não se trata de defender a penalização com o aprisionamento de todo e qualquer comportamento delituoso, abarrotando prisões já abarrotadas. Por isso, falamos, desde as primeiras linhas em espaços, ações e atos de mediações e amparo.

É neste sentido que podemos, mesmo de longe, perceber que o rapaz agressor estava em sofrimento psíquico grave, estava pedindo ajuda – a repetição compulsiva do ato (o Wiederholung), é/era um pedido inconsciente de punição – uma repetição compulsiva, pública e sequencial de um ato que valeria, de uma forma qualquer, quando praticado em público, uma punição. A masturbação masculina, embora universal, merece no processo educativo-repressivo um imenso imaginário e uma grande gama de punições impostas de fora ou interiorizadas no processo de “educação” dos meninos, desde terna infância. Ser portador de pênis na nossa sociedade é um bônus, mas há um processo claro de domesticação punitiva do mesmo, que acarreta formas variadas punições caso o jovem macho não seja capaz de administrador o uso masturbatório do seu próprio pênis. D.F.N., o “estuprador do ônibus”, entre os 25 e os 26 anos de idade passou por um estranho processo em que “desaprendeu” a administração do seu pênis e do seu uso masturbatório. Por quê? Cabem duas respostas simples: fez porque podia e sabia que seria prazeroso e não seria punido por isso ou, bem ao contrário, fez porque sabia que era uma coisa ruim e buscava uma punição.
A repetição compulsiva, pública, em espaços onde não poderia esperar nenhuma “fuga” da cena – na contramão das trajetórias clássicas de estupradores em série – nos aponta um individuo que queria ser pego e, portanto, punido.

A punição viria, cedo ou tarde, via a prisão – e então a cessação do ato gozoso perverso, posto que o gozo masturbatório adulto em público seja perverso – ou através de um ritual de linchamento, ao qual o rapaz se expôs nos locais mais movimentados e públicos da Capital paulista. Na repetição do seu gozo havia uma irrefreável pulsão de morte.
O grito de ajuda, o pedido de punição imediata, visando a cessação do gozo perverso – masturbação de um homem adulto, em público, em uma situação adversa, contra a vontade do objeto de investimento libidinal e sob grave risco pessoal – não foi sequer considerado pelas instituições que deveriam reconhecer as condições de alto risco que envolviam todos os presentes na situação: as mulheres colocadas numa situação de objeto de investimento de um gozo perverso, agredidas de forma a mais vil possível para uma mulher; para os demais passageiros, incluindo crianças que podem ter na cena uma iniciação traumática a um debate por demais complexo e mal-dito na sociedade, aos passageiros em geral, em especial aos demais homens que poderiam correr o risco de assumir a postura de serem “chamados” à condição de “justiceiros” – numa sociedade que políticos e mídia incentivam o linchamento de “bandidos” – e para policiais, talvez impelidos a burlar as leis e ir além de suas funções.

Em fim, D.F.N., de 27 anos, trabalhador, pardo, com uma história traumática e nem por isso plausível e muito menos justificável, não foi em momento algum ouvido: e quando afirmamos que não foi ouvido não nos referimos a sua narrativa – do seu acidente e de seu coma – mas, não foi ouvido no seu pedido público de punição. As instituições que deveriam ouvir a estridência do grito de dor – uma, duas, três… ejaculações sobre mulheres surpreendidas, atônitas, chocadas e, com toda certeza, traumatizadas, não mereceu atenção de nenhuma instituição da sociedade, embora D.F.N. tenha sido levado perante tais instituições variadas vezes e tenha mesmo sido internado, por outras razões, por um longo tempo em um hospital. Mas ninguém o ouviu.
D.F.N. não nasceu andando de ônibus e ejaculando em pessoas: todo o processo perverso tem uma origem e essa origem reside numa dor que precisa ser aliviada através de um sintoma. O gozo perverso de D.F.N. é um sintoma. Há algo maior, oculto, mal-dito, que causa uma profunda dor, tamanha que o rapaz prefere o tremendo risco da prisão, do espancamento e mesmo do que pode acontecer com ele numa prisão.

Ou apenas, o amparo de um diálogo sobre o sofrimento.

A única resposta obtida foi a negação. Negaram qualquer ajuda, colocando o rapaz, o agressor responsável – sim, porque mesmo na dor você é responsável pelos atos que pratica para superar, “esquecer”, sublimar a própria dor, afinal o Outro não está disponível para sanar ou cessar involuntariamente, compulsoriamente, sua dor -, frente a frente com as mulheres, tornadas objetos indistintos, “ao acaso” disse ele, e inocentes da dor do outro. Em tal situação emergiu um grande risco para o conjunto de mulheres que viajam de ônibus – mulheres comuns, trabalhadoras, possíveis colegas de homens do mesmo grupo social que D.F.N. Risco inclusive de interiorizarem um horror, rejeição, e no limite de aversão ao sexo – uma das vítimas do agressor era uma adolescente. Tais mulheres também não mereceram quaisquer cuidados por parte das instituições, que ao contrário – como a “boa prática do saber jurídico” exige – só se interessam pelo “depoimento” da vítima, pelo relato dos detalhes mais escatológicos perante um público de gênero, classe, formação e, possivelmente cor, diferenciada que irão perscrutar no “dito” das mulheres o que é ou não, por elas, uma ofensa: são os donos do pênis, letrados, brancos, da elite social que possivelmente jamais foram constrangidos ao contato físico indesejado que decidiriam onde e até onde as ações de D.F.N. são ou não uma ofensa para uma mulher. Mesmo quando mulheres, quase sempre técnicas da Lei, nos explicam honestamente , no caso, os limites da Lei, não percebem que as Leis trazem em si o poder do pênis e reforçam sua dominação. Não se trata de um complô ou de uma trama contra outros grupos da sociedade: é simplesmente natural para homens poderosos que assim o seja, posto que interiorizam a fala de uma sociedade onde a dominância peniana se exerce por si só, pela ordem natural das coisas na própria educação diária de meninos e e meninas, mesmo no interior de suas famílias até as instancias máximas dos códigos da Lei – escritos por estes mesmos homens e suas circunstâncias e experiencias penidominantes. “Não quero” deve ser dito com todas as letras e a resistência deve ser provada com escoriações e sangue, caso contrário não há crime!

