Imperialismo, Etnocentrismo e Arabicidade perante a questão do Islã Militante

“Senhor, alivia-me o peito, pediu Moisés,

E facilita minha tarefa,

E desata um nó em minha língua

Para que todos me compreendam…”

(Moisés, citado no Santo Corão, Surata XX, Taha, Versículos 25-28).

Em meados do século XIX, a partir de uma literatura de viagem (mais tarde reforçada por uma antropologia colonial) saturada de evolucionismo e etnocentrismo, emerge uma, então, “nova” visão dos povos africanos, asiáticos, polinésios e australianos baseada nos princípios ditos “científicos” em ascensão na Europa.

Juntar-se-ia a uma já vasta coleção de textos e considerações, desde os primeiros momentos do “contato” que formaria uma coleção infindável de característica física e cultural, de ritos e costumes considerados bizarros e mesmo escatológicos sobre os povos “primitivos”.  Na sua grande maioria, buscavam, via comparação, comprovar a superioridade do homem ocidental, de sua cultura – incluindo aí sua religião, forma de governo (quando existentes-visíveis), economia e seus costumes e hábitos – e, claro, sua “raça” em relação aos demais povos. Com sua típica obsessão “cientifica” em catalogar e “tipificar” , exploradores, médicos, antropólogos, botânicos, zoólogos ou simples aventureiros (além, claro, de missionários) escreveram e publicaram imensos “catálogos das diferenças” que deveriam comprovar a originalidade de um “nós” europeu – branco, cristão e civilizado – e um “eles” – bárbaro, ou mesmo selvagem, com todos os caracteres daí decorrentes.  Algumas vezes, “selvagens” foram levados para Europa e exibidos em feiras e “mostras cientificas”, lado a lado, com animais e artefatos, para grande divertimento e espanto das novas classes médias ilustradas europeias, formando-se verdadeiros “zoológicos humanos”. “Aldeias” inteiras foram recriadas em Paris, Londres e Bruxelas para que a população europeia pudesse observar como viviam os selvagens, como no caso de jovens javanesas durante a Exposição Universal de Paris de 1889 ou hotentotes e boxímanos levados para Londres. Algumas vezes, como no caso do famoso “cowboy” Coronel William Frederick Cody, autodenominado “Buffalo Bill”, viajou com seu circo “Wild West Show” pela Grã-Bretanha, França, Alemanha e Espanha, em 1887, levando “peles vermelhas” autênticos, que participavam de espetáculos de roubos, cavalgadas, ataques e lutas contra diligencias e comboio de homens brancos na simulação de sua “civilizada” marcha para o Oeste americano[1].

Jovens Javanesas expostas durante a Exposição Universal de Paris, 1889. In: http://www.museudeimagens.com.br/zoologicos-humanos/.

A literatura de viagem, seja a pretensamente cientifica, seja a meramente “aventuresca”, e mesmo aquela nascida “nos trópicos”, algumas vezes com valor estético indiscutível – como em Joseph Conrad (1857-1924) ou Rudyard Kipling (1865-1936) – forneceram os elementos chaves para a construção desta díade “nós” / “eles” que permitiria o avanço, sem culpa, dos Imperialismos europeus (ou norte-atlânticos em geral, considerando os Estados Unidos, a partir da Guerra Hispano-Americana de 1898) e imposição de um modo de vida – capitalismo, cristianismo, família ocidental, direito positivo, propriedade privada, etc… –  que redundariam numa profunda desordem das formas “não-ocidentais” de organização da vida comum. Tratava-se de ver no “Ocidente”, contraposto a um “Oriente”, a única racionalidade possível na organização da vida e das instituições. Tal “contato” entre civilizações, ora brutal, conquistador e mesmo aniquilador, como na Argélia, Madagascar, Havaí ou Sudão, ora insidioso e desorganizador, como na Índia e Egito e, por vezes, informal e distante, mas capaz de impor sua vontade, como no Irã (antiga Pérsia) ou Tailândia (antigo reino do Sião) exerceu uma pressão suficiente para desorganizar as formas anteriores de reprodução social e criação simbólica e, ao mesmo tempo, impor formas e redirecionar outras, antigas e tradicionais, em função dos interesses do processo de enriquecimento das economias metropolitanas[2]. A violência e iniquidade das Guerras do Ópio (1839-1842 e 1856-1860) são, talvez, o exemplo mais visível, mas de forma alguma único, do brutal “contato” entre civilizações na Época dos Imperialismos.

A constituição, na Europa e América do Norte, de disciplinas “científicas” no século XIX – como a medicina, o higienismo, a antropologia e a sociologia e a psicologia, quase sempre com forte cunho de darwinismo social – viriam a dar suporte a estas “diferenças” básicas entre Ocidente/Oriente, valorizando a superioridade ocidental.

Tais colonialismos do século XIX entendiam, ora uma incapacidade inata dos povos genericamente ditos “de cor” ou “coloniais” em “evoluir” em direção ao “estado civilizado” europeu, possibilitando a sua pura e simples aniquilação – como no caso do genocídio dos hereros da Namíbia alemã entre 1904 e 1907 – ora, entendiam que tal “evolução” só se daria muito lentamente ao longo da adoção de instituições europeias por parte dos “nativos” – como na Índia. Em ambos os casos a presença colonial era, por isso mesmo, necessária, benéfica e justificada. Assim, a impunha-se a ideologia do chamado “The White Men´s Burden” (“o fardo do homem branco”), ou seja, o colonialismo e o seu “fardo” – a obrigação de viver nos trópicos tolerando seu calor e incômodos, longe de seus rincões verdejantes na Inglaterra ou na França – como escreve Rudyard Kipling incentivando os Estados Unidos durante a Guerra Hispano-americana (1899-1902) a tomar para si “o fardo de civilizar” as Filipinas[3].

Em alguns casos, como na China e no Mundo Árabe, era bem mais difícil justificar a ocupação e a presença colonial, posto que tais culturas já tivessem sido focos de brilhantes civilizações no passado, atestados na arquitetura e na literatura. Nestes casos, uma longa história de “decadência” e de “degeneração” se impunha como narrativa explicativa para uma civilização antiga, como a árabe, que tinha sido tão poderosa a ponto de ameaçar o Ocidente cristão, e que então, no século XIX, encontrava-se prostrada sob a tutela nominal do Sultão-Califa da Turquia Otomano.

A proximidade do mundo muçulmano em face da Europa e a precocidade da expansão europeia em direção ao Oriente (corretamente dito) Próximo produziu, desde meados do século XIX uma vasta literatura sobre a “inferioridade” dos árabes. A França, que iniciara a ocupação do Norte da África, pela Argélia desde os anos de 1830, deu a partida no processo de justificativa “científica” do colonialismo via a inferiorização do povo árabe.

Viajantes, diplomatas, comerciantes e mercenários que viveram em cidades muçulmanas e prestaram serviços às autoridades muçulmanas – árabes, turcas ou berberes do norte da África – criaram, desde os anos de 1830-1850, uma vasta literatura sobre o exotismo do mundo muçulmano, disputando entre si, via narrativas cada vez mais escabrosas, um público europeu ávido por folhetins escandalosos, numa época em que a imprensa vinha se tornando cada vez mais popular. Assim, narrativas sobre estranhos hábitos, em especial uma sexualidade lúgubre e uma devassidão generalizada, invadem a Europa a partir de 1850, quando médicos e “higienistas” franceses acompanham as tropas e os colonos que vão se estabelecer em Argel.

Na década de 1930, culmina na emergência de uma “escola” de psiquiatria francesa, dirigida pelo médico Antoine Parot (1876-1965), voltada para o estudo da “inferioridade mental dos povos árabes” do Norte da África, comprovando-se de “forma cientifica” sua incapacidade para o autogoverno. Defendia-se a tese de um inato “primitivismo” mental dos povos árabes -, o que provocará um forte, e decisivo, impacto no jovem médico Frantz Fanon e sua consequente ação modernizadora e emancipadora no hospital psiquiátrico de Bilda-Joinville, na Argélia [4].

Esta narrativa “primitivista”, muitas vezes expressa sob a forma de “infantilismo polar” do árabe, que oscilava entre a idiotia e a perversão do nativo, irá povoar os romances, os folhetins baratos e em seguida os filmes de aventura dos grandes estúdios cinematográficos, conformando as mentes de milhões de pessoas no Ocidente sobre a “natureza” do árabe  e resumindo-se em tudo que poderiam saber sobre o “Oriente” [5].

A história, e visão dos árabes, desde então, passou a ser uma espécie de negativo da vida pretensamente regrada e civilizada do europeu, emergindo daí uma clara dicotomia entre Ocidente/Oriente numa díade positivo/negativo sempre desfavorável à emancipação e a independência dos países coloniais, que deveriam, por razões cientificas, ficar sob controle colonial[6]. Ainda no auge dos Impérios coloniais – apenas a Alemanha havia sido despojada do seu em Versalhes em 1918-19 – Hollywood estreia o modelar “O Ladrão de Bagdá” (The Thief of Bagdad, 1924), dirigido por Raoul Walsh (1887-1980), apresentando ao grande público – o imenso público de cinema de então – os diversos pastiches do “Oriente”, seus encantamentos – tapetes voadores, lâmpadas mágicas, gênios, cavernas dotas de vontade e, claro, uma população de ladrões, vagabundos, mentirosos – e suas figuras arquetípicas, normalmente os políticos – califas, “vizires”, chefes de guarda sádicos e princesas, comerciantes sórdidos, mentirosos e aproveitadores com os quais qualquer negócio é duvidosos. O filme de Walsh, com a colaboração inestimável de construção corporal de personagem de Douglas Fairbanks (1883-1939), criaria – e trata-se a bem da verdade de uma “invenção” na história – de uma Bagdá mítica, sensual, perigosa e encantada onde princípios éticos “fundamentalistas” convivem com a traição, a magia, a pobreza e a honra com a humilhação. O caminho aberto por Walsh/Fairbanks fará história, pautando com seu filme – sem dúvida a obra mais coreográfica e cinematográfica até então realizada – a visão do público ocidental sobre este “Oriente” mostrado por esta Bagdá de papelão e gesso colorido[7].

O cinema do século XX, talvez bem mais que a literatura do século XIX, foi o responsável pela popularização dos traços centrais da “explicação da degenerescência” que a civilização árabe tenha sofrido e, por esta via, explicar-se-ia sua decadência. Ao seu lado  dá-se a invenção, por comparação ao legionário europeu, o colonizador, o lanceiro de Bengala, e demais tipos, um “contra-tipo” árabe infantilizado, lascivo, mentiroso e cruel.

Poucas vezes o cinema ocidental buscou uma representação digna do mundo árabe. Talvez a única exceção – e assim mesmo para valorizar um personagem europeu por “entender” os nativos – tenha sido no grandioso filme de David Lean (1908-1991), “Lawrence da Arábia”, de 1963, onde as intrigas e os interesses colonialistas britânicos, o racismo explícito dos oficiais, ficam nitidamente desmascarados, evidenciando o caráter pérfido da política europeia em relação aos povos coloniais do Oriente Médio. Mas, de qualquer forma, os árabes, mesmo quando lutam – em “Lawrence da Arábia” são aliados -, não possuem objetivos ou regras, se comportam como salteadores e ladrões, sem quaisquer relações com a honra e a disciplina militares, observadas por Lawrence com certa tristeza. Muitas  o oficial britânico mostra-se perplexo pela ausência honra militar de seus protegidos, exceto na mais alta nobreza dos hachemitas.

Assim, da literatura do século XIX, com Rudyard Kipling (1865-1936) com sua genialidade etnocêntrica e culturalista, até a massificação fílmica do século XX, o mundo colonial, e em especial árabe, surgiu sob um conjunto simples e facilmente identificável de traços culturais apontando para a ignorância, infantilização, fanatismo, pobreza, credulidade e sensualidade.

