Porque 2023 não é 2002 e não será 1964

Seria muito bom, mas ingênuo, imaginar que uma eleição – difícil, marcada pelo uso massivo  da máquina de Estado – possa mudar uma polarização radicalizada entre Democracia e Fascismo, como existente hoje no Brasil. Infelizmente o núcleo político do Governo Lula da Silva não entendeu a atual situação no Brasil, a virada brutal que se deu na política brasileira depois de 2013/2014 – contemporânea a virada na Ucrânia e com o mesmo sentido. Isso mesmo: Dilma Rousseff foi vítima de uma “Revolução Colorida”.  Em 2013 o fascismo, ainda desorganizado, fez sua aparição na cena política (para além de flor exótica de redoma museológica).

As pesquisas de Adriana Dias e do grupo de estudos de  Dilton Maynard – o GTempo/UFS  – comprovam isso. No entanto, o núcleo político-militar do governo  (com o então Ministro chefe do GSI , Gal GDias, a Abin, os ministros Ruy Costa, Alexandre Padilha, José Múcio Monteiro e, por vício de estabilidade e de apego a imagem pública, o Ministro Mauro Vieira, do Itamaraty), apostaram na “Doutrina do Gradualismo” visando “apaziguar” o bolsofascismo – palavra que se tornou infame exatamente na História dos Fascismos – mas, isso os ministros não conhecem e nunca estudaram. Estabeleceu-se como “doutrina” que os ditos “acampamentos patrióticos” eram compostos de brasileiros democratas e pacíficos, posto que lá estavam até parentes do Ministro da Defesa, conforme afirmou em auto-declaracão em 2 de janeiro de 2023.

Assim, não afastaram os bolsofascistas das áreas centrais, vitais, do Estado, que fora eficazmente colonizado por fascistas, reacionários e militares saudosos de 1964 durante os Governos Temer e Bolsonaro. Os bolsofascistas continuaram na Abin e no GSI, depois da posse de Lula da Silva e mesmo depois do golpe Estado falhado de 8 de janeiro de 2023. Lá estavam para conspirar e trair a ingenuidade política do próprio Gal GDias (e do ministro da Defesa e de seus parentes “Patrióticos”). Somente com o “estranho evento” de 19 de abril de 2023, quando a TV CNN mostra vídeos – vazados pelo próprio GSI – no qual o Gal GDias aparece atônito e paralisado no Palácio do Planalto em plena invasão dos depredadores fascistas.

No entanto, após a prisão do TC Mauro Cid, em 18 de maio de 2023, emergem planos reais, concretos, do golpe de Estado preparado para 30 de outubro de 2022, quando haveria uma intervenção no STE e no STF, com prisão de ministros e anulação do resultado eleitoral, declarando-se Jair Bolsonaro o único vencedor das eleições. Para isso reuniriam-se tropas do Comando Militar do Planalto, do Batalhão Duque de Caxias e mais 1500 homens trazidos do Rio de Janeiro, onde o submundo do crime e as origens do fascismo se confundem e se retro-alimentam -vide o Caso Marielle e Anderson. 0 responsável por essa conexão Rio/Militares/bolsonarista seria nada menos que o Coronel Elcio Franco, nomeado para Agência Nacional de Saúde, e conselheiro da camarilha bolsonarista, e que comandou a (des)Saúde Pública – braço direito do notório  Gal Pazuello –  brasileira enquanto os brasileiros morriam aos montes sufocados em Manaus e ou se realizava o genocídio Yanomami. Fracassado por total imobilidade das tropas, o golpe de 30/10/2022 foi transferido para 8/01/2023.

Todas as forças fascistas foram convocadas para a “Festa da Selma”, senha/código da Insurreição fascista ( emulando Roma, 1922; Munique, 1923; Kiev, 2014; La Paz, 2019 e o Capitólio em 2021). Assim erguiam-se os três pilares do golpe: 1. Os 20 mil depredadores fascistas reunidos com financiamento do agro-negocio e do capital financeiro; 2. A conspiração no âmbito do Governo do Distrito Federal, com Anderson Torres à frente, utilizando-se da PM do GDF e, finalmente, 3. A conspiração no âmbito dos órgãos federais, como o próprio GSI, Abin, Batalhão Duque de Caxias e o Comando Militar do Planalto.

As Forças Armadas, divididas, hostis ao PT e a Lula, mas sem qualquer consenso para um Golpe de Estado, só sairiam dos quartéis se a Insurreição fascista tomasse fôlego e se estendesse pelo país. O que quase aconteceu entre 6 e 9 de janeiro de 2023: torres de transmissão de energia foram dinamintadas em São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul; refinarias foram cercadas e ameaçadas de invasão em São Paulo e Rio de Janeiro e bloquearam-se estradas nos Estados do Sul. Aposta era no caos que imporia o “apelo” á ordem por parte das FFAAs. No entanto o Governo Federal reagiu rápido, ladeado pela Advocacia Geral da União, com o Ministro Jorge Messias, e o Ministério da Justiça, sob Flávio Dino. Recusaram a imposição de uma operação de GSI já engatilhada – que viria ser de fato a tal “Intervenção Militar Constitucional” , apoiada no escombro da ditadura inserido na Constituição de 1988, o debatido Artigo 142.

O governo optou pela intervenção federal civil, baseada no Artigo 136, que versa sobre o Estado de Defesa,  escolhendo um civil, o jornalista Ricardo Capelli, como interventor. Mesmo assim houve reações: o Comandante do Exército, Gal Arruda, moveu blindados e desdobrou tropas para impedir a ação do Interventor Federal e do próprio Ministro da Justiça, dando tempo para a fuga de elementos de Operações Especiais infiltrados entre os depredadores no Palácio do Planalto, no STF e no Congresso Nacional. A mesma atitude deu-se com o Coronel Fernandez da Hora, Comandante Militar do Batalhão Duque de Caxias, a guarda presidencial do Palácio do Planalto. Ainda não se sabia, no entanto,  que o Gal GDias participara dessa operação de fuga dos responsáveis e viria a ocultar do próprio Presidente da República as provas da “abertura das portas” do Palácio para os invasores, nas palavras do próprio Lula da Silva.

Assim, a lentidão na hora de assumir as responsabilidades do Estado e a incompreensão de que os inimigos hoje são os fascistas, não o PSDB como em 2002, paralisaram o governo – e em parte ainda está paralisado com bolsonaristas em cargos na Saúde, na Educação, no Incra, no Dataprev, na PF, na PRF, em órgãos da Cultura e da Gestão Pública.

O fascismo, histórico e contemporâneo, desde as análises de Nico Poulantzas e de Detlev Peukert, se distingue das ditaduras pessoais, como no Caso de Vargas e Perón e das ditaduras militares, como no Brasil ou Chile. Como “Estado de Exceção” destrói por dentro as regras institucionais da Democracia Liberal Representativa, toma em silêncio as instituições do Estado – como as polícias, a clínica, a Magistratura, a escola, etc.   para então assestar seu golpe fatal. O primeiro levante fascista na Alemanha foi em 1923 e, no entanto, Hitler só chegaria ao poder – apoiado por outro “centrão”, o Partido do Zentrum e as forças conservadoras -, dez anos depois, em 1933.