Não se trata, portanto, de prendê-lo num cadeia, em comum, e pronto, acalmar as consciências revoltadas – não é isso que se discute. Ainda mais agora, com a publicidade toda. Trata-se, neste momento, de uma prisão de alto risco e a vida e integridade desse rapaz é hoje um desafio lançado à nossa sociedade – como padrão mínimo de civilização. Desafia-se, em todo este caso, a nossa sociedade, a ser capaz de solucionar questões complexas de sofrimento na modernidade urbana e industrial, de manter-se, de manter-nos, um ponto além da barbárie. Ignorar um grito de dor, como fez o Estado na figura do Juiz, do Ministério Público – onde funcionava um grupo de estudos e de proteção aos crimes de gênero (!!!) – mesmo que sob a forma de gozo perverso, é de extrema crueldade. Insensibilidade imperdoável com todos os atores envolvidos na tragédia, como acima detalhamos, mas muito especialmente com as mulheres ofendidas e o público que não pediu para assistir o espetáculo: alguém já se perguntou se havia crianças nos ônibus em que viajava assiduamente D.F.N.?

O não reconhecimento de uma situação limítrofe existente no “habitat” criado em torno do rapaz agressor é claramente seletivo. Usar a letra da Lei para explicar isso é lançar mão do mundo cultural que informa a mente do legislador a partir do seu lugar cultural de fala e assim permitir a continuidade da dor num mundo desigual: e este mundo é um mundo masculino, falocrata e onde a noção de ofensa é inteiramente experiencial, de gênero, de cor e de classe. Ou estamos perante a crença cultural que entre “esse povo” as “coisas são assim mesmo”, e o comportamento lúgubre e a promiscuidade, “natural” nos chamados “grupos subalternos”, não é a ofensa mesma que ofende as elites bem-nascidas?

Para com as vítimas da perversão, sempre mulheres trabalhadoras cansadas, exaustas, usando transportes públicos horrendos, caros, inseguros e lentos, onde por vezes dormir 30 ou 40 minutos é um alívio, é uma crueldade repetitiva e explicitante do descaso da elite machista com as mulheres trabalhadoras. Na outra ponta, com o perpetrador do gozo perverso, explicita-se a incapacidade da sociedade em seu todo em socorrer um individuo em pleno processo de sofrimento repetitivo agudo a ponto de colocar em risco seus semelhantes e a si mesmo. Ou seja, é como se as regras que valem para um grupo social protegido e preservado, não tivessem qualquer valia para a maioria de uma sociedade pobre, trabalhadora, mestiça e em especial de sua parcela “mulher”.

No processo devemos destacar: 1. A reação tecnicista dos operadores do Direito é insensível e distante da compreensão opressiva que os indivíduos – no caso todos oriundos das classes trabalhadoras, perpetrador e suas vítimas – vivem e sofrem num contexto de crise social e depressão, onde o desamparo e a perda de expectativas é generalizada; 2. a ira mediática dos “heróis das redes sociais” beira ao fascismo, quando pedem: “cortem o bilau dele”, ou “coloquem na prisão para ser entregue aos demais presos” ou “boa surra resolve” ( repetindo o processo “educativo-repressivo-repetitivo” dos meninos punheteiros!) – tais manifestações em nada diferem dos programas de extermínio executados pelo Terceiro Reich e regimes afins, incluindo os linchamentos nos Estados Unidos ou mesmo no Rio de Janeiro, a partir de atos reais ou imaginários, diagnósticos médicos viciados ou não; a sociedade não se vinga em seus indivíduos, ou não deveria fazê-lo, e tal ação em nada resolve a questão colocada – a pulsão de morte vivida como dor intensa e, então, sublimada em gozo perverso compulsivo; 3. particularmente é revoltante o número de “posts” que propõem, como “pedagogia”, que alguém ejacule ( no condicional) na “cara” da filha ou esposa ( presuntiva) do juiz – neste caso a falocracia e a misoginia se reproduzem e o pênis se impõe como o justiceiro mor de toda a sociedade, resolução final de conflito, confirmando a inter-relação mental antiga entre pênis e Lei – tais pessoas são, na verdade, os verdadeiros “machistas”, de ambos os sexos, adoradores de pênis justiceiros. Ora, pênis foram feitos para o gozo, eventualmente para a reprodução, não para punir ou justiçar ninguém. O que precisamos é entender a existência de núcleos intensos de dor na sociedade contemporânea, gerando processos complexos de sofrimento numa sociedade massiva, industrial, urbana, em crise, e que tais processos levam as pessoas a comportamentos maldosos, perversos e cruéis. A maioria delas ocultam suas crueldades para com os outros ou os camuflam em vantagens sociais e em seus pretensos méritos e vitórias pessoais. D.F.N. não, expôs publicamente o que considerava o mal, feio e necessário de punição. Alguém disse isso em algum momento de sua vida e ele acreditou muito nisso.

Muito dos que sofrem não possuem recursos monetários ou intelectuais para recorrer a ajuda necessária e, no processo de sofrimento, afastaram-se do seu núcleo básico de amigos e familiares que poderiam servir de algum apoio – se não for o caso, mais que provável, do núcleo familiar ser a própria origem primária da afecção, tão claramente desviado para um comportamento masturbatório público, de caráter infantil, merecedor de punição.

Tais pessoas precisam de ajuda, não de punição, castigo, extermínio. O caso do “estuprador do ônibus” por sua compulsão, repetição, persistência e, principalmente, sua regressão personológica de tipo masturbatória, chega ao seu paroxismo com o conhecimento dos detalhes técnicos, por parte de D.F.N. do que podia ou não gerar sua prisão: aqui, na repetição, desta feita, “com constrangimento” – ou seja, com a consumação do estupro -, D.F.N. quis garantir ser ouvido. O grito – pronto, eu fiz desta feita como o Juiz disse que seria o mal completo.

Era/é um claro grito de socorro que usou, de forma abjeta, o corpo de Outros – mulheres inocentes, trabalhadoras, vivendo suas próprias trajetórias de dificuldades, superações e crises – como objeto de salvação de um Eu no limite da destruição. No mundo fechado de sua dor não há espaço para a dor de ninguém mais e suas vítimas são apenas os vocábulos do grito.

O terrível em todo esse processo é que desde o primeiro momento – a primeira prisão, a o primeiro fragrante e a primeira entrevista com um juiz, afinal um homem formado para ouvir o Outro, numa profissão de onde se originou o “paradigma da auscultação” do que está oculto, enterrado, sob as diversas camadas do corpo – nada se tenha percebido. Ou ao menos no segundo evento… Ou no quinto ou sexto evento. Na verdade, quem ouve hoje o sofrimento das pessoas? De todas essas pessoas envolvidas numa história tão miseravelmente humana.