Com Frantz Fanon a “infantilização” assumiria condição de conceito  psicanalítico – incluindo aí traços de perversidade, vaidade e indisciplina –  elementos constantes na construção do “outro” árabe em face de um “europeu” adulto, racional, sensato e responsável. Assim, essa “infantilização do homem árabe”, seja o “idiota” fanfarão, sexomaníaco, fanático, seja o fanático e perverso, é incapacitado e distanciado dos valores “universais” de um “Ocidente” adulto e racional, e portanto claramente considerado incapaz[8]. Tal “infantilização” é bastante evidente, por exemplo, no clássico, hollywoodiano, “Gunga Din”, de 1939, dirigido por George Stevens (1904-1975), a partir de um poema de Rudyard Kipling, onde um jovem nativo – o personagem título Gunga Din – de idade incerta, infantilizado como um “scort” da tropa – , sonha em ser “um soldado da Rainha (Vitória)” e só vê sua realização como indivíduo, enquanto pessoa, no Outro absoluto, no colonialista que ocupa e saqueia o seu próprio país – literalmente – o seu próprio povo. Nesse espelho perverso,  o exército colonial britânico é a única realização possível de Gunga Din enquanto persona. O poema de Kipling, neste caso, encaixa a perfeição, no processo descrito por Frantz Fanon de “interiorização do colonialismo” na realização do Eu exclusivamente enquanto projeção do colonizado no colonizador. Neste sentido o filme de Stevens, mais uma vez com a participação primorosa de Douglas Fairbanks, é uma obra-prima da aniquilação do Eu como um processo fundamental do fenômeno colonial e da negação dos aspectos mais brutais do Imperialismo[9].

Outra forma de tratar o “Oriente”, era ignorá-lo: houve um tempo do silêncio; o tempo das independências dos países árabes, em especial entre os anos de 1950 e 1970, quando praticamente as grandes aventuras do cinema se deslocaram da região. Com a guerra de independência da Argélia e o nasserismo campeando no Egito, e o pan-arabismo por quase todo O Oriente Médio, foi difícil manter a visão de credulidade e ignorância ingênua apostas ao homem árabe. Algumas produções, poucas em verdade, na maioria das vezes em circuitos alternativos, deram uma visão alternativa, dura da luta pela libertação do colonialismo. É desta época, 1966, o incrivelmente tenso filme de Gillo Pontecorvo (1919-2006) “A Batalha de Argel”. Agora, o árabe, no caso o argelino, organizado e combatente, surge com uma imensa capacidade política, engenhosidade, sangue frio e sentido de coletividade. O traço de violência desloca-se do perverso, infantil e fanático, para a luta coletiva pela liberdade e o cálculo político, abrindo um debate que envolveria os grandes nomes da filosofia e da política contemporânea, como Jean-Paul Sartre, Merleau-Ponty, Marcel Camus e o próprio Frantz Fanon sobre a mística do Terrorismo e que irá, em pouco desembocar, via a emergência do movimento negro antilhano, nos “Panteras Negras” nos Estados Unidos[10].

Mais tarde, por um curto espaço de tempo – a ilusão duraria pouco – os mujahidins, os chamados combatentes da liberdade pelo então presidente Ronald Reagan (1981-1989), foram chamadas às telas para ilustrar o “valor” combatente muçulmano. Eram tempos da “Segunda Guerra Fria” (1979-1991), quando o Presidente Reagan valia-se do fundamentalismo islâmico para combater o “Império do Mal” no Afeganistão – referência à invasão do país pelos soviéticos em 1979.  Talvez, os mujahidins ou “combatentes da liberdade” afegãos fossem um tanto bárbaros e fanáticos na sua luta contra os soviéticos, mas ciosos da sua liberdade e da sua filiação ao lado do “Ocidente”, como no fanfarão filme Rambo III (direção de Peter MacDonald, 1988), traz para o grande público ocidental uma mensagem positiva de um guerreiro muçulmano antissoviético, bastante adequado para a propaganda americana. Mais uma vez trata-se de um indivíduo indisciplinado, reunido em pequenos grupos, que não luta num exército disciplinado e não obedece a regras, mas usa sua ferocidade na defesa da terra e da sua fé, perverso na luta, limitado e preconceituoso. Só que agora não importava, posto que matasse comunistas.

Tal ilusão duraria pouco. Logo após 11 de setembro de 2001, ou mesmo antes, quando de ataques muçulmanos a alvos americanos como o desastre de uma missão na Somália em 1993 – origem de “O Falcão Negro em Perigo”, de Ridley Scott, em 2002 – ou os ataques contra as embaixadas no Quênia e Uganda em 1998, o muçulmano, e em especial o árabe, passa a ser visto como o substituto ideal para o “soviético” impiedoso das franquias cinematográficas e series televisivas do tempo da Guerra Fria[11].

A partir deste momento, a fala árabe – e de outras culturas – tornou-se, para o Ocidente, a fala do radicalismo islâmico. A publicação, primeiro como artigo e depois como livro, de “Choque de Civilizações”, de Samuel Huntington, em 1996 (o artigo é publicado na revista “Foreign Affairs”, em 1993) veio aprofundar ainda mais a díade Ocidente/Oriente como construções identitárias opostas e retroalimentadas.

Mesmo que bons intelectuais na Europa, em especial em países com forte presença muçulmana, como França, Inglaterra e Alemanha, tenham ainda por um tempo, apostado no multiculturalismo, à chegada ao poder de partidos mais “nacionais” ou a conversão de antigos partidos universalistas a uma posição mais “nacional”, em especial frente à maré conservadora e xenófoba em ascensão (em especial na Inglaterra, França e Alemanha, com o “Front Nationale”, a “Alternatif für Deustschland”, o fenômeno do “Brexit”, etc…), o fosso entre uma visão do “nós” e o “eles” aprofundou-se e espraiou-se por amplas camadas populares.

A expansão e intensificação dos atentados terroristas do ISIS/Daesh, entre 2016/2018, só veio ampliar tal fosso e construir uma imensa “zona cinza” de relacionamentos mutuamente povoado de incompreensão, desconfiança, raiva e preconceito entre cidadãos de origens árabes e europeus. Esta “zona cinza” é ainda mais perigosa posto ser mais concreta, real, nas relações diárias entre as camadas sociais mais populares (e atingidas pela crise econômica e o desemprego decorrentes da Crise de 2008) que colocam face a face camadas médias de brancos europeus e europeus de origens árabes, turcos e demais procedências muçulmanas. Assim, nestes grupos, no dia-a-dia a possibilidade da emergência do desafeto é crescente e o preconceito se enraíza.

Ante a desconfiança e o preconceito os grupos de “beurs”, turcos, “blacks” e outros tendem a se refugiar em suas identidades originais, muitas vezes reconstruídas e imaginadas. Jovens, filhos da imigração, passam a usar véus ou a jalaba e muitos se convertem a formas mais integristas do Islã, buscando uma comunidade imaginária onde se sintam parte integral de algum passado e encontrem uma solidariedade e uma história que de sentido a toda uma vida marginalizada. Normalmente, e eis que aqui a “fuga” para uma identidade reconstruída emerge como um novo problema, tal reconversão se dá em direção a um Islã que não consegue conviver com uma sociedade envolvente laica, consumista e permissiva.

Abrem-se as portas para grandes e trágicas possibilidades de choque. Principalmente porque o Islã integrista não reconhece um elemento central da construção das modernas sociedades ocidentais: a distinção das esferas do agir público e das escolhas da vida privada.

É aí, na profunda interconexão, ou mesmo indistinção, entre agir público e vida privada, no caráter exteriorizado, quase “codificado” do Islã – o que explica a relevância da adoção da “Charia” [12]-, que surgem as diferenças culturais mais valorizadas por proeminentes representantes, radicalizados, do “contato” ou “choque” entre Oriente/Ocidente. Um ponto polêmico, e sempre explorado, reside na certeza do integrismo muçulmano – e de todo fundamentalismo –  de que não é possível a salvação da alma individual com descompromisso com as condições materiais e do agir público do próprio fiel, com sua vida cotidiana e sua relação com a sociedade envolvente, com o todo. Um só ato “haram”, pecaminoso, um ilícito, ou um indivíduo que insiste neste ilícito, pode prejudicar toda a comunidade. A escolha individual, a prática religiosa própria e adequada de cada um, não é para tais rigoristas o suficiente: toda a comunidade, a “ummah”, deve ser igualmente “temente” e isenta da presença do ilícito – o que explica a insistência em converter todos em sua volta[13].

A própria presença da noção de “haram”, podendo ser traduzido para além de pecado por “lícito”, evidencia a íntima relação entre o Direito, incluindo o Direito Público e Constitucional, e a religião no mundo arabo-muçulmano. Aqui reside uma das incompreensões básicas na percepção do Ocidente sobre o Islã, muitas vezes esquecendo-se do papel do Direito Canônico, da primazia do papel da religião nas sociedades de Antigo Regime no Ocidente e mesmo nos países coloniais – o padroado, no Brasil, por exemplo, ao menos até o século XVII e as soluções encontradas nos chamados Tratados de Vestefália de 1648.

O Islã, ao contrário, indistingue a esfera pública e a esfera privada na sociedade, buscando no agir político uma integralidade evidente com a fé, a partir do que se define o licito (“halal”) e o ilícito (“haram”). Assim, um poder político que permita o “deboche” – uma referência aos costumes e formas de comportamento públicos considerados excessivos ou imorais, como no Ocidente -, os vícios e o relaxamento dos costumes – muito especialmente em relação à família heteronormativa, no mais das vezes patriarcal e autoritária  – não poderia, nunca, ser um regime considerado justo e temeroso à Deus pelos islâmicos[14]. A principal fonte do debate não reside, por exemplo, na origem ou no caráter democrático de um regime político, mas no fato de ser, ou não, temente à Deus. Para os rigoristas o principal mérito de um Estado é ser pio, submetido à vontade Divina e seguidor das regras estabelecidas conforme o Corão e a Charia e os Hadidts. Evidentemente, eleições diretas – como no Irã e recentemente no Egito e Tunísia, são plenamente aceitáveis, dentre condições que não permitam colocar em risco ou renegar a fé do Profeta, impondo-se, desta forma, um controle superior, religioso, à expressão da vontade popular.

A ideia, de origem europeia, racionalista e iluminista, consolidada no Ocidente do século XVIII, de separação entre a esfera da vida pública, onde vigem critérios laicos, e a vida privada, de livre escolha do indivíduo e de não intervenção do Estado, por exemplo, na educação dos filhos ou na gestão doméstica – no âmbito esfera privada está a casa, a família, a religião – não seria, para estes setores rigoristas do Islã, aceitável[15]. Eis aí as bases de um forte debate. Mas, note bene, um debate interno ao Islã, onde correntes ditas “moderadas”, “progressistas”, que muitos denominam – conforme a imprensa egípcia incialmente o fez nos anos de 1930 – de “Islã das Luzes”, colocam-se claramente contrários à imposição estatal da fé e dos costumes daí derivados, através do código legal-religioso da Charia. A imposição da Lei Islâmica, na forma da Charia, tornou-se, contudo, o imperativo básico dos movimentos rigoristas, desde os Talibãs, até a Al-Qaeda, passando por entidades como o Boko Haram, na Nigéria, e o autodenominado “Califado Islâmico”, na Síria-Iraque.

Desde o século XIX, no entanto, primeiramente no Império Otomano, depois na Pérsia e no Egito, surgiram movimentos favoráveis à adoção de uma legislação civil, não religiosa, abrindo um amplo debate nas sociedades muçulmanas contemporâneas. Particularmente no âmbito do Direito Constitucional, onde estão as regras que vigoram na relação do Estado com a cidadania, e no âmbito do Direito Civil referente à família, dá-se um forte embate entre as correntes religiosas mais rigoristas e o Islã modernizante. Tal debate, desde os anos de 1920, levou, também, a emergência de forma reativa de entidades rigoristas, contrárias à superação da Tradição, passando uma boa parte da intelectualidade (e da população) a rejeição de qualquer tipo de “modernização” ou “inovação”, considerando tais “importações”, identificadas com o poder colonial imperialista e a intervenção estrangeira, como “bid´ah” (“inovação” indevida), e, portanto, ilícito, “haram”[16]. Não há, entretanto, de forma alguma, uma visão única, homogênea, neste debate e nem mesmo os rigoristas são unificados sob uma única corrente de opinião ou mesmo majoritários.