O fascismo contemporâneo não fará um golpe como aqueles de 1964 ou 1973 na América do Sul e, tão pouco, são forças políticas do “arco constitucional”, como era em 2002 o PSDB.    O bolsofascismo trabalha na putrefação do Estado de Direito, no mal-estar coletivo e com o ressentimento dos grupos sociais que imaginariamente se sentem roubados – a “perda” subjetivada – pela ampliação do “demos”, da Democracia, em direção aos grupos alternativos e diversos, e por isso tornam-se tão facilmente capturáveis pelo racismo, misoginia, falocracia e pelo machismo.

O Governo Lula deveria “afinar” seu núcleo político e entender que nenhum cargo ou ministério acalmará a fome fascista. A única saída da maré montante extremista é ampliar o diálogo com as forças vivas da população, abandonar o medo ao povo, promover novos interlocutores, muito além dos gabinetes de Brasília.

247  16 de junho de 2023, 16:55 h

A Reforma do Ensino Médio e o Futuro do Brasil

Pela primeira vez a maioria dos professores de História, Sociologia, Filosofia e os maiores especialistas em Educação estão em profundo desacordo com o Governo Lula. Claro, o fulcro da questão é o chamado “Novo Ensino Médio”, o NEM. Creditamos tal desacordo, profundo e de princípios, ao atual Ministro da Educação e sua equipe, incluindo os resgatados do Governo Bolsonaro, como o Secretário de Ensino Médio do MEC. Mas, não é só : como afirmar que o PT é o partido que abraçou Paulo Freire ou Anísio Teixeira como princípios quando a Educação é descaracterizada em seu aspecto maior de ação positiva de emancipação popular? Hoje, o ódio e o apagamento de nossa História são marcas do quotidiano. Nunca antes neste país precisamos tanto de História, de conhecer nossa própria História, para não repetir uma História feita na opressão de classe, de cor e de gênero. A escola tornou-se um campo de batalha real e simbólico. Mas, então, eis que um grupo autoritário de homens que armaram o Golpe de 2016 , a criminalização dos movimentos sociais e a injusta prisão de Lula, impõe durante o espasmo autoritário, fascistizante dos Governos Temer e Bolsonaro, um projeto de Educação que acaba com aulas de História. É a vitória do apagamento de uma memória necessária, indispensável, para a formação de adolescentes e jovens. Quem estudará mais a Revolução de 1930, o Integralismo e seus asseclas fascistas, quem falará “Nunca Mais!” para Auschwitz? Sem as aulas de História? Reinará o silêncio. No nosso ofício, no nosso campo, os homens de 2016 ainda estão no poder. Por quê? Por duas razões simples: de um lado a “economia” que os governadores farão com o menor número de professores e a incorporação de “curiosos” e fazedores de brigadeiro ao corpo docente das escolas; por outro lado, vence a pressão das Fundações do capital como Bradesco, “Todos pela Educação”, Fundação Ford e outros interesses invisíveis. Vemos um governo do PT , orientado por tecnocratas insensíveis, fazer o que a própria Ditadura Militar não conseguiu. Na luta contra a famigerada imposição, nos anos de 1970, da disciplina “Estudos Sociais” e Educação Moral e Cívica substituindo, com um currículo de “paz social” e da “ternura brasileira”, a heróica história de Zumbi, Tiradentes ou Luiz Gama. Lutamos contra esse estupro da História, com Sérgio Buarque de Holanda à frente. Então deram-se anos e anos de abandono, de miserabilidade de salários, de professores “de matrícula”, longe do convívio pleno com alunos, pais e colegas. Hoje, a escola foi invadida pela violência. Os meios de comunicação estão dominados; as Igrejas tornaram-se empresas de lucros fáceis e de fabricação do ódio; as famílias se dividiram. Restou o último espaço de lutas pela Educação emancipadora, capaz de combater o ódio de classe, o ódio de gênero e o ódio de cor: a escola pública, laica, gratuita e principalmente de Qualidade. Como combater o mal que se abate sobre crianças, adolescentes e jovens se os privamos de sua própria História. Por que o silêncio dos ministros dos Direitos Humanos, das Desigualdades e dos povos indígenas? Cada um no seu quadrado identitário com seus cargos e alheios ao objetivo maior – uma Educação Emancipadora. Todos são coniventes. “Quem cala sobre teu corpo consente na tua morte!” Não, não vamos nos calar. Como explicar o racismo, sem debater a Escravidão e o terrível Tráfico Negreiro? Como explicar o Massacre dos Yanomami sem debater a natureza da colonização ? Sem História o ódio vencerá! Por fim, no futuro como os adolescentes saberão a incrível e fabulosa vida de Lula da Silva sem História? Como combater o racismo e apologia ao nazismo sem História, Sociologia e Filosofia. Sem esse debate as nossas escolas serão viveiros de jovens neonazistas. É triste que sejam aqueles que sempre foram acusados do “crime” de seguir Paulo Freire sejam os primeiros a negar suas próprias ideias. Viva Sérgio Buarque de Holanda e todos os professores do Brasil.

O “Novo Ensino Médio”: discutir sem enrolação.

Creio que há , ao menos, quatro pontos cruciais muito nefastos no NEM: 1. A ideia que a garotada já vai escolher seu futuro entre os 15/17 anos, sem nenhuma realidade ou estágio prévio; 2. Nossas universidades estão com um nível de trancamento em torno de 25% dos matriculados a cada ano, discutimos agora, nas universidades, formas de retenção de estudantes com flexibilidade no momento da escolha de carreiras no vestibular; 3. a escolha prematura irá aumentar a desistência/trancamento/abandono, daqueles que possam chegar até ao Nível Universitária; 4. E, por fim, é fundamental restabelecer os conteúdos básicos formadores da cidadania e do entendimento do mundo pelos próprios jovens. Por outro lado, são pontos positivos do NEM: 1. O aumento da carga horária formadora; 2. A implantação de tempo integral. No entanto, ambas as condições não são sustentáveis em vários pontos do Brasil. Assim, o Governo, sendo democrático e popular, deve socorrer as Secretárias Estaduais com recursos institucionais e perenes; 2. Deve ser criado um sistema de incentivo tipo “Lugar de aluno é na Escola”, com bolsas que combinem desempenho com engajamento em atividades extra-classe. Esses são pontos para começar a conversa!

1964: “Meninos, eu vi!”

Hoje, com a necessária correção ao poeta Gonçalves Dias, a paráfrase ao grande poema romântico “I Juca-Pirama” deveria ser: “Meninas, Meninos, Meninxs, eu vi!” Pouco importa, em verdade, para a História que vou contar: “…meu canto de morte/amigos ouvi!”. Mais uma vez estamos diante de um 31 de março, quase 60 anos depois daquele 31 de março de 1964.