A crise mundial e o papel do Brasil

No coração do Ocidente, emergiu uma entidade supranacional: a “Troika”. Capaz de gerar injustiça, perda e grande dano social para países inteiros, é o único organismo ativo da chamada “governança mundial”. Nesse cenário, o Brasil precisa de uma diplomacia ativa, sistemática e com objetivos claros.

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Em meio a uma ampla crise mundial, com os países buscando fechar seus mercados para garantir empregos, os organismos mundiais, em especial a OMC, falharam em democratizar as relações entre as nações, em especial com a falência da chamada Rodada de Doha. Da mesma forma, a busca de maior representatividade e maior participação das nações na ONU continua bloqueada pelo arcaico direito de veto de cinco países e pela recusa, explícita dos Estados Unidos, em aceitar uma reforma democratizante da instituição.

No entanto, no coração do Ocidente, emergiu uma entidade supranacional: a “Troika”. Capaz de gerar injustiça, perda e grande dano social para países inteiros, com receitas reconhecidamente incapazes de superar a crise, é o único organismo ativo da chamada “governança mundial”. No interior da “Troika”, o velho FMI se recusa a qualquer esforço de (auto)reforma, democratizando e tornando mais “social” a principal agência supranacional do planeta. Nesse cenário, mais do que nunca, o Brasil precisa de uma diplomacia ativa, sistemática e com objetivos claros.

2012: a crise da Europa

2012 foi um grave ano de crise mundial – econômica social e política. O desemprego e a regressão social foram brutais em países como Espanha, Grécia, Portugal ( onde até mesmo, de forma ridícula e contraproducente – em virtude do turismo – o Carnaval foi suprimido). O velho receituário do FMI – agora ampliado na entidade supranacional denominada “Troika”, com o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia – mostra-se, depois de quase três anos de “austeridade” (o que na prática se traduz por refinanciamento dos bancos e cortes sociais), um grande fiasco: desemprego massivo e inédito na história destes países; exportação de capitais via pagamento de juros e fuga de fortunas; crescimento negativo.

Este ciclo infernal resulta em desvalorização dos títulos dos governos e mais e mais controle e pagamentos para as entidades da “Troika”, exaurindo os investimentos produtivos. A Comissão Europeia – e os governos conservadores de Portugal e Espanha – declaram-se, entretanto, surpresos pela ausência de resultados. Na Espanha os procedimentos de regressão de direitos sociais combinam-se com denúncias de corrupção do governo conservador do Partido Popular. No entanto, bem ao contrário das notícias catastrofistas e oportunistas espalhadas pelas empresas de “rating” e “experts” econômicos, o euro não acabou. Seria um desastre para os grandes bancos europeus.

Nos Estados Unidos, após um bom susto, Barack Obama conseguiu sua reeleição, afastando parte da velha oligarquia do Partido Democrata, como clintonismo, e trazendo, pela primeira vez, um governo com sua própria cara – a qual, depois de quatro anos, ainda não vimos. A nomeação de novos secretários de Estado, Defesa e Tesouro podem – podem, mas não é seguro que assim o seja! – tirar os Estados Unidos de sua paralisia e de suas velhas fixações políticas e ideológicas, como uma prometida Guerra contra o Irã e o apoio à política de colonização da Palestina dos Partidos Likud-Beiteinu em Tel Aviv.

Obama: a virada que não aconteceu

A proposta original de Obama – voltar-se para a Ásia do Pacífico, organizar um modus vivendi com a China Popular, avançar na contenção da Coréia do Norte e liderar um bloco de prosperidade na Ásia – parece mais longe do que nunca. Na verdade, Hillary Clinton manteve e procurou aprofundar as políticas anteriores, mal escondendo o desejo de criar um “cinturão de segurança” em torno da China, repetindo políticas aplicadas contra a URSS desde a Guerra Fria (1945-1991) (Nota 1). Assim, aprofundou alianças com a Índia, Tailândia, Mianmar, Indonésia e Filipinas, além da manutenção de grande esquema militar na Coréia do Sul e Japão (incluindo Okinawa) num esforço mal dissimulado de “contenção” da China.

No entanto, o conflito emergente entre China Popular e Japão ( com a participação da Coréia do Sul) em torno das Ilhas Diayou/Senkaku surpreendeu Washington, que malgrado seus interesses na região, viu-se sem ferramentas e meios de ação num conflito que poderia mostrar aos países asiáticos que o “guarda-chuva” defensivo americano não mais funciona. Além disso, a Coréia do Norte, depois de sinais controversos, colocou um satélite em órbita em 12/12/12 – ou seja, comprovou capacidade balística de longa-distância e anunciou – em janeiro de 2013 – um novo teste com armas nucleares. O agravamento da crise na área do Pacífico é um resultado, em larga medida, da paralisação das Conversações de Beijing, entre China, Rússia, Japão, EUA e as duas Coreias, decorrente da postura cada vez mais rígida do Japão.

É possível que a chegada de Chuck Hagel, na Defesa, e de John Kerry, na secretaria de Estado, desarmem a dependência estratégica entre Washington e Tel Aviv. A postura de Netanyahu – primeiro ministro israelense – contra a reeleição de Obama não será esquecida e os novos condutores da política externa americana sabem, claramente, que na visão do mundo – e não somente dos países árabes e muçulmanos – a insistência do Governo de Likud-Beiteinu em avançar na colonização do território da Palestina conta com a complacência de Washington.

A Questão Palestina

A admissão da Palestina na ONU em 2012, mesmo como “Estado-observador”, foi uma vitória dos países emergentes na ONU – incluindo China, Índia e Brasil entre os 138 votos favoráveis, 41 abstenções e 9 votos contra (Nota 2) – e velhos aliados americanas. Tais países perceberam o beco sem saída da diplomacia de Washington. Ao mesmo tempo, a chamada “Guerra dos Oito Dias”, entre Israel e o Hamas, na Faixa de Gaza em 2012, mostrou que a pretensa segurança ou superioridade bélica de Israel – elemento fundamental na paralisia das negociações, incluindo aí o “Iron Dome” – não era uma realidade. Mesmo armas de baixa tecnologia, como foguetes Katiuscha e os Qassam (que a mídia insiste em chamar de “mísseis”, mesmo não tendo as necessárias tecnologias de orientação e de navegação) “tocaram” Tel Aviv e um assentamento israelense próximo a Jerusalém.

A insistência de Tel Aviv em não negociar – sob vários argumentos, desde não “haver com quem negociar” até exigir o fim do recurso à violência e o pleno reconhecimento de Israel previamente, o que, aliás, a OLP/Fatah já o fez sem resultados – não tem antecedentes nos anais da história das negociações. A paz é negociada entre inimigos, ou então não haveria a necessidade de negociações de… paz! Os Estados Unidos e a Coréia do Norte negociaram a paz durante dois anos, enquanto suas tropas se enfrentaram, até o Acordo de Pammumjon, 1953.