No Ocidente a emergência da diferenciação entre público e privado foi, exatamente, uma resposta às terríveis guerras de religião que sacudiram a Europa entre 1517 (Proclamação das Teses de Lutero) até o século XVII. A resposta de intelectuais e políticos (muito especialmente depois dos Tratados de Vestefália, de 1648) foi deixar para esfera das escolhas privadas a questão religiosa, mantendo-se uma noção superior à pertença religiosa: primeiro de “leal” súdito e, com advento das Repúblicas, de “cidadão”. Contudo, mesmo nos dias de hoje, setores influentes nos Estados Unidos e na Europa – e agora no Brasil – exigem uma postura regressista do Estado sobre casamento, aborto, união civil de gays, condição feminina, etc.. o que viola a clássica noção de um Estado laico, acima é indiferente às escolhas religiosas de seus cidadãos e sua incidência na vida particular de cada um. Assim, muitos rigoristas, na confluência com os fundamentalismos, defendem que seja regulada e imposta pelo Estado normas e costumes ao conjunto dos cidadãos, mesmo aos não religiosos ou aqueles com entendimento religioso diverso, impedindo a livre escolha dos indivíduos. Na verdade, em vários países ocidentais e em jovens nações africanas de dominância evangélica (e onde agem missionários ocidentais) a liberdade de escolha sobre família, costumes e gênero é fortemente combatida[17].

O Islã, para os clérigos mais conservadores e integristas, em face dos graves vícios e danos da vida moderna (mais uma vez a ênfase recai na família arcaica normativa ) duvida da resposta gerada no Ocidente e na sua capacidade de forjar pessoas íntegras e felizes, apontando para a disseminação do uso de drogas, o sexo pré-marital e de doenças como o sintoma de uma crise terminal. Muito especialmente o divórcio e o adultério, ao lado da homossexualidade, são vistos como fontes da infelicidade e de ofensa à “ummah” – o conjunto dos fiéis, além de imperdoável “deboche” nos costumes. Neste sentido para estes segmentos religiosos o Islã tornou-se uma forma de ação política, já que define tarefas para o Estado, remetendo a uma antiga polêmica sobre a natureza da primeira comunidade de fiéis em Medina após a vitória do Profeta sobre os idólatras de Meca.

Já naquele momento, em 630, colocava-se a questão da união, na pessoa do Profeta, do poder político – comandando do Exército, Juiz, distribuidor de ajudas e do butim de guerra – com a figura do “pregador enviado por Deus”. A questão, colocada pelo teólogo Ali Abdemaziq, em 1925, sobre a natureza da comunidade de Medina e o papel do Profeta – voltando-se para uma passagem do Antigo Testamento, aceita e incorporada pelo Corão onde se afirma: “… os Profetas são eleitos de Deus, poucos reis o são” – implicava em abrir em brecha a unicidade do poder espiritual e secular no Islã (e assim na própria natureza do califado), prometendo, por esta via, uma ampla reforma do Islã. Este compreendido como a soma do Corão, da Charia e dos Hadiths, mas afirmando que enquanto o Corão é “dinâmico”, a Charia e os Hadiths, logo a Tradição ou “Suna”, são históricos. Como obras históricas são interpretáveis, ao contrário da dinâmica de um Corão “incriado”, eterno e divino. Textos históricos, são obras de um grande número de homens que viveram nos três séculos após a morte do Profeta, são, portanto reformáveis e passíveis de interpretação. Aqui residiria a chave da “Grande Discórdia” – a chamada “Fitna Kubra” [18]-, aberta pelas reformas na Turquia Otomana, na Pérsia e na emergência do “Islã das Luzes” no Egito e Síria, contra os quais se ergueriam a autoridade dos “antigos”, os “Predecessores das primeiras gerações” de seguidores do Profeta, os denominados “salafi” ou salafitas, os antigos[19]. E em primeiro lugar os “antigos” da Arábia Saudita, recém-fundada, onde a família Saud – para garantir seu trono contra a família Hachemita de Meca – alia-se estreitamente ao “salafismo” de tipo “wahabita” ultra ortodoxo, mas voltado para o cumprimento da Charia do que para uma interpretação solidária e generosa do Divino Corão – é opção pela conservação em face da caridade. Uma versão “teocrática” da “ummah” de Medina, desde 630, é atualizada, tornando a história do Islã “presentificada”, imóvel e inspirada num conjunto de obras que são, indevidamente, ditas como “reveladas”: o Corão, a Charia e os Hadiths, com ênfase nos dois últimos corpos de leis (a “Fiqh”) – o que os teólogos “das Luzes” do Islã não poderiam aceitar.

O Corão jamais poderia estar em igualdade com a Charia e os Hadidts.

Para estes “antigos”, desde os primeiros tempos da expansão muçulmana, a política num país convertido é islâmica ou então estranha ao Islã, e logo ímpia. Uma política pia, centrada na Charia, seria a única possibilidade de evitar a perda das pessoas frente a um Estado moralmente relaxado. O Estado laico seria visto como um Estado sem Deus, onde o vício poderia instalar-se livremente. Para o Islã não basta uma alma limpa, mas busca-se junto o corpo limpo do conjunto da “ummah”. Para o verdadeiro “muslim”, devem-se executar as leis de Deus na terra. Como “leis” entendendo-se não somente as regras do Corão reveladas pelo Profeta, como ainda o vasto corpo de prescrições da Charia, construído de interpretações ao longo de três séculos após a morte do Profeta e, ainda, a coleção de “Hadiths” [20].  Este seria seu verdadeiro papel e não a conformação com as leis dos homens, expressa pelo Estado laico, e produzidas por assembleia eleita. Neste sentido, a busca de um Estado verdadeiramente muçulmano, pio, implicava na recusa da intromissão colonial e neocolonial do poder político do Ocidente bem como os Estados árabes afastados da Tradição (como nas suas formas de socialismo, pan-arabismo ou liberalismo) e, ainda, da completa independência do Estado face à Religião.

Desta forma, desde o início da expansão do Imperialismo na região (a França já em 1830 na Argélia e a Grã-Bretanha com o Canal de Suez em 1869), religião e política estiveram profundamente associadas na luta anti-imperialista travada por alguns setores religiosos árabes[21]. Foi um processo natural que um seguimento importante do Mundo Árabe associasse com a religião muçulmana enquanto trincheira da resistência contra a ocupação de seus países e contra a relação espoliadora com o Ocidente (em especial depois da descoberta do petróleo e a intromissão dos ingleses no Irã e dos americanos na Arábia).

Contudo, este não era o todo do Mundo Árabe, havia outros seguimentos, outras falas. Muitos buscaram uma modernização das instituições, voltando-se bem mais para as características solidárias e generosas do Corão – garantido como “Livro Revelado” – e abandonando ou relativizando o papel dos “Hadiths” e da Charia, enquanto criação humana, datada e com uma história presa ao passado Inúmeros pensadores, em países como Egito, Síria e Marrocos, propuseram processos diversos de “aggiormnamento” do Islã, muito antes do Concilio Vaticano II (1961-1965) voltar-se para atualização do cristianismo.

Há todo um “mundo” árabe e muçulmano negado pela visão homogênea do lugar de fala imperialista e orientalista.

A experiência colonial, o trauma da ocupação e depois o “Nakba”[22], além é claro, a vigência de regimes obscurantistas e tirânicos no pós-independência, favoreceram a prevalência em mesquitas, escolas e universidades de um clero conservador, reativo a quaisquer mudanças e que, em troca do controle das instituições religiosas, da instrução (tão precária) e de várias instâncias jurídicas, aceitavam regimes profundamente corruptos e ditatoriais, como na Arábia Saudita, Tunísia, Marrocos, etc…

Assim, a “especificidade” da história árabe, e daí por diante do próprio Mundo Árabe, comportariam uma originalidade – mais uma vez a tese do “sonderweg”, ou seja, das vias únicas de desenvolvimento histórico de determinado país ou sociedade – tão diferente do Ocidente que seria incapaz de gerar uma classe média numerosa e próspera (no Ocidente uma “burguesia”) e consequentemente uma sociedade civil capaz de mediar os temas religiosos e o Estado, não eclodiu no mundo árabo-muçulmano. Daí produziu-se diagnósticos de arcaísmos atávicos que marcariam a literatura ocidental sobre o Islã e suas sociedades, mal disfarçando as justificativas (neo)colonialistas e a continua intervenção ocidental. A única saída para evitar a intolerância, proteger minorias, seriam governantes fortes, autoritários, capazes de controlar as massas e evitar que o clero muçulmano impusesse  uma ditadura religiosa. Neste sentido, a ditadura pessoal, militar ou regimes semifascistas, de qualquer forma considerados modernos – posto que laicos – seriam preferíveis ao Ocidente. O exemplo da Revolução Iraniana de 1979 e a fundação da República Islâmica no país comprovariam a tese da inaptidão dos muçulmanos ao regime democrático e a preferência do Ocidente por longos e “estáveis” regimes tirânicos, como do Xá Reza Pahlevi (1941-1979).

A esta pretensa excepcionalidade, ou impermeabilidade do Islã ao modernismo e a democracia, juntar-se-ia uma boa dose de evolucionismo e eurocentrismo, marcando as obras dos historiadores e cientistas políticos. Por esta via, o mundo arabo-muçulmano seria obrigado a repetir a história do Ocidente e organizar-se conforme as regras oriundas das Revoluções ditas “burguesas” da Inglaterra (1698), dos Estados Unidos (1776) e da França (1789). A possibilidade de um desenvolvimento original não é considerada, mesmo quando a partir de 2011 as chamadas “Primaveras Árabes” sacudem os antigos regimes tirânicos apoiados (Egito, Tunísia, Líbia, Bahrain, Marrocos) ou malvistos (Síria) pelo Ocidente e, malgrado as adversidades, continuam a produzir novos cenários políticos (Tunísia, Egito).

Um debate contemporâneo, já 2003, conduzido por Abdou Filadi-Ansary – importante cientista político marroquino radicado em Londres e responsável por boa parte do relançamento do debate sobre o “Islã das Luzes” – colocava os pontos centrais das principais teses ocidentais sobre o Islã e sua pretensa “excepcionalidade”. Tratava-se de insistir na questão sobre a necessidade, capacidade e possibilidade de se reformar o próprio Islã internamente em direção à democracia. Neste sentido, as teses de grandes pensadores e cientistas sociais ocidentais, como Ernst Geller e Maxime Robinson, sobre a religião muçulmana e sua (não)aptidão para o regime representativo são colocadas à prova em conformidade com textos clássicos de pensadores muçulmanos, como veremos mais à frente. No âmago de debate reside o risco historicista, sempre presente, de acolher um momento da história – onde o Islã tornou-se o principal traço de identidade do árabe, nos anos finais da vida do Profeta em Medina – e considerá-lo como permanente, ahistórico e insuplantável. Praticamente todos os observadores fizeram isso após o impacto da Revolução Iraniana de 1979, desconhecendo o debate interno entre as diversas percepções do Islã. Os grandes atentados terroristas organizados sob a égide da “nebulosa Al-Qaeda” desde 1991 (e acentuados de forma “espetacular”, massiva e cruel depois dos 11 de setembro de 2001) teriam confirmado a inevitabilidade do Islã militante e integrista como fala única e legítima do Mundo Árabe. A capacidade de ver as especificidades, de ler as diferenças e de dar voz aos mais diferentes agentes das sociedades árabes desaparece nesta visão homogeneizante e imutável do “outro” – o árabe muçulmano terrorista. Esta leitura, infelizmente presente em trabalhos de grande relevância, mostra-se ainda uma vez herdeira da tradição colonial e acima de tudo a continuidade da sobredeterminação dos sistemas de interpretações sociais pela história, num excesso historicizante onde o tempo vivido é absolutizado como experiência insuperável, permanente. Assim, a “mouvance” islâmica das décadas de 1970 e 1980 do século XX acaba por ser toda a possibilidade de mobilização social no conjunto do mundo árabe, visto como homogêneo e atemporal[23]. O que as mídias ocidentais mostram, e destacam, é quase sempre a reação ultraconservadora, salafita, ao impacto da “Grande Discórdia”, deixando de lado os amplos setores reformistas e a imensa maioria de crentes estranha ao debate. Mas, o caráter “espetacular” da ação fundamentalista acaba por identificar todo o Islã, como antes o “exotismo” do Orientalismo, como a face revelada do mundo muçulmano.