Hoje, longe daquele ano de 1851, do “I Juca-Pirama” do poeta e ainda assim tão perto daquele 1964, faço um canto triste perante a necessidade de não esquecer, jamais apagar, as lutas daqueles que lutaram a justa guerra: “Contudo os olhos d’ignóbil prantos secos estão/ Mudos os lábios não descerram queixas/ Do coração”.  Canto por ofício a morte, os sequestros, a tortura dos bravos da História. Meu canto ergue-se por pura necessidade de dizer “não” ao negacionismo, o revisionismo, ao apagamento. Necessidade imposta pelo charlatanismo, pelo desamor com a História. Durante os longos 21 anos de céu triste e choroso, de cinza e pó, não era preciso um canto de rememoração: isso era tarefa da própria ditadura, que mesmo velha e só pelancas, erguia toldos, palanques e alegorias votivas para glória própria. A ditadura festejava nas ruas a própria natureza do golpe: militar, desde sempre, empresarial na conjuração – como nos editoriais de Eugênio Gudin em O Globo -, civil pelos partidos, associações e coletivos comerciais; mediática, via o “Correio da Manhã” e do próprio O Globo, posto que sem o convencimento e a sedução não se arrastaria as massas que festejariam a morte da Constituição nas ruas de Copacabana. Pois sim, “…Meninos, eu vi!”, Copacabana não me engana, engalanou-se para pedir o Golpe e depois festejou como Réveillon seu desfecho. Triste Copacabana, de fascistas e reacionários! O Golpe foi também ecleseástico. Sim, em desafeto à Democracia, 1964 foi pedido com rosários e velas nas mãos. Todos estavam lá: empresários, latifundiários, comerciantes, padres ultramontanos.  Sim, “ultramontanos” posto que não gostaria de adjetivar 1964 de um “Golpe Religioso”, mas somente “ecleseástico”. De uma hierarquia católica comprometida com as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” – “Liberdade”, palavra corrompida por todos os que planejam a tirania. Nos primeiros meses de 1964 marcharam mulheres, ditas “donas de casa”, de “prendas do lar”, os latifundiários, os empresários da Fiesp – ah, a Fiesp! Claro, nada aconteceria sem a Fiesp. Todos orando com rosários de prata, de ouro, de pérolas nas mãos. As ruas do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte encheram-se de mulheres piedosas, de véu e fitas, Filhas de Maria. Homens sisudos, batinas e pequenas cruzes de ouro na lapela. “ Olha lá vai passando a procissão/Se arrastando que nem cobra ​pelo chão/As pessoas que nela vão passando/Acreditam nas coisa lá do céu!”, advertiria Gil.

Não, nada daquilo era “religioso”, mas era clerical: a visita do Padre irlandês Patrick Peyton (1909-1992), uma “pessoa” da CIA, um investimento do empresário ultraconservador, católico J. Peter Grace, manipulador dos mercados mundiais de açúcar, bebidas e minérios, altamente interessado nos destinos da América Latina. Padre Peyton era uma arma tão valiosa contra a Democracia quanto a Operação Broither Sam, com a qual os Estados Unidos pretendiam garantir a vitória dos golpistas: havia cem toneladas de armas leves e munições e navios. Tinha com 50 unidades a bordo, tripulação e armamento completo, um porta-aviões, seis destróieres, um encouraçado, um navio de transporte de tropas e 25 aviões para transporte de material bélico. Kennedy, Peyton, Grace, e também Konrad Adenauer eram os nomes estrangeiros da conspiração contra a Democracia no Brasil. Todos olhavam para Cuba, a pequena ilha agrária, pobre e católica que, desde 1959, causava pânico em Washington por sua capacidade de mobilização e esperança, exemplo, para muitos, de futuro e, no entanto, para outros horror e pânico. Como a ilha dos cassinos, dos charutos, dos bordéis da máfia, do rum e do açúcar das refinarias americanas fora perdida? Impaciência e revolta. E ainda pior: aqueles revolucionários recebiam armas de Moscou.  Pois é, “…meninos eu vi!” Nos sermões das igrejas se rezava pelo infeliz clero cubano levado ao exílio ou ao “Paredón”. Desde a invenção da “Cuba Libre” nenhuma palavra espanhola parecia tão popular no Brasil com “el paredón!”. Justo? Cruel? Necessário? Abominável – as opiniões eram diversas, mas o debate era comum, popular, fazia pensar. “Esse canto, meninos eu ouvi!”.

Tinha, então, 10 anos, menino morava no bairro operário da Penha, entre a fábrica de couros e os sutiãs “De Millus”. Foi lá, num belo domingo de janeiro, na feira livre, que os asseclas das marchas de Deus reuniam doações e assinaturas contra a “infiltração comunista na Igreja e no estado”. Foram, contudo, vaiados, presenteados com tomates pobres, um par de ovos e por fim expulsos da feira. Em grande parte das periferias urbanas, como no Rio de Janeiro, o PTB era maioria, pobres e operários apoiavam Jango e seu governo, explicitando o apoio de 70% da população ao projeto de Reformas de Base de Goulart, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Abelardo Jurema…. E, nas ruas e nas rádios, exigidas por Leonel Brizola e Francisco Julião, o líder das Ligas Camponesas, que em escolas improvisadas estudavam pelo Método Paulo Freire. O Brasil fervia de ideias, de homens, na urgência do futuro. Antonio Callado, depois, narraria tudo em “Quarup”.  Foi isso, “meninos que eu vi!”.

No entanto as marchas continuavam: a grana vinha de fora, vinha das associações ruralistas, empresariais e dos IPES que a face oculta, militar-empresarial, montava. Todos se lançavam às ruas contra o “temível comunismo” embutido nas Reformas de Base: Reforma Universitária, a extinguir as cátedras e aumentar as vagas, garantir o ensino para todos e matricular aqueles ditos “excedentes”, numa universidade gratuita e laica, o que revoltava as Igrejas, senhoras de um virtual monopólio sobre o Ensino de Qualidade no país. Cada escola, um santo, um coração sangrante, como as chagas do povo com fome. A Reforma Bancária, impedindo o monopólio dos financiamentos e a manipulação extorsiva dos juros contra os pobres e remediados – um Banco Central seria criado só em 31/12/1964 – bastião da continuidade empresarial e bancária, longe da vontade popular. A Reforma Constitucional que deveria democratizar o Estado e garantir mecanismos de supressão da pressão externa e os “Pronunciamentos” militares. A Reforma Administrativa, modernizando o Estado, tornando-o mais popular e democrático, leve e eficiente, afastando de vez o patrimonialismo de classes oligárquicas que usavam cargos e ofícios como prebendas e sinecuras, típicas de uma sociedade colonial. A Reforma Fiscal, com o estabelecimento de um imposto progressivo sobre grandes fortunas, heranças e sucessões, taxando o latifúndio e – pasmem! – as remessas de lucros para o exterior. Corrigia-se a secular injustiça dos impostos sobre o consumo popular. E, claro, a Reforma Agrária, horror dos latifundiários, que deveria corrigir a injustiça de uma Abolição sem indenização dos escravizados, prover milhões de brancos pobres, devolver a terra dos retirados das secas, da fome e do latifúndio. “Não é cova grande/é cova medida/é a terra que querias/ver dividida” dizia o poeta João Cabral de Mello Neto. A Reforma Agrária, libertando milhões de moradores, meeiros e simples ocupantes, além de pagar a dívida histórica, deveria garantir alimentos e matérias-primas baratas, abundantes, para o processo de industrialização sustentada, livre da dependência , como pregava Jango, Darcy e Furtado. O povo apoiava:  “As setas da aflição já se esgotaram/Nem para novo golpe espaço intacto/ Em nossos corpos resta”.

Na verdade 1964 era um ano mais avançado que 2023: ainda nos restam por fazer as reformas que perdemos na longa noite de 31 de março.