E ainda Washington negociou a paz, e obrigou o estado-fantoche de Saigon a fazê-lo, nas Conversações de Paris, entre 1969 e 1973, em pleno auge da guerra do Vietnã. Negociação de paz não é uma rendição prévia. Contudo, tais exigências, facilitadas pelo apoio incondicional de Washington, ficaram, a partir 2012, mais difíceis. O Relatório da Comissão de Direitos Humanos da ONU, sob a coordenação da juíza francesa Christine Chanet e publicado em janeiro de 2013, poderá levar o governo do Likud-Beiteinu ao Tribunal Internacional de Haia por crimes de guerra. Sem negociações não haverá possibilidade de paz – não importa o poder dos arsenais acumulados – para nenhum dos povos da região. Ou conforme as palavras de um israelense: “…não se consegue fazer a paz por meios militares”, diria Avi Dichner (Nota 3).

Obama deverá, em 2013, decidir se continua enredado nos grupos de pressão pró-Israel e anti-Irã (com os fundamentalistas cristãos do “Tea Party”, o complexo industrial-militar centrado no CentCom – o Comando Militar do Oriente Médio e Ásia Central – e as entidades de apoio a Israel) ou se buscará resolver tais conflitos e centrar sua atenção na região mais rica do mundo – a Ásia do Pacífico – de onde emerge o seu mais poderoso concorrente.

O Fator China

Desde antes da ascensão da nova liderança chinesa, no 18º. Congresso do Partido Comunista, em 2012, a posição tradicional da China no equilíbrio mundial mudou significativamente. Deng Xiaoping, desde sua ascensão em 1976, formulou uma doutrina de política externa expressa na expressão: “China, a ascensão pacífica de uma grande potência”. Isso significava que a China teria paciência e sua chegada ao clube das grandes potências não resultaria em grandes conflitos, como no caso da Alemanha e Japão em 1914 ou 1939.

Desde o governo de Hu Jintao, de inicio de forma velada, iniciou-se um forte debate na China – envolvendo historiadores, cientistas políticos e diplomatas – que concluiriam que os Estados Unidos estão determinados a deter a ascensão chinesa. Para isso estariam dispostos a se utilizar da oposição interna, dos separatismos, de Taiwan rearmada e, principalmente, na construção de um cinturão de nações aliadas no entorno chinês.

Assim, o novo governo chinês, iniciado no final de 2012, com Li Xinping e LI Keqiang, já não está mais convencidos de que a manutenção de um “perfil baixo” seja uma boa resposta a Washington. Por isso, o endurecimento com o Japão – maior aliado dos americanos na Ásia – e uma política econômica menos emparelhada com os interesses americanos serão a tônica da nova administração. A resposta chinesa deverá, neste campo, pautar-se pela exclusão, no limite do possível, dos americanos da Ásia do Pacífico, na contramão dos objetivos de Obama.

O Brasil no mundo

A política externa do Brasil manteve-se, nas suas grandes linhas, na direção traçada desde muito tempo: votou pela Palestina na ONU ( decisão tomada desde o discurso de FHC na ONU em 2001 ) e que Dilma Rousseff reafirmou, no seu discurso, em 2011. Da mesma forma, o Brasil recusou a intervenção estrangeira na guerra civil da Síria e assumiu uma postura mais critica e militante, contra a violação dos direitos humanos, nas reuniões multilaterais, em especial na Comissão de Direitos Humanos da ONU – onde votou pela condenação do Irã.

Tal posicionamento nos afastou – ao contrário dos dois Governos Lula da Silva – do Irã, chegando mesmo a discreta recusa de Dilma em receber o presidente iraniano em visita pela América do Sul, em junho de 2012. Podemos entender isso. Uma mulher que foi torturada não deve se sentir confortável ao lado do chefe de um regime que sentencia mulheres à lapidação em praça pública.

No entanto, perdemos também, neste período de dois anos de Governo Dilma e de gestão do embaixador Antonio Patriota, um importante relacionamento com a Turquia. Trata-se, neste caso, de um regime representativo e laico, país com 80 milhões de habitantes e mais de um trilhão de dólares de PIB. Com a crise contínua do novo governo egípcio, o afastamento do Irã, o natural seria uma maior atenção do Brasil ao mais estável, prospero e democrata país muçulmano do Oriente Médio. Mas, isto não foi feito, com perda do papel do país na região.

Uma presença antiga: desde a criação, pelo Congresso Nacional, do Batalhão de Suez, em 1956, com 20 contingentes do Exército Brasileiro temos uma presença moderadora na região. Logo, trata-se de uma política de Estado, de longa continuidade, marcada, hoje, pela presença da Fragata União, e depois a Fragata Liberal, no âmbito da “Maritme Task Force” da ON U nas águas do Mediterrâneo. A Turquia é, nesta missão, um parceiro fundamental para o Brasil e um ponto importante de projeção da presença brasileira na região.

A ‘diminuição’ do Brasil

No âmbito do nosso continente, a América do Sul, tivemos também um amplo retrocesso na projeção e papel do Brasil. O primeiro, e bastante grave, foi à exclusão do Brasil das negociações de Paz entre as Farc e o governo da Colômbia. Desde a assunção de Juan Manuel Santos como presidente em Bogotá, em 07/08/2010, estava claro que a política de força do seu antecessor, apoiada no chamado Plano Colômbia de inspiração e financiamento norte-americano, fracassara. As negociações eram, claramente, o caminho mais fácil e menos custoso em vidas e traumas, do que o uso maciço e indiscriminado da força militar (Nota 4).

Ora, decidida a via negociadora, oferecidos os bons ofícios do Brasil, Bogotá aceitou a intermediação inicial de Caracas – que sempre acusara de apoio direto e aberto às Farc – e a intermediação de Cuba (onde se realizam os trabalhos) e da Noruega. O Brasil, um país que enviou militares, aviões e helicópteros para resgate de vítimas de sequestro e usou as forças do 14º. Batalhão de Infantaria da Selva para impedir as Farc de constituírem santuário no território brasileiro, foi excluído da mais importante negociação de paz do continente.