Esta “especificidade” das sociedades arabo-muçulmano foi, claramente, exposta como a material básico de grande parte da literatura ocidental sobre a temática por Edward Said, sob a forma de “Orientalismo”, base sobre qual se ergueram institutos, departamentos e carreiras acadêmicas, tudo isso sem consideração do “impacto” das relações – “choque” sim, como querem alguns culturalistas imperialistas, mas também como cooperação, empréstimos, difusão, integração e complementaridade. A escolha de um ou outro destes fenômenos para caracterizar o Islã ou as sociedades muçulmanas depende inteiramente do momento e do “lugar de fala” de cada especialista[24]. E estes nem sempre estão em condições de avaliar seus próprios lugares neste longo debate. Desde a moderna intrusão do Ocidente no Oriente Médio – e podemos datar isso com a tentativa de conquista do Egito por Napoleão, entre 1798 e 1801 – as relações Ocidente-Islã (tão ricas no campo da filosofia na Idade Média, nas técnicas e no comércio na Idade Moderna) tornaram-se conflituosas e marcadas pelos fenômenos do Imperialismo e do Colonialismo.

Devemos destacar que poucas vezes a história da conquista, ocupação e partilha do Oriente Médio, com o primeiro “Nakba”  – a Partilha da Grande Síria -, conforme a expressão original do historiador árabe George Habbib Antonius, 1891-1942[25] – é considerada e muitas vezes a repetição das intromissões ocidentais, mesmo que sob motivos ditos humanitários, como aqueles derivadas do instituto do “RtoP” – ou seja, a “Responsabilidade de Proteger” grupos minoritários – redunda na reatualizarão da história, presentificando de fato ou no imaginário das populações arabo-muçulmanas fenômenos como as Cruzadas ou a Conquista colonial do século XIX.

Não sendo bastante, um segundo “Nakba” virá na esteira da derrota na Guerra dos Seis Dias, de 1967 – enquanto para os árabes não-palestinos aparece apenas como “an-Naksah”, a Derrota -, com a ocupação da Palestina histórica e uma nova leva de refugiados – ao menos 711 mil refugiados – tendo que abandonar seus lares. Hoje, com a longa ocupação e a ameaça constante de nova partilha da Palestina, desenha-se o “terceiro Nakba”, a inviabilização de um Estado Palestino factível ao lado do Estado de Israel.

O próprio desconhecimento da obra, e da vida, George Antonius é um sinal da incapacidade da historiografia ocidental em ler o pensamento arabo-palestino em suas próprias formulações[26].

Historiador e diplomata Georges Habbib Antonius/ 1891-1942.

Além disso, o impacto do Imperialismo, ou “Primeiro Nakba”, dois importantes fenômenos históricos, de caráter processual e longe do episódico, são, frequentemente descartados da análise da “especificidade árabe”. De um lado, a longa tolerância do Islã com outras religiões, sua convivência pacífica e tolerante com o Cristianismo e o Judaísmo – religiões ditas “do Livro”, como denomina o Corão, a Bíblia e a Torá. O fato de que a vida cotidiana de judeus e cristãos na sociedade muçulmana – os chamados “dhimmi” – só sofreu problemas sistêmicos e impactantes depois do ataque pelo Ocidente com as Cruzadas (1096), com sua incrível violência (como a chacina da população muçulmana, judaica e mesmo cristã de Jerusalém em 1099) [27]. Mesmo depois das cruzadas, cristãos e judeus tiveram papel de destaque na Síria, Iraque e na própria Turquia Otomana. Historiadores como Marc Ferro insistem na imbricação das comunidades judias, cristãs e muçulmanas sob a administração turco-otomana até avançado o século XIX, inclusive no Al-Andalus ibérico, com tradições e ritos muitas vezes comuns e de mútuo respeito. Foi a penetração ocidental, sob a forma do Imperialismo e do Colonialismo, ao largo do século XIX, que levou a demarcação forçada e extrema entre Islã e Cristandade, distinção animada e reforçada pelos missionários e as ordens religiosas interessadas em constituir-se em “protetores” das recém-inventadas “minorias” – cristãos de variadas confissões, armênios, yazids, drusos, coptas, etc… – no Oriente. Nega-se, assim, uma história secular de convivência – na Síria, no Iraque, no Egito, no Al-Andalus em favor de uma história presentificada no terror do Califado islâmico, um simulacro de história.

No momento em que tais minorias constituíram-se em ferramentas de penetração, desestabilização e partilha do Estado multiétnico e multireligioso otomano tornar-se-iam também em alvos preferenciais da repressão estatal otomana e das ações de reforço identitário muçulmano (em especial contra cristãos armênios, desde os massacres de 1895-1897 e gregos a partir de 1897, culminado no Genocídio Armênio, Medz Yeghern, de 1915-1917 ).[28].

O Outro fenômeno foi a repressão contínua que franceses e ingleses praticaram contra toda liderança árabe – muçulmana ou não! – capaz de contrapor-se ao domínio colonial, destruindo as bases laicas e nacionalistas árabes. Assim, as lideranças árabes laicas, progressistas e dispostas ao diálogo com o “aggiormnamento” do Islã – enquanto ferramenta de resistência anti-ocidental – foram sistematicamente combatidas no Líbano, Síria, Iraque, Argélia e Egito chegando, muitas vezes, a intervenção direta do poder (ex)colonial desde o século XIX como no caso do Egito e Sudão e no século XX no Iraque, por W. Churchill em 1924 com seus ataques aéreas contra aldeias curdas, por exemplo[29]; ou no Irã, contra o primeiro-ministro Dr. Mohamed Mossadeqq, em 1953; contra  o “raíz” Gamal Abel Nasser, no Egito em 1956 ou de forma permanente pela França na Argélia, no Tchad e no Mali depois dos anos de 1960[30].  Em suma, o Ocidente trabalhou ativamente na destruição de lideranças anticoloniais que não fossem religiosas e, ao mesmo tempo, valorizou como o “muçulmano bom”, a resistência muçulmana, religiosa e conservadora e terrorista[31].  No caso, seria mais uma vez a mesma estratégia – como foi no Afeganistão – de apoiar radicais islâmicos contra regimes moderados, laicos ou de Esquerda que contrariassem os interesses ocidentais[32].

Assim, durante décadas, antes e depois da Guerra Fria (1946-1991), o Imperialismo podia esgrimir o argumento da tolerância e da “especificidade árabe” para apoiar ditaduras extremamente cruéis, posto que a única alternativa fosse o Islamismo radical. A negação do Imperialismo e da sua história, no Mundo árabe, é parte fundamental do atual processo de revisionismo histórico e da construção de um Outro como o mal absoluto.

[1] LEUTRAT, Jean-Louis. Le Western. Paris, Galimard, 2001, p.13.

[2] FANON, Frantz. Les Damnés de la Terre. Paris, Maspero, 1961, p. 22 e ss.

[3] Originalmente o poema de Kipling teria sido escrito para festejar o Jubileu de Diamante do reinado da Rainha Vitória (1837-1901), mas o autor teria refeito o texto e publicado no “The New YorK Sun”, em 1899, incentivando os Estados Unidos a assumir o controle das Filipinas. Ver: MAMA, Amina. Beyond the Masks: Race, Gender, and Subjectivity. Nova York, Routledge, 1995.

[4] Ver: KELLER, Richard. Action psychologique »: french psychiatry in colonial North Africa, 1900-1962, Rutgers University. The State University of New Jersey, 2001, 310 p

[5] SAID, Eward. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, Companhia de Bolso, 2007, p. 18 e ss.

[6] LA COUR GRANDMAISON, Olivier. Coloniser, Exterminer. Sur la guerre et l´état colonial. Paris, Fayad, 2005, p. 60 e ss.

[7] Ver ASSIM ERA HOLLYWOOD. In: https://assimerahollywood.wordpress.com/2013/04/30/filmes-o-ladrao-de-bagda-1924/. Consultado em 16/02/2017.

[8] FANON, Frantz. Les Damnés de la Terre, 1961, éd. La Découverte poche, 2002,

[9] NEUMANN, Franz.

[10]MATHIEU, Anne. Jean-Paul Sartre et la Guerre de l´Algerie. In: file:///C:/Users/FranciscoCarlos/Downloads/ESSF_article-4479.pdf, consultado em 16/01/2017.

[11] Ver: Qui sont les prophètes et les envoyés de Dieu ?In: http://comprendre-islam.com/contact/. Consultado em 16/01/2017.

[12] Para a terminologia teológico-juridica muçulmana utilizamos, além da GOLDZIHER, Ignaz, Muhammedanische Studien. Halle, Universitätsverlag, (1890), 1961, os seguintes autores: GULLAUME, A. The Tradition of Islam, Oxford, University Press, 1924; BOUSQUET, George-Henri. Le Droit  musulman, Paris, Armand Colin, 1963;

[13] As referências aos termos árabes, todos “codificados” na tradição muçulmana serão repetidos ao longo do texto. Assim, cabe uma definição que será aperfeiçoada ao longo do texto. A saber: “Charia” (também “sharia” ou “sharīʿah”): trata-se do imenso acervo de jurisprudência do Islã, caracterizando a especificidade da religião nas sociedades arabo-muçulmanas como a indistinção entre religião e Direito, daí a expressão de uma religiosidade codificada; “haram” (ḥarām): o ilícito, proibido ou pecado, advém de uma expressão pré-muçulmana, incorporado no Corão (o contrário de “halal”, aquilo que é licito); “ummah”: a comunidade ou nação dos fiéis, unidos na crença ao monoteísmo de Allah, no papel do profeta e no Juízo Final, independente de raça, nacionalidade ou gênero, dando ao Islã seu caráter de universalismo.

[14] Boa parte do material desta introdução advém de uma entrevista realizada pelo autor com o “sheik dos fiéis” no Brasil, Dr. Ahmed Amim, publicada em: TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. A Voz do Islã no FSM, In: CARTA MAIOR. http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/6, Belém, 2009.

[15] Devemos lembrar que grandes potências, como no Japão Imperial até 1945, a ideia de uma comunhão do sagrado com a vida política, centrada na crença da divindade do Imperador, eram plenamente aceitáveis e que mesmo, na região, as relações entre Estado e Religião são estreitas, como no caso do moderno Israel.

[16] “Bid´ah”, em árabe, inovação, é uma expressão, no campo religioso, que se aplica às tentativas de modernização ou de reinterpretação racionalista do Islã, na maioria considerada como uma doutrina herética.

[17] EL PAÍS. “Africa persigue a los homosexuales”, 06/02/2011, p. 36.

[18] DIAIT, Hichem. La Grande Discorde: politique e religion dans l`Ilam des origines. Paris, Gallimard, 1989.

[19]MARTIN, Richard ( Ed.).  Encyclopedia of Islam and the Muslim World, Londres, Macmillan Reference, 2004, v.2, p.609. Ver ainda a nota 2.

[20] “Hadiths” ( em árabe, “hadith, sendo o plural correto “ahadith”) são o conjunto das “narrativas”, feitas por próximos do Profeto ou próximos aos próximos do Profeta, sobre a vida de Mohammed, de onde se deduziriam regras e ensinamentos para o bom fiel. Ver: AL-BUKHARI, Mohammed Ismail (810-870). Les Traditions Islamiaues. Paris, A. Honda et W. Marcais Ed., 1903-1904 e para uma análise dos textos: The Canonization of Al-Bukhari and Muslim: BROWN, Jonathan. The Formation and Function of the Sunni Hadith Canon.Leiden, BRILL, 2007

[21] Para um amplo debate sobre o tema temos duas obras básicas: MARIN GUZMÁN, Roberto. El fundamentalismo islâmico em El Medio Oriente contemporâneo. San José, Editorial de La Universidad de Costa Rica, 2001 e ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus. São Paulo, Cia das Letras, 2001. Deve-se ter sempre, para este debate, em mãos e em mente, o texto fundante e de onde são retirados, muitas vezes de forma acrítica e sem os devidos cuidados, os próprios termos do debate: The Koran. Oxford, Oxford World´s Classics, 1964.