“Isso meninos, eu vi!”: em Magé, no fundão da Baía de Guanabara, onde meus avós moravam, os proprietários de terras, amaldiçoando Jango, derrubaram as matas e venderam a madeira para fazer carvão. Outros colocaram bois raros num pasto ralo, só para dizer que suas terras não eram latifúndios aptos para a Reforma Agrária. Muitos atearam fogo às matas: “Esse é meu canto de morte/guerreiros ouvi!”.

Então veio a tragédia: era uma terça-feira, aquele 31 de março de 1964, quando blindados rolaram de Minas Gerais sobre o Rio de Janeiro, de fato, ainda a capital federal. O Governador, do então, Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, se encastelava no Palácio com armas pesadas, tropas do CCC/Comando de Caça aos Comunistas e oficiais da Aeronáutica e da Polícia Militar. De lá, em discursos histéricos, de anticomunismo ensaiado – um comunismo que não amava Jango e que Jango não amava! – instigava as tropas todas, toda a força militar, a aderir ao Golpe em curso. Invadia-se a sede da UNE, os sindicatos, a Universidade: “São rudes, severos, sedentos de glória/já prélios, incitam, cantam a vitória”. Nas rádios hinos e rezas se sucediam, pedindo ao deus deles – mais do que nunca o deus dos exércitos – o sucesso da empreitada golpista. “Meninos, eu juro, eu vi!”. As avenidas e as ruas foram fechadas. A Avenida Brasil, chamada então pelos cariocas de “Variante”, foi fechada pelos militares, que param e inspecionam pessoas, documentos, ideias, apropriando-se das funções de polícia num terrível spoiler do amanhã. No outro extremo da cidade, ferroviários e portuários fechavam a Avenida Francisco Bicalho e Rodrigues Alves, enquanto a euforia tomava Copacabana. Mas, já era tarde: o tão propalado “Esquema sindical-militar” de Jango não conseguiu garantir a legalidade e o governo constitucional. As rádios que resistiram, num momento que a TV ainda era de minorias, foram invadidas. A Rádio Nacional, de tantas glórias, onde o radialista e showman César de Alencar acusava, na hora, colegas de comunistas. Homens como Mário Lago e Paulo Gracindo seriam punidos pela delação do animador de auditórios. “Meninos, eu vi!”.

Meu pai, um apaixonado pelo Rádio, que comprava grandes “discos” de 78 rpm, de Miltinho, Doris Monteiro, Nora Ney e Alaíde Costa, jamais perdoaria César de Alencar. Na “boca pequena”, muito receosa, o showman era tratado pelo nome de um recém lançado detergente líquido: ODD. A sigla serviria, doravante, para colar como piche, naqueles que se prontificavam para a delação: ODD/”O dedo duro!” Um nova realidade que tornaria o cotidiana irrespirável.

Mas, também, os militares foram vítimas de seus colegas de farda: 7.540 militares foram presos, torturados, humilhados, sequestrados e expulsos das Forças Militares. A maioria não sabia sequer o que era comunismo, apenas se declaravam nacionalistas, como Rui Moreira Lima. Lá estavam com a legalidade e a Constituição oficiais patriotas como Sergio Macaco, almirante Cândido Aragão, o Brigadeiro Francisco Teixeira e o General Euryale Zerbini.

Naquele 1 de abril, uma quarta-feira, meu pai não foi trabalhar: saímos de carro para pescar. Todos os órgãos públicos estavam fechados, havia a Lei Marcial. No entanto, ao atravessar a ponte para a Ilha do Governador, postos pescarmos na Pedra da Onça, a Aeronáutica parou o pesado Chevrolet de 1959, examinou os documentos de meu pai e nos impediu de prosseguir. Todos deveriam permanecer em casa. Não haveria pescaria, mexilhões ou cocorocas. Foi isso que eu vi.

Claro, havia os inimigos de sempre: os professores. Sempre eles, comunistas, ateus, subversivos, inimigos da religião, da propriedade e da família. Os delatores eram homens como o catedrático de História Antiga da FnFi, hoje UFRJ, Eremildo Vianna, que organizava listas de colegas a serem presos, cassados, aposentados via os atos institucionais da duvidosa “Revolução” gloriosa. Em tais listas constavam o físico José Leite Lopez, as Historiadoras Eulália Lobo e Maria Yedda Linhares, o maestro José Siqueira, o antropólogo Darcy Ribeiro, o sociólogo Victor Nunes Leal, o historiador Caio Prado e o homem que denunciou a fome no Brasil, Josué de Castro, com sua “Geopolítica da Fome”. A “Inteligência” brasileira era decapitada num festival de besteiras e de brutalidades denunciado por Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta. Estudantes eram expulsos das universidades através do Decreto 477, que impedia qualquer ação política, crítica ou organização dos estudantes. Elio Gaspari, Vladimir Palmeira, Luis Travassos, Maria Augusta, Daniel Aarão Reis serão apenas alguns dos muitos punidos pela Ditadura. Alguns alçarão vôo nas asas da Aeronáutica num último vôo noturno, como Stuart Angel Jones, que deixará uma mãe em busca de um corpo: “Quem é essa mulher/Que canta sempre o mesmo estribilho/Só queria embalar meu filho/ Que mora na escuridão do mar” – na homenagem de Chico Buarque. Outros seriam mortos em praça pública, como o menino vindo do Norte Edson Luís do Nascimento.”Meninos, eu vi!”

Pela primeira vez desobedeci meu pai: não fui a aula naquela manhã e ainda com o uniforme do Pedro II fui à missa na Candelária. Te Deum. Te Deu laudamus Edson! A cavalaria da PM atacou na saída, rompendo o cordão de proteção de padres e freiras. Fumaça e gases invadiram a nave santa. Deu-se a reação: bolas de gude foram lançadas, os cavalos tremiam e o cavaleiro ia ao chão. Nas vielas da Rua do Rosário e Buenos Aires havia cavalos, cassetetes, bombas e fumaça e o uníssono “Abaixo a Ditadura!”. “Seus nomes voam lá na boca das gentes/ Condão de prodígios, de glórias e terror”.

E meu pai? Próximo assessor do Ministro Paulo de Tarso, da Educação, foi sumariamente afastado do serviço público. Uma das coisas que mais me impressionavam e meu pai era o aprumo: os ternos de linho branco, verde clarinho ou azul celeste, com prendedores de gravata. Jamais se recuperaria do baque, mesmo depois de retornado ao seu posto, no fim da ditadura, a vida lhe seria pesada.

Tudo isso, como no poema romântico, Senhores, eu vi – a bem da verdade, eu vivi! Um garoto que ficava acordado, no quarto, ouvindo as vozes graves na sala. Um tio, físico formado na Universidade Patrice Lumumba, diria entre sussurros: “…vivemos uma longa Noite de São Bartolomeu!”. Eu, então, não sabia o que era “uma Noite de São Bartolomeu”, o massacre, as violações e torturas que todavia já vivíamos. No dia seguinte, correndo para a vasta biblioteca do Colégio Pedro II, fui pesquisar “Noite de São Bartolomeu”, 23/24 de agosto de 1572. Sim, seria uma longa noite de medo e opressão, 21 anos pesados como chumbo. Ali no saguão da biblioteca do Pedro II descobri que seria historiador. Com o coração batendo do lado certo do peito. “Confesso – como o poeta morto num outro Golpe [que tudo isso] – eu vivi!”.