O Mercosul e o Brasil

Caminhamos, entretanto, na direção dos interesses brasileiros ao ampliar o Mercosul e fortalecer a Unasul. Assim, na Cimeira de Brasília (em 07/12/2012) a Bolívia foi admitida, abrindo-se caminho para a adesão do Equador e da Guiana. Claro, o governo paraguaio protestou – ecoando profundamente nas argumentações daqueles que detestam a ideia de uma integração regional autônoma. Para os atuais governantes em Assunção a ampliação do Mercosul – que abala o poder de chantagem de Assunção – deveria se dar pelo voto de todos os membros e na ausência do Paraguai as adesões efetivadas – Venezuela, Bolívia, Guiana e possivelmente Equador – serão nulas. Evidentemente Assunção não concorda com seu afastamento temporário dos organismos de direção do Mercosul em virtude do golpe dissimulado contra o presidente Lugo em 2012.

Contudo, o próprio Mercosul caminha em meio a diversos problemas e crises. Particularmente a atuação da Argentina não é das mais construtivas. Em meio a uma grave crise econômica mundial – que, claro, atinge também argentinos e brasileiros – Buenos Aires assumiu atitudes protecionistas contra o livre fluxo do comércio intrabloco, com grave prejuízo dos interesses brasileiros, e, muitas vezes, por um pronunciado favorecimento do comércio da China (um grande comprador de commodities argentinas).

O núcleo do Mercosul são as boas relações Brasil-Argentina, daí a imensa relevância do equilíbrio e o risco de regressões. O comércio bilateral encolheu, em 2012, algo em torno de 15%, em detrimento do Brasil, embora tenhamos mantido uma alta taxa de investimentos no país – cerca de 20 bilhões de dólares e aberto linhas de crédito no valor 7,5 bilhões junto ao BNDES para o país vizinho.

Um entendimento direto entre Buenos Aires (que, apesar das restrições, amarga déficit na balança comercial com o Brasil) e Brasília é fundamental para a integração regional. Se ambas as presidentes entendem bem ou não, se são mutuamente simpáticas, isso não é, de forma alguma, uma razão de Estado para deixar a mais importante criação da diplomacia brasileira em ritmo meramente vegetativo.

A crise mundial, bem diagnosticada por Dilma Rousseff, em Los Cardinales, na Argentina, em fins de novembro de 2012, nos obrigada a fortalecer o Mercosul e buscar novas parcerias comerciais, intensificando viagens diplomáticas, envio de ministros e retomar a chamada “diplomacia presidencial” – o principal nível de negociação capaz de desbloquear gargalos e entraves.

Tanto na Cimeira do Mercosul de Brasília quanto na Cimeira dos Países Ibero-Americanos e a União Europeia em Santiago do Chile (agora em janeiro de 2013), vimos Christian Kirchner, com sua habitual desenvoltura, falar em nome do bloco sul-americano, inclusive recusando prazos e metas para um acordo bilateral Mercosul-União Europeia (Nota 5) – algo de grande importância para as exportações brasileiras.

Brasil e Estados Unidos

Não podemos ficar satisfeitos com o que temos: a perda de vitalidade do comércio com a União Europeia, em virtude da crise, déficit calamitoso com os Estados Unidos e protecionismo praticado por grandes economias como o Japão. Com os Estados Unidos o comércio bilateral cresceu acima de 2.5% em 2012 (malgrado a crise americana), mas com sinais negativos para o Brasil: em 2011 tivemos um déficit de 6.2 bilhões de dólares e deverá ficar, em 2012, acima de 3.5 bilhões. Comparamos 98% de manufaturados e vendemos apenas 4%, demonstrando assim o grau de desigualdade de valores nas relações bilaterais entre Washington e Brasília.

A qualidade das relações entre Washington e Brasília, malgrado o fato de sermos criadores líquidos de empregos nos Estados Unidos através de uma balança comercial e de pagamentos desequilibradas, não merecemos nenhuma atenção especial dos norte-americanos. Na ocasião da avaliação da cassação do presidente Lugo, os Estados Unidos (e o fiel escudeiro, o Canadá) desacreditaram a avaliação brasileira e influenciaram o embaixador José Miguel Insulza, presidente da OEA, a não acatar avaliação coletiva do MERCOSUL, repetindo – agora no cenário sul-americano – a atuação norte-americana no caso de Honduras.

Por isso mesmo, uma diplomacia ativa na África e na Ásia, com a ampliação e fortalecimento do MERCOSUL, é indispensável para a manutenção do crescimento no Brasil, excluir intervenções estrangeiras no continente e construir um continente socialmente mais justo. Da mesma forma, não se trata de “ideologia”, como querem os críticos obcecados pelas relações norte-atlânticas, mas da geração de emprego e renda no Brasil, no continente e para todos. Mas, para que isso ocorra é necessário uma diplomacia ativa e presente nos diversos fóruns internacionais.

Notas

1) Ao entregar o cargo, em janeiro de 2013, o balanço da gestão de Hillary Clinton é bastante pobre: nenhuma clareza sobre as chamads “Primavera Árabe”, uma virtual alinaça com a Al Qaeda na Síria, crise na Líbia e ausência de qualquer nova percepção do novo equilibrio mundial em ascensão.

2) A lista completa dos nove países que votaram contra a admissão da Palestina dá conta do isolamento da diplomacia americana no mundo: além de Israel, votaram contra: EUA, Nauru, Panamá, Republica Tcheca, Canadá, Palau, Micronésia e Ilhas Marshall.

3) Avi Dichner é um ex-comandantedo Shin Bet, o serviço secreto de Israel, e a declaração é feita no desconcertante filme de Dror Moreh, “The Gatekeepers”, 2012.

4) Ver sobre os chamados “falsos positivos” – a morte de civis pelas FFAA colombianas – o caso dos assassinatos, como foi admitido em 2011 pelo comandante da Força Tarefa Conjunta, de Sucre, visando obter benefícios e promoções: http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/os-inocentes-assassinados-na-colombia

5) Cristina K. utilizou o argumento de “questões internas” – numa referência velada ao Paraguai – para adiar qualquer acordo com a U.E. No entanto, as razões verdadeiras residem no fato de Buenos Aires manter uma séria disputa com a Itália, Espanha e outros países da UE em virtude da conversão da dívida argentina e da nacionalização da empresa petrolífera espanhola.

Coreias: o ‘Pansori’ da guerra de sempre

O “pansari” norte-coreano, um tipo de ópera regional emotiva e dramática, continua sendo tocado, cada vez em tom mais belicoso e alto. Mesmo que consideremos a “fala” da liderança de Pyongyang como “retórica bélica”, sempre existe o risco de um lapso momentâneo da razão.