[22] “Nakba” ( ou al-Hijra al-Filasṭīnīya ), a “catástrofe”, termo que designa o êxodo de cerca de ( no mínimo) 711 mil palestinos de suas casas após a Guerra Árabe-Israelense de 1947-1948, sendo deslocados para campos de refugiados. Ver Relatório da UNRWA In: http://www.unrwa.org/search/google/userfiles%20reg%20ref%202%20pdf.

[23] É essa a principal crítica de Filali-Ansary aos textos de Ernst Geller e dos demais especialistas ocidentais sobre o Islã, assumindo que a história só seria um devir constante no Ocidente enquanto para o Oriente o tempo seria morto, paralisado, simplesmente presentificado no momento de sua descoberta pela ciência social ocidental, residindo aí a característica básica do Islã, sua “especificidade”. Ver FILALI-ANSARY, Abdou. Réformer l´Islam? Paris, Découverte, 2003, pp. 59 e ss.

[24] Ver para isso o trabalho seminal de SAID, Edward. Cultura e Orientalismo, São Paulo, Companhia das Letras, (1993), 2011.

[25] Sob a denominação de “primeiro” Nakba nos referimos a partilha do Oriente Médio, em especial da Grande Síria, logo após a Grande Guerra Mundial, em 1920, em decorrência do acordo colonial Sykes-Picot, entre a França e a Grã-Bretanha, dando origem a Síria, amputada de boa parte do seu litoral, o Líbano e o mandato Britânico da Palestina, que daria origem a Israel e Palestina. Ver:  KRAMER, Martin. Ambition, Arabism, and George Antonius.  In: KRAMER, Martin. Arab Awakening and Islamic Revival: The Politics of Ideas in the Middle East. New Brunswick, Transaction, 1996, 112-23.

[26] ANTONIUS, George. The Arab awakening: the story of the Arab national movement. Philadelphia, J.B. Lippincott Ed., 1939 e PICAUDOU, Nadine.1948 dans l’historiographie arabe et palestinienne, 2010, In: https://www.sciencespo.fr/mass-violence-war-massacre-resistance/fr/document/1948-dans-lhistoriographie-arabe-et-palestinienne, consultado em 13/07/2019.

[27] MICHAUD, J. F. e ROBSON, W. History of Cruzades. New York, Bibliofile, 2009, pp. 61 e ss.

[28] FERRO, Marc. Le choc de l´Islam. Paris, Jocob Odile, 2002, PP. 20 e 21. Ver ainda para a questão das minorias e a intervenções ocidentais: RENOUVIN, Pierre. Histoire des Relations Internationales. V.6, Paris, Hachette, 1955, p. 192 e ss.

[29] TOYE, Richard. Churchill´s Empire. Londres, Macmillan, 2011.

[30] Ver: POLLACK, Kenneth. Arabs at War. Lincoln, University of Nebraska Press, 2002 e LONG, David E. e REICH, Bernard. Middle East and North Africa. Oxford, Westview, 2002.

[31] Ver: FROMKIN, David. Paz e Guerra no Oriente Médio. Rio de Janeiro, Contraponto, 2008.

[32] EL PAÍS. Fetulá Gülen, de mentor de Erdogan a acusado de ser su verdugo, In: http://internacional.elpais.com/internacional/2016/07/16/actualidad/1468694404_803312.html, 17/07/2016, consultado no memso dia.

General sem alma, Pazuello gerou crise que poderia ter dado a Bolsonaro ‘seu Exército

[RESUMO] Deboche, incompetência e indisciplina de Eduardo Pazuello —que ocupou o Ministério da Saúde durante o período mais agudo da pandemia, passeou sem máscara e subiu em palanque— uniu as Forças Armadas em torno da sua imediata punição e passagem para a reserva. Essa expectativa, porém, foi frustrada pelos custos e consequências de uma nova crise militar, que poderia permitir a Bolsonaro nomear “seu” general para comandar “seu” Exército.

As ações do general Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde e sua participação em um ato de apoio a Bolsonaro depois de deixar a pasta trouxeram para o julgamento da cidadania, mais uma vez, o papel dos militares na vida política do Brasil.

Depois de inúmeras intervenções no processo político e administrativo ao longo da história brasileira, desde a Constituição de 1988 considerávamos que o risco de militarização das instituições era baixo.

No entanto, após um período de “profissionalismo”, em que se dedicaram aos deveres da caserna, fizeram dezenas de MBAs especializados e foram contratados em fundações privadas, os militares acharam que havia chegado a hora de promover um retorno à política.

Bolsonaro participa de homenagem ao Exército em 2019

Buscando uma breve intervenção –em nome das boas práticas, embevecidos pela performance do juiz de Curitiba e horrorizados pelas “provas” do lavajatismo–, apenas repetiram a história, consolidando um habitus de “salvar” a República de seus vícios.

Isso já havia acontecido antes: no tenentismo dos anos 1920, na Revolução de 1930, no golpe do Estado Novo de 1937, na deposição de Vargas em 1945, nos constantes “pronunciamentos” do Clube Militar durante a Quarta República (1946-1964), culminando no regime civil-militar de 1964-1985 —em que tiveram uma República para dizer e fazer como imaginavam o Brasil. Os resultados todos conhecem.

A transição para democracia, o projeto Geisel-Golbery, foi o mais longo e tortuoso da história de qualquer República, se estendendo de 1977 a 1988.

Em 1979, foi dada anistia a torturadores e torturados; depois, calou-se sobre os terroristas que, em 1980 e 1981, lutaram contra a democracia de dentro do Estado, atacando com bombas a oposição. Os episódios do Riocentro, da OAB e da Câmara dos Vereadores do Rio —todos crimes de sangue, terroristas e pós-anistia— são bons exemplos dessa atuação, além dos crimes “continuados”, de sequestro e desaparição de cadáveres.

A Constituição de 1988 incorporou a Lei da Anistia de 1979 em nome da concórdia. No entanto, nem todos a aceitaram. O projeto Geisel-Golbery, superado pelas ruas, continuou a ser combatido pelo lado de dentro, pelos bolsões “radicais, porém sinceros” no seu desamor ao Estado de Direito, que nunca aceitaram se habituar com a democracia.

Esses setores se consideravam herdeiros do ex-ministro golpista general Sylvio Frota, que tinha como ajudante de ordens um certo capitão Augusto Heleno. Os setores terroristas, que planejavam ataques até contra companheiros de farda, continuaram pregando a não existência da ditadura, do golpe, de sequestros e avançaram até a negação da escravidão e do racismo no Brasil —chegando, por fim, à vacina.

A máquina da repressão da ditadura militar

Aos poucos, passou a ser possível perceber que a transição democrática, a abertura de Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, não havia acontecido para amplos setores das Forças Armadas. Entre os modelos de transição –na Argentina, com punições; na África do Sul, com o reconhecimento público do passado e a defesa da concórdia; na Espanha, com pactos de “esquecimento”, mas sem repetição— o Brasil escolheu um modelo especial: o esquecimento repetitivo.

O tuíte do então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, pressionando o Supremo Tribunal Federal a não conceder habeas corpus ao ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, em 2018, marcou definitivamente o retorno dos comandantes militares à política.

É verdade que esse processo já se desenrolava desde 2016, quando a cúpula das Forças Armadas participou ativamente –ao lado da “frente parlamentar” e da “frente empresarial”, constituindo a “frente militar”– da garantia do impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT) por motivos hoje sabidamente irrisórios.

O que os comandantes militares da época colocaram em jogo abusivamente, no seu retorno à política, foi a imagem permanente das Forças Armadas brasileiras, evidenciando que a instituição não realizou a transição democrática e a habituação à Nova República.

O mesmo pode ser dito das polícias brasileiras, em especial a PM, da diplomacia e de boa parte da alta administração nacional, incluindo aí a Justiça —que o diga como o sistema judiciário lida com casos de racismo estrutural e com as chacinas de negros e pardos no país.

Apesar dessa conjuntura, parte dos analistas considerava que a presença de alguns generais no governo de Jair Bolsonaro (sem partido) era bem-vinda, dado o caráter “ideológico” da nova gestão, podendo desempenhar a função de tutelar e conter os arroubos do presidente.

Os militares no início do governo Bolsonaro

Com as primeiras demissões de militares de alta patente do governo —como os generais Carlos Alberto dos Santos Cruz e Maynard Santa Rosa, ambos extremamente conservadores e defenestrados exatamente por acreditarem na “tutela” do presidente—, evidenciou-se que Bolsonaro era o único responsável por seu governo.

O avanço da pandemia —previsto e calculado dia a dia por cientistas e instituições— fez emergir o “lado oculto” do governo: não sua incapacidade de agir, mas sua capacidade de colocar em prática um governo paralelo, camuflado, impondo aos brasileiros uma política de contágio impositivo de Covid-19.

Sucederam-se ministros da Saúde até chegar ao “homem no posto”: o general Eduardo Pazuello, dito especialista em logística, grande estrategista, trazendo nos ombros a expertise do Exército. Aí começaria o desastre. Os números de doentes, mortos e sequelados transbordam. Bolsonaro debochou, Pazuello obedeceu.

A imagem do Exército, e por antonomásia das Forças Armadas, se retraiu em pesquisas sobre a confiabilidade das instituições nacionais. A visibilidade não buscada trouxe, ainda, a publicidade sobre compras como de leite condensado, carnes e bebidas no momento em que brasileiros tinham que ser socorridos pelo auxílio emergencial e, ainda mais grave, de hospitais militares fechados —incluindo Manaus, epicentro da catástrofe– ao mesmo tempo que pessoas morriam e o general Pazuello, em visita à cidade, receitava cloroquina.

Mortes e mentiras se acumulavam. A ausência de prontidão, de estratégia ou de logística para salvar vidas ficou evidente.

O general mentiu, se portou de forma relaxada, descuidada e com grave incúria, assim como seus subordinados diretos, enquanto faltava oxigênio para os internados por Covid-19.

O drama em Manaus

A soma desses comportamentos se choca diretamente com os valores básicos que qualquer aluno deveria ter assimilado na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras): direção, comando, coragem moral, cumprimento da missão, criatividade, aprimoramento técnico, civismo, fé na missão, patriotismo. Pazuello faltou com todos esses valores básicos.

Alguns outros preciosos valores, de extrema sensibilidade exigidos na academia e na vida de qualquer um, também foram estranhos ao general Pazuello: sensibilidade moral: capacidade de se sentir moralmente afetado; julgamento moral: capacidade que permite refletir sobre situações que exigem interface com valores; empatia: capacidade que permite compreender ideais e valores dos demais; contextualização moral: capacidade que permite a reflexão moral.

Em resumo, no caso de Eduardo Pazuello, a Aman formou um general sem alma. Infelizmente, a história nos relata a trajetória de generais desse tipo, sem alma, sempre associadas a genocídios.

O caso Pazuello reforçou e estimulou o movimento do Exército em direção a um discreto distanciamento do governo Bolsonaro —tão discreto que muitos nem sequer o percebem. O afastamento, como tudo no Exército, deveria ser lento, seguro e gradual, sem dar razão e motivos aos críticos e sem despertar rancores.

No entanto, por sua própria lentidão e ausência de rumo, esse movimento despertou a desconfiança de todos os lados. Os militares encastelados no governo Bolsonaro temeram ficar isolados, denunciados na solidão do Planalto. Aqueles que queriam o afastamento, enojados com a indisciplina, a incompetência e o cabotinismo de Pazuello, queriam a punição imediata, como claro sinal do distanciamento em curso.

Jair Bolsonaro (esq.) e o general Eduardo Pazuello em cerimônia no Palácio do Planalto sobre a vacinação contra a Covid-19 – Ueslei Marcelino – 16.dez.20/Reuters

Fez-se o impasse. Eram os primeiros dias de junho, dois meses depois da exoneração dos generais Edson Pujol e Fernando Azevedo e Silva do Comando do Exército e do Ministério da Defesa, respectivamente –a segunda crise militar do governo dos generais.

Porém, havia mais. A crise desencadeada por Pazuello deixou escapar um nojo maior, uma escala de ressentimentos ainda mais profunda. Não eram apenas os cargos disputados em termos de “quem é o mais antigo? Agora é minha vez!”.

Eram os sinais evidentes de vaidade e arrogância. Era a compra de ternos caros, mochilas importadas, “pins” americanos “de Armas” para as gravatas, “cases” e, claro, computadores, visitas constantes ao eBay, corrida para vagas em embaixadas e missões diplomáticas. Por mais traumático e cruel que tenha sido 1964, havia um projeto: 2019 teve um ar de festa na província.