Terrorismo, uma guerra do tempo presente

Ao longo do século XX, e já nestas décadas do século XXI, o fenômeno do Terrorismo, mostrou-se uma preocupação central na Política de Defesa e Segurança das Grande Potências, muitas vezes, como depois de 11/09/2001, nos Estados Unidos e dos ataques múltiplos de 13/11/2015, na França. No entanto, os atos terroristas, ou num sentido mais amplo, a política terrorista enquanto uma sistemática – e aqui descartamos como tal atos de sabotagem no âmbito de guerras formais, como por exemplo a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) ou a Guerra Georgia-Federação Russa  ( ou Guerra da Ossétia do Sul), de 2008, pelo seu caractere de atros “embebed” num conflito reconhecidamente bélico. O ato terrorista, na maioria das avassaladora das vezes, é cometido fora de condições de guerra, ao menos de condições de guerra formais, contra populações civis, de forma inesperado, visando causar o maior dano possível, tanto material – destruição de prédios, vias de comunicação, transporte, armazenagem, monumentos simbólicos – quanto em vidas humanas, algumas vezes dirigidas para alvos militares como quartéis e guarnições.

O elemento central, caraterizador do terrorismo, na sua atualidade, e fora do contexto de uma guerra convencional – quando teríamos dúvida em classificar atos violentos individuais como terroristas –  é que a violência contra alvos específicos de grande impacto – possui um caráter de nítido de ‘propaganda pelo ato “.  Muito mais do que visar destruir, vencer ou desalojar um inimigo muito mais forte e poderoso o ato terrorista possui este nítido caráter “desmoralizador” do inimigo mais poderoso. Na Argélia, durante a “batalha de Argel”, na Irlanda do Norte”, no Vietnã ou no Afeganistão, ao lado das operações militares a estratégia terrorista desempenhou um papel central de desmoralização de um inimigo várias vezes mais poderoso, bastante bem implantado nas suas posições e com um abastecimento infinito. Contudo, após uma larga companha terrorista, mesmo com baixas brutais do lado ativista – vítima de uma larga política de infiltração, delação e de torturas – os “ocupantes” se viram exaustos e desmoralizados, além de expostos aos olhos da opinião pública – incluindo a sua própria crítica interna – como brutais e desumanos, levando a desistência, à com conversações de paz e, por fim, levando a própria retirada do território. Em apenas dois casos, o ocupante “colonial.” teve êxito ao enfrentar um movimento de insurreição com forte uso do terrorismo: na Insurreição Malaia e no Movimento Mau-Mau no Quênia. No entanto, em ambos os casos, entre 1950 e 1960, foi preciso colocar em prática um amplíssimo programa social que, ao final, culminou na independência de ambos os países.

Ao longo dessas décadas, as táticas usadas pelos que praticavam o terrorismo também variaram muito. Walter Laqueur afirma que assim como a motivação, o modo de operação das ações terroristas também mudou muito. O terror podia surgir junto a uma campanha política ou ação guerrilheira,  após o fracasso de um movimento pró-independência, ou pela luta em favor de um novo regime.

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Vítimas de ações Terroristas/Mundo/2019

País %
Afeganistão 25
Iraque 23
Nigéria 8
Somália 8
Síria 6
Paquistão 5
Egito 3
RD Congo 3
RC da África 2
Índia 2
Mundo 18

 

Fonte:  https://fr.statista.com/statistiques/574820/pays-ayant-le-plus-grand-nombre-de-morts-dus-au-terrorisme-dans-le-monde/

 

O “terrorista” busca entende e identificar onde se situa o chamado  “centro de gravidade” – o “Scwherpunkt”, como identifica Clausewitz – do  “inimigo”, regime, forças armadas, empresas,  para dessa forma causar, com poucos recursos, normalmente explosivos, o maior dano possivel.

Ao contrário dos exércitos formais, clássicos, que buscam impor sua vontade, e vencer os conflitos formais, destruindo a panóplia  inimiga – o conjuntos de forças, armas, meios logísticos  – e assim sujeitá-lo à sua vontade –  lembremos que o objetivo da guerra é destruir a vontade de lutar do inimigo via a destruição de seus meios de guerrear -, o terrorista reconhece não possuir tal capacidade. Assim, para ele, o “centro de gravidade clausewitsiano” dos adversários – que varia muito  na  democracias representativas de massa e nas ditaduras  – residiria na coesão e no consenso da opinião pública ou na fachada de força do regime adversário. Assim, a escolha do alvo pelo terrorista assume formas diversas em cada caso, contudo sempre um aspecto altamente “pedagógico” e espetacular. O terrorismo pretende sempre “dizer” algo para “dois públicos”, em mão dupla. O terror possui, desta forma, sua própria racionalidade e um desdobramento pedagógico que configuram uma estratégia,  que chamamos de “mão dupla”: de um lado, “o desdobramento voltado para dentro”, ou seja, para seus aliados e por quem, aparentemente, luta visando causar júbilo, admiração e apoio;  e, por outro “o desdobramento voltada para fora”, que busca amedrontar seus inimigos, causar, para além do dano material, e humano, desconcerto, humilhação e desanimo. É a isso que denominamos de “mística do terror”, a raiz de sua eficácia.

Ou seja, o terrorismo possui a capacidade de escolher o teatro de operação, os meios de luta – embora cada organização tenha na maioria das vezes uma espécie de “assinatura” do tipo de instrumento, forma e alvo de luta utilizado.

A  multiplicidade de meios de destruição/ataques, como os diversos  explosivos e suas fontes podem facilmente identificar o grupo. Assim, é clara a fixação em um só tipo de “ferramenta” para cada grupo: TNT, roubado de pedreiras; bojões de gás de fácil acesso; gasolina; fabricação própria via um “engenheiro” do grupo; aquisição de componentes em lojas de defensivos agrícolas; roubo em indústrias. É pouco comum uma combinação de meios numa mesma organização. Mas, no entanto, é possível.  Esta é,  a novidade do Daesh/Isis, em suas conclamações “matem infiéis, hereges, cruzados e judeus” com quaisquer meios ao seus alcances. Neste caso do Daesh veremos o uso de bombas, sequestro de aviões, arma branca e até atropelamento por carros e caminhões, tornando muito mais difícil a prevenção e captura dos componentes das redes do Daesh/Isis.

Ao escolher um alvo – um ponto turístico mundialmente famoso, um símbolo de poder econômico, um chefe de Estado, um alvo militar, um centro de população civil aparentemente seguro  – o terror fala, assim, ,simultaneamente,  as suas duas linguagens: para os “oprimidos” desmoraliza o opressor e, explicita seu próprio poder de “bater” onde e quando escolher e, para o “opressor” sua ubiquidade e potência. Desta forma, num corolário síntese das duas falas, produz um efeito à mais: a capacidade de atrair recursos na forma de finanças e de alistamento humano, já que se mostrou eficaz e desafiador de uma “ordem injusta”. Foi assim, que o IRA, o “primeiro” Hamas ou Califado Islâmico, por exemplo, na sua escalada de ataques e, de negação das vias de negociação pacíficas. Desde o final do século XIX e começo do século XX o caráter “pedagógico” do Terrorismo foi cultivado como um elemento central de mobilização popular. Grupos populistas russos – os narodinics – e anarquistas italianos, sérvios e americanos acreditavam claramente na sua eficácia, em oposição ao trabalho “burocrático” dos partidos social-democracia (socialistas/marxistas). Lenin, depois da Revolução Russa de 1905, faz uma distinção clara sobre o Terrorismo antes e depois da Revolução: considera o Terrorismo narodinic um sacrifício inútil, destruidor e romântico, enquanto a mobilização, quanto dirigida contra a autocracia czarista, uma forma de organização e resistência.

Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o Terrorismo assume um papel central como forma de luta para os grupos em busca da descolonização dos territórios sob ocupação metropolitana, em especial nos casos em que as formas negociáveis de “descolonização” falharam. Depois da grande onde descolonizadora de 1945-1974, quando ainda resistiam ocupações metropolitanas, o terrorismo assumiu um papel central na luta anticolonial, constituindo-se numa “nova onda” de terrorismo, muitas vezes com apoio de Estados, sob inspiração anticolonial ( Egito e Tunísia, no caso dos novos países árabes, por exemplo, ou Tanzânia ou  Cuba no caso de Moçambique e Angola ). Também o sequestro de diplomatas e de aviões – até mesmo de grandes navios de luxo – marcaram o período para a denúncia de ditaduras e de torturas, como em países como o Brasil e a Argentina. Com o fim dos últimos impérios coloniais ( Portugal e a negociação de novos status, França e Grã-Bretanha ) e a democratização na América Latina, tais movimentos diminuíram ou mesmo cessaram nestes países.

No entanto, desde 1979, com a ocupação do Afeganistão pelos soviéticos surge uma ampla rede de sustentação do terrorismo mujahidin no Afeganistão,  o que apontará para uma “nova onda” de terrorismo global.

 

Período  a partir de 1993: surge uma nova categoria de terrorismo, oriundo  da reorganização dos diversos movimentos mujjahidin ( os chamados, então, de  “afegãos” ), que desmobilizados da luta contra os russos ( 1979-1989 ) voltam-se para os “cruzados, os pecadores e os sionistas”

 

 

Sem território;

  • Sem população;
  • Sem Infraestrutura econômica;
  • Com armas;
  • Com Inteligência;
  • Com liquidez financeira;

Capaz de declarar guerra

 

Para efeito de comparação poderíamos trazer a atuação das grandes organizações narcotraficantes, em especial na América do Sul, entre os anos de 1980 e 2000:

 

  • Ramificações Internacionais;
  • Imensa liquidez;
  • Contatos com outros setores do crime organizado;
  • Substituição do Estado.

 

 

Na sua atual configuração, a soma da abundância do mercado de armas, a fragilidade das fronteiras territoriais – fronteiras são linhas imaginárias no cyberspace, o que faz na realidade todos os países terem fronteiras comuns  e a possibilidade de constituição de núcleos, “retiros” ou “caches” em “estados arruinados”  – “rogue state”  ou estados párias -, que venham a servir de pontos de abrigado  – chamados de santuários ou cachês – para as organizações terroristas ampliaram imensamente o potencial do terrorismo depois do fim da Guerra Fria em 1989-1991.

Constituíram-se, na base das novas tecnologias, organizações muito diferentes das originarias “ligas de carbonários” do ´século XIX italiano, ou das organizações narodinics/populistas russos ou mesmo dos “lobos solitários” anarquistas do início do século XX e os terroristas anticapitalistas americanos do fim do século XX. As tecnologias informacionais constituíram a possibilidade de uma organização nova, de tipo reticular, ao contrário das organizações anteriores de tipo piramidal. Nas organizações carbonárias ou narodinics/populistas a organização piramidal, altamente hierárquica, que iria se desdobrar na organização marxista/leninista dos partidos de tipo bolchevique e nas organizações terroristas marxistas de Extrema Esquerda, como Rote Arme ou as Brigadas Vermelhas, a destruição, morte ou captura de membros do Comitê Central, poderia desarticular por bom tempo – por vezes de forma definitiva – a organização clandestina.  Nas novas organizações reticulares, horizontais, de forte base informacional, com clara autonomia entre o setor operacional – em alguns casos dispensável, ou mesmo “kamikaze”, o setor financeiro e o estratégico, a capacidade de resistir aos golpes armados do adversário é muito maior e contínuo.

 

ORGANIZAÇÃO DO IRA:

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Conselho do Exército ( 7 membros)

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Executivo ( 12 membros)

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Convenção do Exército Republicano Irlandês

( 200 membros)

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Tal estrutura “piramidal” do IRA tornava praticamente impossível para a organização uma reunião durante o período de maior ação do grupo em face da repressão britânica, tendo seus membros realizados reuniões “plenas” apenas em 1970, 1986 e 1996, embora a “Constituição Republicana” estabelecesse reuniões bianuais.

 

Para uma caracterização completa do que denominamos de Estado (terrorista) em Rede, em sua versão “Terrorista” – posto que outras formas de redes, como o crime organizado,  o narcotráfico também se organizam como um Estado em Rede – podemos destacar os seguintes pontos:

 

  • 1. Trata-se de ume entidade sem território;
  • 2. Igualmente  sem população;
  • 3. Da mesma forma sem Infraestrutura econômica;
  • 4. No entanto, plenamente portador de armas;
  • 5 , plenamente dotado de Inteligência, Humana e Cibernética;
  • 6. Com ampla liquidez financeira;
  • 7. Não se limita a um único teatro de operações;
  • 8. Utiliza-se de “franquias” de várias partes do mundo;
  • 9. Utiliza meios informacionais para divulgar sua “causa”;
  • 10. Alista a maioria dos seus membros através da Internet.
  1. Capaz de declarar guerra e negociar a Paz, bem como manter representações em diversos países “amigos”.

 

Tais caraterísticas tornam, nos nossos dias,  a organização terrorista um temível adversário. Ao mesmo tempo em que “bate” duramente em sociedade dotadas de Estados formais organizados, bastante suscetíveis à opinião pública – e como vemos esse é o “Scwherpunkt” das sociedades organizadas em frente ao terrorismo – a própria organização terrorista não possui, como nos casos de guerras convencionais ou simétricas, os pontos correspondentes para o contra-ataque. A miúde a reação do Estado atingido causa mais mal-estar e mobiliza a população adversária contra a potência atacante, como no caso da França na Guerra da Argélia, entre 1954 e 1962, ou dos Estados Unidos, no Afeganistão, entre 2001 e 2021. Até ao final do conflito do Afeganistão, primeiro com o talibã, depois quando estes passam de “Jamaa´t al Islam” para a condição de “Al Dawla al´Islam”, ou seja de organização islâmica para um Estado Islâmico – no caso um emirado, no início de setembro de 2021 – as ações retaliadoras norte-americana, então contra o Daesh/ISIS – em virtude do mega atentado terrorista/suicida do Daesh no aeroporto de Cabul de 26/08/2021,  atingiu famílias de civis, causando grande dano e mal-estar, para os próprios Estados Unidos.