Internacional

Uma tradicional forma de música da Coréia é “pansori”, que muitos confundem, com uma assimilação indevida, a ópera chinesa. Na verdade, a “ópera coreana”, mais simples, emotiva, com fortes tons dramáticos, é uma velha tradição coreana. O “pansori” é uma música de fundo percussionista – tocada por um só músico ou pelo próprio cantor ou cantora –, com um grande tambor, e um vocalista, que canta ao som de seu tambor uma longa e conhecida história. O jovem líder norte-coreano – Kim Il-un – parece, malgrado suas contínuas condenações ao passado feudal, ter se tornado em exímio executante do “pansori”: a longa e repetitiva canção ao som do grande tambor. Neste caso um tambor de guerra.

O contexto da atual crise

Todos os anos os Estados Unidos e a República da Coreia (ou Coreia do Sul) realizam vastas manobras militares conjuntas – regularmente denominadas normalmente de “Team Spirit” – ou com denominações especificas dependendo da composição e objetivos das forças envolvidas. Tais exercícios, além dos objetivos próprios e claros – testar a prontidão das tropas e manter sua preparação – possuem um importante papel político, como se expressa no seu próprio título (de “Team Spirit”).

Trata-se de reforçar a garantia dada por Washington a Seul do permanente comprometimento dos Estados Unidos com a segurança sul-coreana. Para isso os Estados Unidos mantêm cerca de 37 mil combatentes em território sul-coreano, além de vasta panóplia militar – cerca de 100 caças de combate – e um porta-aviões próximo ao litoral. Muitas vezes, durante a administração de Bill Clinton (1993-2001), os americanos resolveram suspender as operações visando dar provas de boa vontade aos norte-coreanos. Assim, Washington sinalizava seu interesse em negociações, que algumas vezes chegaram a evoluir para um diálogo concreto.

Os termos colocados para o diálogo EUA-República Popular da Coreia (Coreia do Norte) eram centrados em garantias de segurança para ambos os lados. Washington exigia o desmantelamento do programa de mísseis balísticos de Pyongyang (ainda não havia evidências concretas de um programa nuclear para fins militares) e os norte-coreanos exigem uma declaração de não ataque (na prática um reconhecimento “de jure” da existência da Coreia do Norte) e o fornecimento de alimentos e de petróleo.

Durante algum tempo o sistema funcionou, chegando a desembocar nas chamadas “Conversações 4+2” (ou seja, EUA, China Popular, Japão e Federação Russa e as duas Coreias). As conversações, em Beijing, iniciaram em 2003, com avanços mitigados e vários e frequentes reversões de expectativas. Mesmo a Coréia do Sul, com o Japão, lançaram pontes em direção a Pyongyang, originando a chamada “Sunshine Policy” – uma espécie de “déténte” na região.

Após vários movimentos de “stop-and-go”, as partes envolvidos chegam a um pré-acordo em 2005 (troca de desarmamento por alimentos), que, contudo não foi implementado, com Washington (Administração Bush, de 2001-2009) e Pyongyang acusando-se mutuamente de violação das decisões tomadas em Beijing. Em 2009 os norte-coreanos se retiram das conversações e abandonam os termos do pré-acordo.

Os Estados Unidos declaram boicote sobre várias instituições financeiras e sobre o comércio internacional norte-coreano. Estes, por sua vez, revelam a cientistas americanos um vasto programa de enriquecimento de urânio declaradamente voltado para a construção de artefatos nucleares. Os EUA, acompanhados pelo Japão e Austrália, apresentaram várias propostas de sanções internacionais contra o Estado norte-coreano, que são adotadas pela ONU, aumentando a situação de penúria do país.

O Programa Nuclear da Coréia do Norte

Entre 2010 e 2012, Pyongyang faz grandes avanços no desenvolvimento da balística, inclusive a balística orbital, e em testes com arma nucleares. Neste período afundou uma corveta sul-coreana – A PCC 772 “Cheonon”, em 26/03/2010 –, que teria, segundo suas alegações, espionado instalações militares em águas territoriais norte-coreanos, bem como uma avião espião norte-americano e, por fim, trava um duelo de artilharia com o sul-coreanos na altura da Zona Desmilitarizada entre os dois Estados.

Podemos dividir o Programa Nuclear Norte-Coreano nos seguintes desenvolvimentos: Fase I, entre 1956 e 1980, quando Pyongyang recebeu ajuda técnica da ex-URSS para desenvolver, para fins pacíficos, suas capacidades[2]. No entanto, em meio a este período, entre 1973 e 1975, a Coreia do Sul – em choque pela retirada norte-americana do Vietnã e temendo ter o mesmo destino, abandonada pelos seu aliado diante de uma ofensiva comunista – assina um acorde de transferência de tecnologia nuclear com a França, causando forte impacto em Pyongyang (que acelera então seu próprio programa) e, ainda, nos EUA, que exigem a extinção do Acordo Paris-Seul.

Numa Fase II, entre 1980 e 1994, a Coreia do Norte – desta vez ela mesma em pânico pela desaparição da URSS ( que entrara em colapso em 1991 ) e temerosa de um movimento compensatório americano visando unificar a Península em favor de Seul ( e sem a ajuda econômica russa, que sustentava boa parte das necessidades de energia de Pyongyang ), busca a autonomia nuclear através da “Abdul Qader Khan Network” – a famosa rede de proliferação clandestina de tecnologias nuclear promovida pelo cientista paquistanês do mesmo nome, formado na Europa, sendo responsável pela transferência de tecnologias de alto risco para a Líbia, Irã e a Coreia do Norte.

Nesse momento, logo após o fim da URSS, a Coreia do Norte temia tanto a expectativa de um ataque do Seul+EUA, como ainda “cair” numa total dependência da China Popular, uma ex-potência dominante na antiga Coreia. Assim, a arma atômica era considerada como uma garantia dissuasória básica para a sobrevivência do Estado norte-coreano.

Devemos destacar que durante toda a Guerra Fria (1947-1991) os Estados Unidos possuíam, além de grande número de tropas e equipamento sofisticado, um número próximo de 950 ogivas nucleares na Península Coreana ( maior concentração em 1967). A desaparição da URSS causou impacto e pânico na elite dirigente norte-coreana, que sem a garantia soviética, temia o poder americano, sem contrapesos, na Península. Na verdade, os EUA retiraram seu armamento nuclear em 1991, embora a frota americana, com poder nuclear, fosse mantida sempre próxima, bem como a imensa base de Okinawa.

Neste mesmo período, através de suporte técnico russo – cientistas saídos do desastre do fim da URSS – e, principalmente através de engenharia reversa, os norte-coreanos avançam de protótipos de mísseis Scud soviéticos para novas gerações de engenhos balísticos. Mas, em virtude das negociações começadas na Administração Clinton, dá-se o que foi denominado de Fase III, com uma temporária paralisação dos testes nucleares e balísticos de Pyongyang.