Ao longo de maio, Pazuello passeava leve e solto sem máscara em shoppings, participava de motociatas e subia em palanques. Tal atuação, que beirava o deboche, conseguiu uma façanha, na primeira semana de junho: uniu quase toda a Força ativa, boa parte da reserva –e eis aqui uma novidade– a Marinha e, bem ou mal, a Aeronáutica em torno de dois pontos: punição e imediata passagem para a reserva do general.

Bolsonaro faz passeio de moto no Rio e gera aglomeração

Não bastava passá-lo para a reserva, era necessária uma punição, escrita ou oral, e uma advertência, mais ou menos dura. Haveria uma punição.

Então, entrou em cena a tropa do presidente. Coube ao general Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Casa Civil, a defesa do ministro da Saúde responsável pela catástrofe, tendo no ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, o suporte fundamental, desde abril e maio, para a defesa da “exemplar” gestão de Pazuello na pasta.

Assim, o Comando do Exército foi paralisado pelo ministro da Defesa: uma punição do general entraria em choque direto com o ministro e, claro, com o presidente. Bolsonaro, como comandante em chefe, não aceitaria e faria reverter o ato. O recém nomeado comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, e o Alto-Comando do Exército tiveram que avaliar o preço, os custos e as consequências de uma terceira crise militar em tão pouco tempo.

Na última quarta-feira (23), Bolsonaro publicou um decreto que permite que oficiais das Forças não sejam obrigados a passar para a reserva depois de dois anos em cargos civis, podendo exercer funções administrativas sem restrição de tempo. A medida vai na contramão da expectativa dos comandantes do Exército e pode levar a um novo acirramento da relação dos militares com o Palácio do Planalto.

O presidente, ao exonerar os generais Edson Pujol e Fernando Azevedo e Silva no final de março, conseguiu uma meia vitória no seu processo de bolsonarização das instituições. O caso Pazuello, orientado pelo general Ramos e secundado pela tremenda ausência e abandono da tropa pelo general Braga Netto, deveria ser a ceifada final do bolsonarismo contra a tímida tentativa do Exército de se manter distante da catástrofe. Tudo culminaria na exoneração do general Paulo Sérgio de Oliveira.

Bolsonaro estaria, então, livre para nomear o “seu” general para comandar o “seu Exército”. Com isso, finalmente, o tenente expulso da Força por indisciplina e ausência de fé, que se tornou capitão por ato de graça, teria um Exército para chamar de seu.

No entanto, esse roteiro não se concretizou. Ainda.

O Ministro e o “Estado Paralelo”: um “Estado inimigo” ocupa o Território do Brasil

Após pouco mais de quatro semanas de inação – exceto pela “batalha de notas de imprensa” entre o Ministério da Defesa e a Secretária de Segurança do Rio de Janeiro – a situação da (in)segurança da Cidade chegou ao seu ponto mais baixo na última semana. O traficante “Nem” teria decidido resolver uma disputa na Rocinha. Uma comunidade numa situação privilegiada da Zona Sul/Zona Oeste do Rio de Janeiro, com cerca de 70 mil habitantes, dividida por luta interna entre dois membros “familiares” da facção ADA (“Amigos dos Amigos”), dividida entre a facção  da própria esposa do traficante, Danubia Rangel – foragida da polícia, mas influente no tráfico local – e seu preposto e “sucessor” Rogerio Avelino da Silva, o “Rogério 157”, que teria expulsado Danubia da comunidade e tentado assumir sozinho o controle da venda de drogas na região.

A disputada entre os “familiares” de “Nem” teria sido a causa do conflito atual no Rio.

Do interior da penitenciária de segurança máxima em Porto Velho (RO) “Nem” teria ordenado – inclusive por áudio de whatsapp  que circulou por todo o Rio de Janeiro – a invasão da Rocinha e a perseguição de “Rogério 157”. Este assumira um papel de “dono da comunidade”, cobrando taxa do comércio local, controlando a venda de água, gás, carvão, sinal de tv além de pedágio de mato táxi, táxi e vans e serviços de entrega na Rocinha – claro tudo isso além do “negócio” principal das drogas.

A comunidade da Rocinha mantinha até o dia 17 de setembro, quando se deu a invasão e começaram os intensos tiroteios, uma guarnição de 700 policiais com uma UPP funcionando desde 2012. Nessa madrugada cerca de 140 homens fortemente armados saíram do Morro de São Carlos, onde também há uma UPP, percorreram cerca de 14 quilômetros pelo Centro urbano da Cidade do Rio de Janeiro, e iniciaram a invasão da Rocinha. Os policiais de plantão, no São Carlos, em vários pontos do percurso e na Rocinha, viram  todo a mobilização e nada fizeram – fato admitindo pelo próprio Secretário de Segurança Roberto Sá, 48 horas após o início dos enfrentamentos, e confirmado pelo Governador “Pezão” na Globonews, em 22 de setembro de 2017 em cadeia nacional[1].  Não houve previsão, inteligência, contenção ou qualquer forma de proteção prévia da população de 70 mil pessoas da comunidade, reféns, sem luz, água e transporte, da luta entre as facções rivais da ADA.

Também o Departamento Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça, não foi capaz de informar como o traficante “Nem” conseguiu, do interior de uma prisão de “Segurança Máxima” fazer gravações e dar ordens para instalar o caos na cidade distante 3.4 mil quilômetros de distância. Também a direção da penitenciaria e o pessoal em serviço na data da ação de “Nem” no interior do presídio não  foram ouvidas ou aberto um inquérito para apurar responsabilidades[2].

Entre 17 e 22 de setembro de 2017 a cidade do Rio de Janeiro viveu sob intensa tensão e paralisia: escolas fechadas, transporte paralisado, moradias invadidas, população aterrorizada, sem luz ou transporte e uma completa inação das autoridades locais, ora afirmando serem necessário apenas recursos financeiros da União, ora solicitando o patrulhamento de 119 pontos da cidade![3]

Após o paroxismo de uma Cidade literalmente dividida ao meio – a Zona Sul desconectada da Zona Oeste – e a população aterrozida e um governo, assediado por processos por corrupção e por uma brutal falência financeira e de seus serviços básicos, incluindo salários e equipamentos e material de segurança – e um macabro recorde de assassinatos de policiais que já ultrapassa o número de cem pessoas! -, o Governo do Rio de Janeiro “demanda” auxílio ao Ministério da Defesa nos termos do Artigo 142 da Constituição Federal, denominado “GLO”, para a Garantia da Lei e da Ordem – aliás, em vigor na Cidade desde 28 de julho de 2017, logo com tempo suficiente para a organização de um planejamento e organização de uma ação de controle e repressão ao crime organizado no Rio de Janeiro[4].

Após uma manhã inteira de terror, por volta das 15h30minhs, 950 homens das FFAA entraram na Rocinha.

À noite, o Ministro da Defesa se dirige à Nação para explicar as operações em curso. Desde logo declara “a Rocinha pacificada”, o que será desmentido pelos tiroteios e vítimas fatais – incluindo crianças – em vários pontos da cidade, irradiando-se da Rocinha[5]. Não contente em fazer uma afirmação tão temerária e açodada, o Ministro parte para um balanço ou análise “político-sociológica” do crime organizado no Rio de Janeiro de forma superficial e totalmente equivocada. Na sua fala se refere ao crime organizado como “Estado Paralelo”, equiparando em grau de igualdade o Estado brasileiro – uma construção jurídico-constitucional emanada da vontade geral da Nação – com um bando organizado para delinquir, no mínimo, por si só tipificado como crime na Lei 12.850/13 – Art. 24 e no art. 288 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 do Código Penal. Ou seja, o Ministro não conseguiu perceber a diferença do longo percurso entre a construção do Estado de Direito – centrado em Locke, Montesquieu e Thomas Hobbes – e uma organização de bandidos montada para delinquir. Mais do que isso, de vontade própria, sem qualquer pressão, o Governo do Brasil, através do seu Ministro da Defesa, portanto um porta-voz bastante e autorizado, reconheceu a existência, em território nacional, de uma “ente” Estatal estranho à Soberania Nacional ocupando território nacional, portanto armas e obstaculizando a ação do Poder Público constituído conforme a “Vontade Geral” da Nação. Assim, ao contrário do Governo da Síria, que jamais reconheceu o “Califado islâmico” como “Estado” em plena guerra, ou Israel que se recusa a reconhecer a “Autoridade Palestina” como um “Estado” de pleno direito, o Ministro da Defesa do Brasil, do nada, sem qualquer necessidade, declarou em cadeia nacional, que um bando de criminosos – a saber, 140 homens armados – “um Estado Paralelo”. Além disso, na mesma fala, concluiu que estamos “em guerra”, criando uma situação “direito internacional”: um “Estado” com o qual “estamos em guerra” ocupando partes do território nacional.

Não ocorreu ao Ministro da Defesa denominar o crime organizado de “Poder Paralelo”, de “Poder usurpador” e a luta contra o crime de simplesmente “combate”. Talvez empolgado pelas metáforas do cargo lançou-nos numa guerra que transforma quadrilhas de criminosos numa “poder estatal”.

Essa seria exatamente uma grande vitória para as FARCS que o Governo da Colômbia sempre se recusou a reconhecer. Nós o fizemos em pouco mais de 8 horas de “de guerra”. Como se não bastasse o reconhecimento, na mais alta instância da República, de um “ente” estatal em guerra no território brasileiro – não ocorreu ao Ministro da Defesa que o narcotráfico possa ser um “Poder Paralelo” jamais um “Estado”, uma organização que usurpa poderes do Estado legal-racional, como estabelecido por Max Weber, e por isso mesmo uma organização criminosa que disputa o monopólio legal da violência com o único ente de Direito a exercer tal recurso em todo o território nacional, o Estado Soberano brasileiro – o Ministro avançou. Fez, “loquitur sine modo”, graves afirmações. Afirma estar preparado para dispor de todos os meios do Ministério  para enfrentar o “Estado Paralelo”, que então merece uma definição: [temos os meios] “… para enfrentar o estado paralelo, que é o estado que foi capturado pelo crime organizado” [6]. Ora, quais as “partes” ou “instituições” do Estado brasileiro que foram “capturadas” pelo crime organizado? Nenhuma explicação, nada. Apenas uma nuvem de desconfiança para o população: sua Polícia, sua Justiça, sua Administração ou seriam seus próprios dirigentes que teriam se unido ou sido capturados pelo crime organizado para formar o “Estado Paralelo”? Ou talvez o Ministério da Justiça que não consegue explicar como “Nem” numa Penitenciária de Segurança Máxima em Porto Velho comanda o tráfico no Rio de Janeiro?

Em suma, estaríamos, conforme a análise sócio-política do Ministro da Defesa vivendo no país a existência de dois Estados – como na teoria leninista de poder dual, onde o Estado revolucionário emerge e engloba o velho poder, aplaudiria Mao ou Marighella  – e as instituições já foram “capturadas” pelo “Estado narcotraficante”.

Uma simples consulta a ferramentas do curso de graduação em teoria politica, como o Dicionário de Ciência Política de Norberto Bobbio et alii pouparia o país e população de tamanha desilusão e desalento[7], além de conferir a criminosos comuns, decerto espertos e cruéis, mas claramente fruto do desmonte do Estado e deboche das autoridades, o status de um “ente” político.

Ou então, esperemos que o Ministro da Defesa demande ao Papa ou a ONU negociações imediatas de paz.

[1] Ver: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/nem-ordenou-invasao-da-rocinha-de-dentro-de-presidio-federal-em-rondonia.ghtml. .  Consulta em 23/09/2017.

[2] Ver: https://oglobo.globo.com/rio/apos-visita-presidio-advogado-de-nem-nega-que-traficante-tenha-ordenado-invasao-rocinha-21844878. .  Consulta em 23/09/2017.

[3] Ver: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/ministro-da-defesa-diz-que-falta-planejamento-da-secretaria-de-seguranca-para-atuacao-das-forcas-militares-no-rj.ghtml. .  Consulta em 23/09/2017.