A mobilidade-reticularidade do Estado em Rede, como o Daesh no caso, mas também, a Al Qaeda, a Frente al Nusra, e outras “al jama´at” originam uma imensa dificuldade para aplicação de golpes sucedâneas a uma “batalha definitiva” de tipo clausewitiziano.

A questão do financiamento e do abastecimento, em armas, homens e logística, dos movimentos/entidades terroristas, geraram novos conflitos, por vezes internacionalizando um conflito doméstico. Dois casos são clássicos: Argélia e Vietnã.

No Caso do Vietnã, quando os Estados Unidos ao tentarem cerrar o   abastecimento da Frente de Libertação Nacional/FLN (1955-1975) acabaram se envolvendo num guerra “encoberta” no Laos e Camboja em 1970. No caso da Argélia, tornou-se um símbolo da ação terrorista no contexto de um conflito maior, de uma Guerra de Libertação Nacional (1954-1962).

A Batalha de Argel, entre 1956 e1957, entre a FLN argelina, sob a forma de “Reseau de Bombes”,  e as Forças Armadas francesas – paraquedistas e polícia – foi um ponto de radicalização do enfrentamento de nacionalistas e colonistas, pondo fim a toda negociação política ao destino da antiga Argélia francesa.  A França coloca em prática uma política oficial de “contra-revolução”, criada e defendida pelo Coronel Charles Lacheroy, que terá, mais tarde, nos anos de 1960/1970, forte impacto nas ditaduras latino-americanas. A repressão francesa institui o sequestro, a tortura e o desaparecimento dos nacionalistas como política de Estado na Argélia. A FLN é destruída em Argel, constituindo-se em uma ampla vitória militar francesa.       O             « Reseau de Bombes” produz  314 mortes e 917 feridos em 751 atentados durante o auge da Batalha.

O manual antiterrorista do comandante francês Roger Trinquier, que rapidamente alcança fama mundial como teórico da guerra contrarrevolucionária e subversiva, servirá de base – malgrado as críticas do defensores dos Direitos Civis – para a contra Insurgência na América Latina e Sudeste Asiático.  Assim, no âmbito de uma  “Guerra Moderna” no Ocidente, conforme o texto de 1961, vários cursos de Estado-Maior nos Estados Unidos adotarão tal versão, desenvolvida na Argélia  – para lidar com o terrorismo – , a noção de “contra insurgência” passará a ter pleno nas guerras do Iraque e do Afeganistão .

No entanto, historicamente, a ação terrorista na Batalha de Argel tornará a presença francesa no país impossível e a Argélia será independente em 1962. A aparente vitória militar do ocupante colonial francês não se traduziria numa vitória política, como no caso da Ofensiva do Tet, no Vietnã,  em 1968, ou recentemente na impossível permanência dos Estados Unidos no Afeganistão.

A outra forma de lidar com a questão é o uso da Inteligência financeira e a busca das fontes de financiamento das organizações terroristas – no caso específico de grupos “domésticos” ou instalados “indoor”, apresenta uma outra série de dificuldades, como poderemos ver no caso do IRA e Daesh/ISIS.

Desde que a crise étnico/confessional se agravou na Irlanda/Ulster, em 1969, o IRA ( Exército Republicano Irlandês ou Óglaigh na hÉireann) iniciou um processo de reação armada contra a violência policial protestante e das guardas monarquistas. Tais ações contaram com forte simpatia e apoio da população irlandesa dos Estados Unidos, algo em torno de 11,2% do total da população americana, ou seja, 34.5 milhões de americanos ( enquanto da Irlanda possui apenas cerca de 5 milhões de habitantes). O controle do fluxo de recursos e pessoas era praticamente impossível e o livre comercio de armas nos Estados Unidos – com a participação da Líbia – manteve o IRA permanentemente atuante[1]. Além disso, recorreram aos assaltos a

bancos e trens pagadores, além de uma ampla rede empresas de fachada para organizar as finanças da organização.

No caso do Daesh, o apoio de petromonarquia do Golfo Pérsico, que assim compram sua própria segurança, a venda de antiguidades – só aparentemente destruídas pelo Daesh – e a venda de petróleo roubado dos poços sírios e iraquianos, e contrabandeado pela Turquia – membro da OTAN! -, além da renda gerada por sequestros e extorsões, mantém o Daesh plenamente ativo.

A multiplicidade de formas de financiamento, ao contrária de organizações anteriores a Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria, muito dependentes de uma potência estrangeira – como a “Mão Negra” na Sérvia, ou as organizações pan-eslavistas no Entreguerras, 1919-1939, as organizações pós-Guerra Fria, utilizando-se de formas variadas de finanças, desde o narcotráfico – Califado Islâmico, com o ópio ou as FARC com a cocaína, até a venda de antiguidades e de petróleo como o Daesh, se autonomizam em relação às Grandes Potências e não ficam na dependência da “realpolitik” ou do jogo de poder sempre em movimento das relações internacionais.

Essa “liberdade estratégica” do terrorismo atual permite que tais organizações desempenhem, de fato, um papel central nas relações internacionais e acabem tendo suas reivindicações sendo reconhecidas e obrigando as grandes potências a negociações.

Para o terrorista não há um alvo estratégico único ou central a ser destruído, desmobilizando o inimigo e obrigando-o a negociar em posição de desvantagem – esta é a estratégia da guerra clássica, e nem mesmo aplicada na guerra atômica global e outras formas híbridas da guerra contemporânea. Trata-se, bem mais, no caso do terrorismo de massas contemporâneo, de romper o “consenso da opinião pública adversária” e atingir assim o centro de gravidade do inimigo: a coesão entre a população e o governo, o consenso necessário para a manutenção da luta, a confiança e a credibilidade das forças da ordem e, com isso, do próprio Estado. Desta forma, salta aos olhos as diferenças cabais, por exemplo, entre o ataque japonês às bases norte-americanas em Pearl Harbour, em 7 de dezembro de 1941, e os ataques às Torres Gêmeas, ao Pentágono e possivelmente à Casa Branca ou o Capitólio, em 11 de setembro de 2001;  aos restaurantes e discotecas de Paris em 13 de novembro de 2015. No primeiro caso, havia um claro estudo, pesquisa e conclusão do Estado Maior Nipônico que um forte ataque destruindo a maior parte da força naval norte-americana no Oceano Pacífico, embora não destruísse o poder americano, levaria o país a negociar com o Império Japonês em condições de inferioridade e, talvez, pedir uma acordo de paz. Há uma racionalidade e planejamento que reconhecem na frota e nas bases do Havaí como o centro de gravidade dos Estados Unidos numa região vital ao Japão – o Pacífico. Mesmo que o golpe possa ter falhado, como aliás altos oficiais japoneses admitiram desde logo, havia um planejamento visando levar o adversário às negociações em condições de inferioridade. No caso dos ataques de Nova York e Paris (como Madrid, Londres, Otawa etc.) trata-se, ao contrário, de esgotar a força e a vontade de lutar da população, lançando-as em uma vaga de isolacionismo e lassidão, retrocedendo sobre si mesma e optando por governos isolacionista.