No entanto, a partir de 2002 – começo da atual Fase IV –, são retomadas os pesquisas e dão-se avanços concretos. Neste mesmo ano a Administração Bush havia declarado a Coreia do Norte como parte do “Eixo do Mal”, promovendo uma política fortemente agressiva de desestabilização de regimes, como no Afeganistão e, depois, no Iraque. A Invasão do Iraque, em especial, reitera a percepção de risco dos norte-coreanos.

Pyongyang realiza, então, seu primeiro teste nuclear em 2006, seguido de uma nova explosão (subterrânea) em 2009. As represálias das Nações Unidas, lideradas pelos EUA, acabam com as poucas chances de negociações, radicalizando ainda mais as posições norte-coreanas. Os testes nucleares de 2006 e 2009 ocorrem concomitantemente, com claro nexo, com os testes balísticos norte-coreanos de longa distância, um deles sobrevoando o território japonês. Para os observadores internacionais ficava evidente a relação entre a construção dos engenhos nucleares e a criação de vetores (transportes) eficazes de lançamento e posicionamento.

A transparência e acesso às informações é absolutamente limitado na Coreia do Norte – em especial depois que vários “homens de negócios” da China Popular sofreram inexplicáveis acidentes em Pyongyang entre 2006 e 2007. Assim, análises mais realistas dos resultados dos avanços norte-coreanos são precárias. Contudo, a estratégia militar norte-coreana – altamente dependente do pensamento estratégico soviético do tempo da Guerra Fria – engloba a capacidade nuclear em seus dois aspectos básicos. De um lado, a natureza “ofensiva” natural de armas atômicas e, de outro, um percepção dissuasiva do poder nuclear.

Neste sentido, as declarações de Kim Jon-un, “o grande líder”, são bastante esclarecedoras. Numa alocução no último mês de fevereiro (2013), ao explicar o papel da arma nuclear, Kim moraliza a “tragédia” dos países que abandonaram programas nucleares, como o Iraque e a Líbia. Para o dirigente norte-coreano, os dois líderes ao renunciarem aos seus programas nucleares, abriram caminho para a intervenção dos “imperialistas ocidentais”.

No ano de 2012, e logo no início de 2013, em resposta aos desafios de Pyongyang, a Administração Obama retomou as manobras militares na Península. No momento desenvolve-se a Operação “Foal Eagle”, com 40 mil homens, e para abril de 2013 já estão prevista a Operação “Key Resolve”. Aparentemente a Coreia do Norte acredita que tais operações envolvem risco real de ataque.

As próprias agências norte-americanas – CIA, Departamento de Energia, Agência Nacional de Segurança – não estão de acordo sobre as dimensões e natureza do poder nuclear norte-coreano. O que parece certo, no entanto, é a existência de duas modalidades de artefatos. Estes seriam de, no mínimo, quatro, a, no máximo, oito engenhos de urânio enriquecido e de, no mínimo, sete a, o máximo, oito engenhos de plutônio. Tais armas seriam produto de atividades em cerca de vinte duas plantas distribuídas em pelo menos dezoito localidades diferentes, espalhadas pelo país. Haveria, ainda, material selado, pela AIEA de Viena, capaz de servir para a fabricação rápida de outras seis ogivas de plutônio.

A capacidade balística de Pyongyang também é de difícil verificação. A partir da tecnologia “Scud” – envelhecida e precária – e com ajuda de seus próprios técnicos e contribuição russa e iraniana, os norte-coreanos desenvolveram um vasta – em modalidades – arsenal. Sua composição varia desde engenhos KN-1, de 110 km de alcance, passando por Scud-B ( reengenharia atual), de mesmo alcance, a Na-dong A e B, de até 800 km de alcance – com cerca de 300 unidas em inventário comprovado –, chegando ao Na-dong Z, de 3.861 km de alcance ( sem informações sobre as dimensões do inventário).

Porém, os mais temíveis engenhos seriam os Taep´o-dong 1 e 2, de três estágios, e com autonomia de voo de 12 mil km. Em 2012 foram feitos testes inconclusivos com os mísseis orbitais NK SL-1, NK X-2 E O NK SL-X, que teriam colocado em órbita um satélite “mudo” norte-coreano.

Um poderoso exército convencional

Mesmo que não tenhamos quaisquer certezas sobre a panóplia militar não-convencional norte-coreana, é possível que tudo isso exista. A dúvida reside na sua operacionalidade e no número de unidades existentes e disponíveis em inventário – temos, em verdade, um poderoso exército de terra.

As forças sul-coreanas, embora sofisticadas tecnologicamente, são pouco numerosas e o contingente norte-americano estabelecido na Península é de 37 mil homens, além de cerca de 50 mil existentes no Japão ( em especial em Okinawa ) e prontos para um deslocamento rápido para o teatro de operações.

Contudo, a República Popular da Coreia possui um dos mais vastos exércitos do mundo – tecnicamente a quinta força de terra do planeta. Suas FFAA – o Exército do Povo – estão divididas em cinco grandes “braços”: a Força Terrestre, Marinha, Força Aérea, Força Estratégica de Misseis ( nuclearizada ), Força de Operações Especiais e, em fim, a Guarda Vermelha de Operários e Camponeses.

Tais forças custam até 25% do PIB do estado norte-coreano – mais uma vez trabalhamos com dados contraditórios e precários! – de cerca de 40 bilhões de dólares. O efetivo real sob bandeira é de 1.106 mil homens e outros 8.200.000 homens e mulheres são mobilizáveis e possuem intensa, e doutrinaria, formação militar.

É possível que o conjunto das FFAA, a Chosen´gul, seja composta de 153 divisões completas e treinadas, 60 divisões de infantaria, com 14 mil homens; 25 divisões mecanizadas; 38 regimentos de carros de combate, com 6000 tropas; 25 brigadas das Forças especiais e 30 regimentos de artilharia ( com 8000 tropas) e 235 brigadas da Guarda Vermelha – tais dados são, é bom que se diga mais uma vez, confusos e mesmo a terminologia ( divisão, brigada, regimento ) possuem pouca correspondência com os corpos militares ocidentais.

De qualquer forma, o “pansari” norte-coreano continua sendo tocado, cada vez em tom mais belicoso e alto. Mesmo que consideremos a “fala” da liderança de Pyongyang como “retórica bélica”, sempre existe o risco de “um lapso momentâneo da razão”, como diria o Pink Floyd.