[4] Ver:  https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/temer-assina-decreto-que-autoriza-forcas-armadas-a-atuarem-na-seguranca-publica-do-rio.ghtml. .  Consulta em 23/09/2017.

[5] Ver: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/09/23/rocinha-volta-a-ter-tiroteio-na-madrugada-deste-sabado.htm. .  Consulta em 23/09/2017.

[6] Ver: https://g1.globo.com/pernambuco/noticia/ministro-da-defesa-afirma-que-forcas-armadas-estao-a-disposicao-do-rio-de-janeiro.ghtml.  Consulta em 23/09/2017.

[7] Bobbio, Norberto et alii. Dicionário de Ciência Política. Brasília. Editora da UNB, Verbete “Estado Contemporâneo”, pp. 401 e ss., v.1,  1997.

E 1964 foi um Golpe?

Tanques em frente ao Congresso Nacional (1964 )
Foto Arquivo Público do DF

A Historia das ditaduras latinoamericanas guarda uma perfeita simetria com a política internacional e da dependência das oligarquías agrárias locais com os grandes centros mundiais do capitalismo, suas crises e, em seguida, a Guerra Fria. A crise da hegemonia britânica sobre o continente e o contínuo avanço da presença norteamericana, já largamente experimentados através de suas relações com o México e o Caribe, acabará por gerar uma larga crise da dependência e, mesmo, as possibilidades de intervenções diretas estrangeiras. O primeiro momento da presença norte-americana no continente sul-americano foi marcado pela necessidade de conter a influência germânica, a expansão do Terceiro Reich nos anos de 1930, face a uma Grã-Bretanha por demais envolvida na conservação do seu próprio império. Assim, Brasil, Argentina e Chile tornaram-se alvos principais dos interesses estratégicos e econômicos dos Estados Unidos. No caso brasileiro, o envio de um corpo expedicionário à Europa, em direta ligação com as forças armadas americanas, acaba por criar laços profundos, que frutificaram nos anos ´50 e ´60 longo proceso de americanização das Forças Armadas. Uma cultura militar, e uma mentalidade salvacionista imbuída da ideologia de missão e “tutela”, já se desenhara plenamente no continente, e no Brasil desde a Proclamação da República em 1889. Os riscos para a soberania, a pobreza considerada insuperável e a corrupção endémica e própria da vida pública serão os alvos iniciais das manifestações militares, como no tenentismo e na Revolução de 1930.

Da mesma forma, a crise de 1929 esbate profundamente as oligarquias tradicionais, com suas exportações agrícolas, e consequentemente seus arranjos políticos. Os militares, tanto no Brasil, na Argentina ou no Peru, já vinham denunciando as fraquezas atávicas dos regimes liberais-oligárquicos e, num momento de acirramento das disputas imperialistas, a incapacidade de tais regimes defenderem os interesses nacionais. A experiência do chamamento dos militares para as mais diversas tarefas e missões de “defesa da pátria” mostra que uma vez colocados no proscênio torna-se extremamente difícil fazê-los retornar aos quartéis. Assumiriam rápidamente um auréa de pureza e incorruptibilidade em fase aos políticos e funcionarios públicos, fazendo de si próprios o corpo profissional único capaz das regeneração patriótica.

Mesmo em países onde os conflitos externos não desempenharam um papel de monta na criação de uma “mítica” salvacionista, mas havia uma tensão externa crescente entre civis e militares, na véspera da Segunda Guerra Mundial (e, por exemplo, como no caso do Brasil e a Argentina, ou entre Chile e Argentina ), os militares, imbuídos de variada ideologia modernizante, sentiram-se portadores de uma missão salvadora e regeneradora da nação. Essa é a natureza do movimento tenentista no Brasil, com o qual facilmente pode-se traçar um paralelo com o movimento Jovem Turco. O tenentismo anuncia e fornece os ideais e quadros da Revolução de 1930 e da ditadura do Estado Novo (1937-1945) no Brasil.

O Integralismo, a versão fascista brasileira, também desempenhou um papel fundamental na modernização das Forças Armadas, em especial na Marinha de Guerra brasileira, mas com forte viés socialmente reacinário, formando uma visão de mundo autoritaria, nacionalista e golpista entre os, então, jovens oficiais, com  um legado pesadamente atuante na vida pública btrasileira, permanecendo ativo através da IV República – 1946-1964, para florecer no Regime de 1964 e no bolsonarismo.

No caso brasileiro, a maioria dos militares reatualizaram, depçois de 1946,  em contato com as forças americanas, e mais tarde na Escola das Américas e outros centros de treinamento – os “fortes” -, seus ideiais salvacionistas, agora diretamente vinculados ao clima de enfrentamente Ocidente/Oriente decorrente da Guerra Fria. O Retorno da FEB ao país, com a auréa antifascista culminaría na derrubada do Estado Novo.

O período pós-ditadura do Estado Novo, entre 1945 e 1964, denominado de democracia liberal ou IV República, foi marcado claramente, de um lado, por uma crescente tensão militar e, por outro, por forte continuidade da tutela militar sobre o poder civil, expressa em dezenas de pronunciamientos. Mesmo o desmonte da ditadura, procedido pela Assembléia Constituinte Nacional de 1945 – fim do DIP, extinção do TSN – foi parcial e comprometido com os interessses dos grupos políticos mais à Direita, convencidos de que os militares – que haviam derrubado Vargas – haviam adquirido um poder moderador sobre o Estado – a “Tutela”. Assim, enquanto os órgãos de propaganda do antigo regime eram desmantelados, os principais mecanismos de repressão – como a Delegacia de Ordem Política e Social, o temível DOPS, era poupado, e seus quadros de torturadores,  alguns meses depois da deposição de Getúlio Vargas, já trabalhava para o novo regime. A autonomia da policía civil, sua capacidade de realizar “visitas” em residências e escritórios sem qualquer apoio legal, os sequestros e a manutenção em cárcere, além da consolidada prática de espancamentos, a rotina de dissolver manifestações e meetings políticos, inclusive com armas de fogo, em nada a diferenciava da nefasta polícia da ditadura do Estado Novo e já prenunciava as práticas posteriores ao golpe de 1964.

Da mesma forma, o fracasso crescente dos partidos de Direita, em especial da UDN – União Democrática Nacional, em empolgar as massas, ao lado do crescente prestígio dos partidos de esquerda, o PCB e o PTB – Partido Trabalhista Brasileiro, e o movimento pendular do PSD, fomentava um grande mal-estar nas forças armadas brasileiras. Imbuídos da ideologia de missão salvadora da pátria, reforçada pela participação na Segunda Guerra Mundial e nos contatos diretos com as forças armadas americanas – em especial na Escola das Américas -, os militares brasileiros consideravam-se os verdadeiros herdeiros do movimento que derrubara Vargas em 1945.  Tudo isso começa a criar, no interior das forças armadas – em especial a Aeronáutica -, grupos radicalizados, incentivados por forças políticas, em especiasl pelo “lacerdismo” e sua verve cada vez mais radical, grupos interessados no rompimento da Ordem Constitucional.

O caráter de “rompimento” com a tradição anterior das Forças Armadas, de manifestações políticas pontuais e, contudo, retono imedioto à Ordem Constitcional, de 1964, fica, explicitado, já em 9 de abril de 1964, no Preâmbulo do Ato Institucional No. 1 – serão na verdade 17 atos institucionais, sendo o mais “famoso” o Ato Institucional No. 5, o chamado AI-5, de 13 de dezembro de 1968 – quando fica establecido que:

“É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução. A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação. A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória….”

 

A auto-atribuição do Poder Legislativo ao Alto Comando Militar, retirando do Congresso Nacional suas atribuições constitucionais e do povo seu poder de voto caracteriza claramente o “esbulho democrático” e caráter de “golpe” do chamado “Movimento” de 1964.  A UDN caracterizou-se como um recorrente apoio e incentivo de pronunciamientos e quarteladas. Nesse sentido, há um perfeito paralelismo entre a experiência argentina e brasileira, onde políticos, empresários e latifundiários fazem apelos constantes aos militares enquanto “salvadores” frente a ameaça populista ou comunista. Na América Larina entre 1945 e 1964 inúmeros golpes, deposições de presidentes, pronunciamientos e quarteladas são produzidos por uma baixa oficialidade altamente politizada e fortemente envolvida no clima de anticomunismo típico da Guerra Fria. Neste sentido desempenha um papel central a criação e a atuação da Escola Superior de Guerra, a ESG, centro de formulação e planejamento de um regime militar alternativo à democracia liberal-representativa,  capaz de regenerar a nação., sob a influencia direta do, então, Coronel Golbery do Couto e Silva. Daí emanam os princípios básicos que constituirão a Ideologia de Segurança Nacional, fundamental na constituição do regime de 1964 e de forte impacto sobre o continente. Da sua liderança surgirá, também, a criação de mecanismos e instituições que organizarão o Golpe Militar de 1964 no Brasil.  Na ESG formula-se uma doutrina de alinhamento automático aos Estados Unidos com a crença no liberalismo econômico e numa visão otimista da ação dos capitais estrangeiros, na ausencia de uma “burguesía nacional” e como alternativa a ação do Estado na economia. Da mesma forma, a autonomia sindical e a ação dos partidos políticos são consideradas impatrióticas e divisionistas. A visão de mundo, em plena Guerra Fria, assumida por seus membros é simplista, maniqueísta e forjada no mais duro anticomunismo. Em grande parte vigoram  decisões que emanam do National Security Act, de 1947, como proposta pelo presidente Harry Truman. O golpe militar deslanchado em 1 de abril de 1964 conta com o apoio dos partidos de Direita no Congresso Nacional, da Igreja Católica e de boa parte dos meios de comunicação. O processo de transformação pelo qual passava o país – as chamadas Reformas de Base formuladas por Darcy Ribeiro e Celso Furtado, inclusive a Reforma Agrária – era visto como o caos preparatório de um golpe comunista, ou ao menos a prévia da implantação de uma República Sindicalista (posto ser absolutamente impossível caracterizar o governo Goulart, e sua entourage, como comunista ). A ditadura que se implantava viu, logo após um período inicial de aceitação, um vertiginoso crescimento da oposição. Parte das classes médias que haviam apoiado o golpe, amedrontadas pela intensa propaganda da Igreja Católica – como na Marcha com Deus pela Família e a Propriedade -, afastam-se do governo. Os vultosos recursos enviados pelos Estados Unidos e pela Alemanha Ocidental para a propaganda anticomunista, antes e imediatamente  após o golpe, – através de inúmeros orgãos de ação, como o IPÊS, Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, fachada montada por militares e industriais, entre os quais Golbery do Couto e Silva, da Escola Superior de Guerra, e que associa grande número de empresários (mais tarde, sob a ditadura, dará origem ao SNI, Serviço de Nacional de Informações, donde surgiram inúmeros quadros da ditadura, inclusive dois generais-presidentes ) não conseguem melhorar a aceitação do desacreditado regime nomeado, conforme Daniel Aarão Reis,  “regime civil-militar” em virtude da forte presença de empresarios e membros das classes médias, causando especial mal-estar a dureza da política econômica. A constante ação da oposição, capaz de reunir estudantes, líderes trabalhadores e intelectuais, que ocupam as ruas do Rio de Janeiro e São Paulo entre 1966 e 1968, acentua a crise do regime militar – as camadas médias começam a se afastar do regime que gestaram, acentuando a “solidão” dos militares.

Dada a grande participação civil no golpe, os militares, em profunda concordância com os partidos políticos conservadores, procuraram a manutenção de um arremedo de regime representativo-liberal, com um rump-parliament, expurgado – face ao silêncio dos demais parlamentares – dos políticos considerados esquerdistas. Na verdade, o comando militar do putsch edita, em 9 de abril de 1964, o Ato Institucional no.1 ( o AI-1 ), medida jurídica desprovida de qualquer base constitucional, que dá plenos poderes ao general Castello Branco, líder militar do golpe, rompendo com os limites entre o poder executivo, legislativo e judiciário, caracterizando classicamente a condição de ditadura do novo regime. O AI-1, primeiro de uma série de 17  atos que culminarão no famigerado AI-5 (1968), suprime mandatos parlamentares, suspende a vigência dos direitos civis, a intocabilidade e vitalicidade da magistratura e a estabilidade dos funcionários públicos de carreira, atingindo até mesmo o Supremo Tribunal Federal/STF. Assim, os Atos Institucionais, como mais tarde na Argentina e no Chile, serão a base do terror, como o AI-5 – fantasía política do bolsonarismo – e sua ferramenta na repressão política.