O perfil do assassino

Após homicídios em massa, busca do público por explicações oscila entre loucura e ideologia.

O GLOBO, caderno Prosa & Verso

O atentado de Boston, em 15 de abril, chocou a opinião pública. Após breve hesitação, o FBI e a presidência dos EUA classificaram-no como um ato terrorista. Tratava-se, claramente, de uso de violência, com armas de destruição em massa, contra civis, com objetivo de atingir o poder constituído. Terrorismo clássico. Quando, por meio das onipresentes câmeras de vigilância, surgiram os primeiros retratos dos suspeitos, os irmãos Tamerlan e Dzhokhar Tsarnaev, de 26 e 19 anos, irrompeu uma nova vaga de espanto: eram membros “incluídos” da comunidade local, com acesso à universidade — engenharia e medicina —, além de histórico esportivo e de participação coletiva, incluindo uma disputada bolsa de estudos. Os testemunhos de amigos, colegas e vizinhos davam conta de jovens comuns, sem qualquer indício de uma breve explosão de violência, sendo Dzhokhar considerado inclusive “popular” — referência ambicionada entre jovens americanos.

Apenas no caso de Tamerlan — o irmão mais velho, ex-estudante de engenharia, esportista, casado e com uma filha de três anos — havia uma única frase, em um meio eletrônico, na qual dizia “não ter amigos, não entender os americanos”. Havia, ainda, notas ruins seguidas — mas, naquele ponto, ainda não se sabia que ele estivera longo tempo fora dos EUA.

Este foi o ponto de partida para a criação rápida e superficial de um diagnóstico de “inadequação” ou “incapacidade adaptativa” para explicar o comportamento de Tamerlan. Em seguida, o tio dos suspeitos, enquanto falava à imprensa chocado e colérico, chamou os sobrinhos de losers, fracassados, um forte adjetivo desabilitante nos meios norte-americanos. Assim, o “perfil psicológico” de ambos — incluindo o “popular” Dzhokhar— foi montado para explicar a ação dos irmãos Tsarnaev.

De ‘inadequação social’ a ‘radicalismo político’

A mídia americana — tanto a conservadora quanto a “liberal” — rapidamente construiu um caso sobre a patologia social dos irmãos Tsarnaev. Na mesma esteira, a mídia brasileira abraçou tal análise, trazendo os brutais atentados de Boston para o âmbito do terrível tiroteio de Sandy Hook/Newtown, Connecticut, em dezembro de 2012. Assim, tratar-se-ia de um caso de inadequação social, possivelmente de alguma psicopatologia. Tal versão, rapidamente aceita entre nós (“claro, quem mata inocentes só pode ser louco!”), foi divulgada por vários comentaristas, jornalistas e cientistas sociais.

Sob essa ótica, Sandy Hook, em 2012, e Boston, em 2013, deveriam ser examinados sob a mesma luz, bem como o duplo ataque de Anders Breivik, na Noruega, em 2011. Neste caso, um jovem educado, branco, de pouco mais de 30 anos, com recursos e trabalho, decidiu matar seus conterrâneos e destruir a sede do governo democrático e transparente de Oslo. Deveria haver algo errado com o jovem, já que a Noruega estaria acima de quaisquer suspeitas (mesmo que abrigue uma ativa comunidade de extrema-direita racista). Da mesma forma os quatro jovens alemães de Zwickau, cidade industrial próspera e de pleno emprego na Alemanha, deveriam ser doentes por planejar e executar o assassinato de 11 pessoas, sendo 10 de origem turca.

No entanto, as respostas fáceis logo desabaram, como desabaram nos casos de Oslo e de Zwickau, na Alemanha. Sem dúvida, em Sandy Hook, em 2012, e em Realengo, no Rio, em 2011, estávamos em face de uma crise pessoal e psicológica profunda, da qual não temos, no momento, material de qualidade para examinar. No caso dos jovens assassinos de Realengo e de Sandy Hook podemos ver um surto psicótico em desenvolvimento. Porém, nos casos de Beate Zschäpe e seus dois parceiros de Zwickau, dos irmãos Tsarnaev e de Anders Breivik, temos claros objetivos e envolvimentos políticos, cobertos ou não por ideologias bem especificas.

Beate e seus amigos Uwe Mundlos e Uwe Bohnhardt compunham uma rede que se intitulava “Clandestinidade Nacional-Socialista“ (ou seja, nazista). Anders Breivik nutria claro ódio contra negros, árabes e mestiços e acusava-os de conspurcar a raça nórdica de seu país, além de advogar uma forte islamofobia. Por fim, a imprensa americana relatou que Dzhokhar teria declarado às autoridades que o atentado foi uma resposta à ação americana no Afeganistão e no Iraque. Em suma, a área de conforto da explicação fácil desabou. Nada provaria um “problema pessoal” e, sim, uma “questão social e política”, como diferenciaria o sociólogo Wright Mills.

Ruía também um último esforço do “politicamente correto” — “não devemos falar que eram muçulmanos ou supor ligações com redes terroristas” —, esquecendo, contudo, que, com seu diagnóstico de psicopatologia, retratavam pessoas caladas, diferentes e casmurras como potenciais terroristas. A “zona de conforto” agradava a todos: o FBI (que deixara escapar uma preciosa informação dos russos), a presidência dos EUA, a família Tsarnaev e a população em geral, posto que “problemas pessoais” e “pessoas que surtam” — numa psicologia prêt-à-porter que explica tudo no caso “do outro” — são sempre possíveis.

Contudo, depois de idas e vindas, uma junta médica declarou Breivik capaz e determinou que ele deveria submeter-se a um julgamento comum. Beate Schäpe, a única sobrevivente da “Clandestinidade Nacional-Socialista”, começa a ser julgada na Alemanha. E Dzhokhar foi formalmente indiciado ainda no hospital.

Motivações políticas, ideológicas e religiosas são, sim, capazes de mobilizar indivíduos e mesmo massas para o mal. Este se banaliza, como já foi descrito, e existe no cotidiano, ao nosso lado. Instituições e entes poderosos cultivam o ódio e imprimem em pessoas — em qualquer uma ou precisamos de um contexto e de uma história de vida singular para isso? — a vontade de matar. Por isso são redes, materiais ou imateriais, mas sempre redes com objetivos e métodos. Devemos mudar o nosso lugar de observação, enxergar no outro uma dor que não vemos do nosso próprio lado de conforto, e lutar contra isso. Se possível, contra a causa da própria dor. Caso seja impossível, deve-se utilizar a lei, penalizar o ódio e sua pregação e qualificar os crimes daí decorrentes.