A derrota da linha defensora do retorno aos quartéis – defendida pelo general Castello Branco e os chamdos profissionais ou “castelista” – leva ao poder a ala mais radical – a chamada linha dura  – das forças armadas, sendo seu líder, o general Costa e Silva, indicado presidente. A reação e a resistência, civil e, mais tarde, armada via as chamadas “guerrilhas”, acabam por convencer os militares que o arremedo de democracia organizado desde o golpe de 1964 era inútil e mesmo contrário aos interesses da ordem. As grandes manifestações de rua no Rio de Janeiro ( a Passeata dos Cem Mil ), bem como as greves operárias nos centros industriais de São Paulo e Minas Gerais, abalam o consenso no interior das forças militares e a credibilidade da classe média na saída golpista para o desenvolvimento brasileiro. Uma ampla frente de artistas e intelectuais produz uma verdadeira cultura da resistência, onde o teatro, a música popular (a era a famosa canción de protesta latinoamericana, com nomes como Victor Jara, Mercedes Sosa, Inti Illimani, Chico Buarque de Hollanda, Pablo Milanés, Geraldo Vandré), a literatura e, somados a ação de professores e estudantes, isola a ditadura de seus apoios populares iniciais. Assim, em 1968, no bojo de uma profunda crise econômica e da perda de controle das ruas e avanço da guerrilla urbana – sequestro do embaixador dos Estados Unidos, por exemplo – produz-se o chamado golpe dentro do golpe, quando uma Junta Militar impede a posse do vice-presidente, no afastamento por motivos de saúde do general Costa e Silva, e impunha ao país uma dura série de medidas policiais, consolidadas, numa “Sexta-feira 13” (dezembro, 1968, início de uma longa noite política e cultural sobre o país ), no chamado Ato Institucional no.5, arcabouço durável da ditadura no Brasil.  A Junta Militar dá posse a um general desconhecido, Garrastazu Médici, saído da presidência do temível SNI, Serviço Nacional de Informações, que reúne em suas mãos a maior concentração de poderes já visto na história do país; inicia um amplo projeto econômico – a Segunda Revolução Industrial no país – acompanhada de violenta repressão. É editada uma Lei de Segurança Nacional – que será copiada por outras ditaduras latino-americanas – em 18 de setembro de 1969, com o estabelecimento da pena de morte e o banimento para crimes políticos, institutos recusados em todas as constituições republicanas do país. Da mesma forma é instituído o exílio interno, com os oponentes enviados para a selva, lembrando os mecanismos de banimento interno da, então, URSS. A polícia, civil e militar, os órgãos de informação e os mecanismos de punição das forças armadas – os famosos IPM, Inquéritos Policiais-Militares, adquirem autonomia e agem com desenvoltura, sequestrando, torturando opositores. Com apoio do empresariado e alguns meios de comunicação, que financiam os quadros da repressão, e treinamento militar americano – o famoso caso Dan Mitrione – surge a Operação Oban, responsável por um grande  número de sequestros e assassinatos. Por todo o país surgem os chamados “Destacamento de Operações e Informações” e os “Centros de Operações de Defesa Interna” ( os DOI-CODI ), em íntima associação entre empresariado e militares, e onde se pratica a tortura em larga escala. A vida pública também é atingida, desde 1969, com a militarização da polícia e a expansão da chamada Polícia (ou Brigada) Militar, polícia aquartelada e fardada, que passa a ser responsável pelo policiamento ostensivo. Em pouco tempo, a PM tornar-se-ia sinônimo de truculência, incopentência e corrupção, emergindo uma questão de segurança pública em larga escala nas cidacdes brasileiras. Em todos os órgãos públicos, tal como durante a ditadura do Estado Novo, são criadas DSI – Divisões de Segurança e Informações, dirigidas por oficiais das Forças Armadas diretamente ligados ao SNI. Candidatos a qualquer cargo do serviço público deveriam previamente apresentar um atestado de ideologia mediante exame de prontuário pelo DOPS- Delegacia de Ordem Social e Política.

Manipulando habilmente os meios de comunicação, criando a imagem do Brasil grande potência – o lema do governo é: Brasil, ame-o ou deixe-o! -, capitalizando a vitória do Brasil no campeonato mundial de futebol, de 1970, o governo atinge grande sucesso. Sem qualquer limite ou condicionamento trabalhista ou sindical, praticando violento arrocho salarial, o governo gere o chamado Milagre Brasileiro, um crescimento contínuo, ao longo do início da década de ´70, com taxas anuais em torno de 11%. O movimento sindical é inteiramente decapitado, e os sindicatos e federações do trabalho colocadas sob intervenção. Só são autorizados a funcionar dois partidos políticos, a ARENA – Aliança Renovadora Nacional, oficialista – e o MDB, Movimento Democrático Brasileiro, de oposição consentida. A ação partidária é, entretanto, severamente controlada, com censura prévia à imprensa, prisão e desaparecimento de parlamentares ( como no caso Rubens Paiva ) e cassação de mandatos.   A crise do petróleo, no rastro da Guerra do Yom Kippur, e a fuga dos capitais estrangeiros, leva ao estrangulamento do modelo. De posse de informações produzidas por seus próprios órgãos de espionagem, a Ditadura realiza eleições para o parlamento em 1974. As urnas, malgrado as limitações da censura, dão estrandosa vitória à oposição. O governo se cinde, e a ala radical acelera as prisões, torturas e violências, em especial em São Paulo (assassinato do jornalista Vladimir Herzog e do sindicalista Manuel Fiel Filho, num quartel do Exército) e no Rio de Janeiro, onde multiplicam-se atentados contra personalidades e instituições da resistência civil.

As vitórias sucessivas da oposição, em 1976 e 1979, comprovam a recusa popular ao regime civil-militar. O general sucessor, Ernesto Geisel, batido pela oposição permanente, a crise econômica e a nova política dos direitos humanos do Presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter, compromete-se com a anunciada abertura lenta, gradual e segura. Toda a sua gestão é uma sucessão de idas e vindas, com o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal e, ao mesmo tempo, um duro enfrentamento com os militares radicais – crise com o Gal Silvio Frota, cujo o assessor é o, então, “capitão” Augusto Heleno, hoje General bolsonarista. Seu sucessor, indicado pelos meios militares,  já em crise e sob risco permanente de golpe dentro dos meios militares, o general João Figueiredo – um homem do sistema SNI -, promete continuar a abertura, mesmo prendendo e arrebentando, como ele próprio diria. Ante os sinais evidentes de saturação e decrepitude da ditadura, cadavez menos “civil” e isoladamente “militar”,  o movimento popular cresce e ocupa as ruas. Primeiro em torno da luta pela Anistia e o retorno dos exilados, depois em prol das eleições diretas ( o Movimento Diretas-Já!, em 1983). Oportunisticamente, a ditadura se apossa da luta pela Anistia e apresenta um projeto que concede anistia “dupla”, para as vítimas e seus algozes, evitando assim que, no futuro, qualquer ato de violação dos direitos humanos pudesse ser apreciado pela Justiça.

Desempenha um papel fundamental na percepção dos militares o desfecho, no início dos anos  de 1970, das ditaduras na Grécia e em Portugal, onde os regimes ditatoriais – em especial, os coronéis gregos – não foram capazes de preparar a  retirada do poder e acabaram por ser levados a julgamento e para a prisão. Ao contrário, a solução pactuada na Espanha oferecia um modelo que desde logo cativou os militares e a Direita latinoamericana. A desaparição de Franco, el caudilho, em 1975, permite a reorganização da Direita tradicional, não-fascista, em torno da monarquia e do partido Unión de Centro Democratico, tendo Adolfo Suárez como seu líder. Em torno do imperativo da reconstrução institucional do país, e sem uma derrota eleitoral da Direita (vitória da UCD nas eleições de 1976 ), criam-se as condições para a assinatura, por parte de todas as forças vivas da sociedade espanhola, do chamado Pacto de Mancloa, em 1978.  Entretanto, ao contrário das ditaduras latinoamericanas, a Direita – eleitoralmente forte – negocia a legalização de todos os partidos, inclusive o tradicional PC espanhol e, fundamental, a autonomia das nacionalidades históricas existentes na Espanha. Ou seja, numa situação confortável, o governo de transição de Suárez oferece mudanças estruturais profundas, algumas vezes avançando além das propostas da República de 1936. A Direita española negociou o Pacto, todo o tempo, com os militares espanhóis, objetivando não perder o controle do proceso e evitar qualquer tipo de julgamento dos crimes de guerra, tortura e sequestro durante o regime de Franco. Esse era o lado “sedutor” dos Pactos de Mancloa.

Na América Latina, em especial no Brasil, fala-se insistentemente em pactuar a transição, embora com um contexto inverso. Os partidos de Direita, inclusive de apoio à ditadura, como o PDS, Partido Democrático Social ( herdeiro da ARENA ) eram frágeis e, mesmo assim, não ofereciam garantias estáveis de funcionamento democrático. O que havia por tras era, sempre, a ameaça militar contra a Transição. O pacto na América Latina é apenas uma forma de deter as aberturas políticas e garantir uma “tutela” militar continuada sobre a sociedade, como é evidente no caso da longa transição chilena[1].

O governo do general João Figueiredo, último general presidente, é marcado pela inépcia econômica, com a declaração da moratória brasileira ( 1983 ) e a autonomia da chamada comunidade de informações ( conjunto de militares engajados nos órgãos de repressão e espionagem política ), que organiza inúmeros atentados contra personalidades e instituições da oposição.inclusive o atentado do RioCentro. Entretanto, face a uma intensa mobilização popular, o general é obrigado a conceder a Anistia – nos termos que já vimos – e permitir um amplo debate eleitoral. As ruas das principais capitais brasileiras são tomadas por multidões contrárias ao regime e no Rio de Janeiro, centro tradicional de oposição ao regime, um milhão de pessoas exigem eleições diretas já! Embora o movimento popular fosse derrotado no congresso – dominado por senadores eleitos indiretamente, os chamados biônicos, a oposição consegue armar uma ampla frente partidária, com o PFL, Partido da Frante Liberal – dissidência do partido do regime -, sob a denominação de AD, Aliança Democrática e elege um oposicionista, Tancredo Neves, em 15 de janeiro de 1985, presidente da república. O último general-presidente abandona o futurista palácio presidencial construído por Oscar Niemeyer, em Brasília, pela porta dos fundos.

Terminava, assim, a ditadura militar no Brasil.

 

KEYDER, Çaglar. ¨Vom osmanischen Reich zur Republik¨ In: SEVEN, Ömer. Türkei. Hamburg, VSA, 1984 ;

SCALERCIO, Marcio. A Têmpera da Espada: os fundamentos do pensamento das lideranças do exército em 1968. In: ACERVO, Rio de Janeiro, v. 11, pp.101-116, jan.-dez. 1998.

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BRZEZINSKI, Z. Power and Principle: Memoirs of the National Security Adviser. Farrar Ed., New York, 1984.

TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. “ A Modernização Autoritária” In: LINHARES, M. Yedda. História Geral do Brasil. Rio de Janeiro, Campus, 2000, pp.301 e ss.

BEIGUELMAN, Paula. O pingo de Azeite: estudo sobre a instauração da ditadura. São Paulo, Inep, 1991 MATHIAS, Suzeley K. Distensão no Brasil: o projeto militar. Campinas, Papirus, 1995.

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TEMPO PRESENTE: “Um Tempo de viver e contar”

Sob o norte de Carlos Drummond de Andrade, em seu poema “Nosso Tempo”, voltamos a pensar a História do Tempo Presente como essa possibilidade de múltiplos enlaces que do presente explica o passado ou, nas palavras do poeta, que o historiador apropria, rouba e aplica: “E continuamos. É tempo de muletas.

Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam”.
E o poeta, como o historiador, insiste e prossegue:  “Contai!”, nunca podemos ceder e nem calar, temos o dever de contar todas as Histórias do nosso tempo, o tempo presente e seus enlaces.