 

Ou seja, a vontade de lutar numa terra distante, contra uma cultura estranha, que, entretanto, é capaz o suficiente para atingi-los no centro de suas cidades, como Paris, em subúrbios e pequenas cidades da Califórnia, nas ruas de Copenhagen e Istambul ou no Parlamento canadense cria confusão e instabilidade interna. Tal flexibilidade e capacidade de “desdobramento de força” impõe uma exigência política de união, maiores gastos e limitação de direitos ao adversário, que pode, e tem, influindo diretamente nas eleições, como nos Estados Unidos e na Europa. Uma campanha sistemática e continuada de terror poderia levar tais democracias, impulsionadas por uma população amedrontada e exausta de uma guerra “falsa” – “le drolê de guerre”, mas com vítimas civis em condições de grande exposição como na Estados Unidos, Espanha e França – a uma reação isolacionista, abandonando ao seu destino áreas consideradas “selvagens” e periféricas[2].

Entendemos, desta forma, que o terrorismo, com sua multiplicidade de alvos e diversidade de locais de ataque, não é um fenômeno irracional, “doentio” ou uma forma particular de culto ao “Princípio de Morte” – embora este esteja presente, explicações apresentadas sob o impacto e a emoção do horror terrorista após cada atentado. Para além de todas as possíveis explicações psicologizantes – com validade, sem dúvida para explicar a adesão/alistamento/radicalização de indivíduos a uma entidade terrorista e, chegando ao limite da ação kamikaze (o martírio em nome do Profeta, da pátria ocupada, do futuro melhor etc.) – não nos serve, contudo, como explicação para a ampla campanha de terror praticada, sua multiplicidade e simultaneidade de alvos em uma longa duração.

 

O terror é, acima de tudo, oportunista, no sentido bélico que Sun Tzu daria ao fenômeno. Um recurso fundamental é aproveitar-se da possível cobertura mediática já previamente estabelecida no local escolhido para o evento – jogos internacionais, festas, áreas turísticas – ou mesmo a garantia da presença de alguns poucos turistas e seus múltiplos equipamentos de som e imagem, já são suficientes para garantir a difusão, em escala global, do caráter “espetacular” do ato terrorista.  E escolher um ponto “mole”, roto, não encouraçado, na muralha de defesa do adversário para bater, com o menor dispêndio possível e auferindo o maior impacto desejado. Na maioria das vezes são atentados duplos ou mesmo múltiplos, para que se possa garantir sua filmagem “au chaud”, sem risco de perda do momento, e essencialmente, porque policiais, paramédicos, médicos, guardas civis e mesmo civis se amontoam para os primeiros socorros, potencializando o segundo ataque. Outras vezes são ataques múltiplos, esparsos, mas simultâneos no tempo, tornando as forças da ordem, em plena ação, desamparadas, como verdadeiro alvo.

Da mesma forma, as vagas de migrantes (1 milhão de refugiados na Europa em 2015,   mais de cem mil  2016 e maré de 1.300 mil sírios que Angela Merkel aceitou em 2017, mesmo  com a reprodução crescente de cenas dolorosas de “boat people” abandonado no Mar Mediterraneo) que chegam à Europa decorrente das lutas na África do Magreb e do Sahel e da crise no Oriente Médio e da destruição do “Regime dique” de Muamar Kadhafi na Líbia,  satura as condições humanitárias e econômicos europeias e fortalece os partidos de Extrema-Direita e todas as formas de desconfiança frente ao “estrangeiro”. A xenofobia, sob a forma de uma cruel “Islamfobia” cresce em todo o eleitorado europeu, dando esperanças aos neofascismos na França, Áustria, Alemanha ou, mesmo tendo alimentado uma boa parcela dos argumentos pro-“Brexit”, em 2017. Tal processo, ainda em curso, já aponta suas consequências com a formação de um novo eixo de poder no Indo-Pacífico entre EUA+Austrália+Reino Unido que resultará na chamada “Otan do Pacífica”, a AUKUS, ainda em setembro de 2021, causando um forte desequilíbrio nos pactos de segurança na Europa, em detrimento da França, e no Indo-Pacífico visando o “cerco” da China Popular.

migração massiva, em uma época de crise de econômica, marasmo e desemprego, surge como uma ameaça ao cidadão médio.  Além disso, a presença de jihadistas ou da “radicalização” de alguns emigrados, potencializa a desconfiança em relação ao “outro” próximo – muitas vezes dotado da mesma nacionalidade já por duas gerações -, mas diferente na cor, no cabelo, na religião. Tal medo acentua a rejeição popular massiva do “outro” e impulsiona o ímpeto de construir, frente à invasão “bárbara”, a mítica “Fortaleza Europa”.

Os atentados terroristas de Nova York 2001 e Paris 2015 assemelham-se mais à lógica contida na “Ofensiva do Tet” vietnamita em 30 de janeiro de 1968 (incluindo seu caráter kamikaze), durante a Guerra do Vietnã, do que a racionalidade e engenhosidade japonesa de 1941: buscavam a derrota política do adversário e não uma vitória militar decisiva, uma batalha que desse ao vencedor condições de negociação em superioridade. Para o terrorismo não há uma batalha decisiva, somente uma rotina desgastante e cruel de ações contínuas para o esgotamento do adversário, para fazê-lo desistir. Neste caso um cenário comparativo, mais próximo, é tipicamente derivado da Guerra de Libertação da Argélia, onde a FLN não possuía meios reais de impingir uma derrota às forças francesas, porém causava um desgaste, inclusive internacional, à própria França. Mas, onde o terrorismo (e contraterrorismo de Estado) tornar-se-iam uma ferramenta constante na guerra, resultando numa profunda divisão da sociedade. A mesma situação repetir-se-ia na Irlanda do Norte com o IRA. Nestes casos, nem mesmo o sucesso do ato terrorista é fundamental. Somente sua tentativa terrorista, com a interrupção do fluxo normal da vida cotidiana, os avisos quase diários de possibilidade bombas e tropas desdobradas, já são condições desmoralizantes para o adversário estatal. Além, é claro, do custo financeiro das medidas de segurança. Contudo, e isso é capital, em ambos os casos – o terror e a guerra -, há um planejamento, racional e sistêmico.  Buscam-se resultados políticos que caracterizaram o “ir além da política tradicional” ou “fazer a política por outros meios”, conforme ensina Clausewitz[3]. Mas, diferentemente da FLN argelina ou do IRA na Irlanda do Norte, os atos terroristas no caso  do Daesh não desembocam numa possibilidade de retomada do trinômio clausewitziano: política+guerra=negociações (em superioridade), ou seja, a retomada da política. A pauta do Daesh, a criação de uma vasta entidade estatal de caráter fundamentalista sobre o território de Estados-Nação pré-existentes (Síria, Iraque, Líbano, Líbia) ou em fase de gestação (um possível Curdistão), além da libertação de “Lugares Santos” em vários outros estados impede, de fato, a negociação. O ataque ao aeroporto de Cabul, em 20121, logo após a vitória do Talibã explicita isso: americanos e talibãs são alvos iguais para esta organização.

Da mesma forma, a estratégia do Daesh difere largamente do modus operandi da Al-Qaeda. Enquanto a Al-Qaeda busca atos espetaculares de largo impacto – o que o Daesh também faz -, com longo planejamento e meios financeiros custosos, o Daesh não desdenha, muito ao contrário, os pequenos ataques, com uma ou duas vítimas. A degola de um padre na França, o esfaqueamento de um policial em Londres, o ataque a um museu ou uma sinagoga, são alvos legítimos e incentivados pelo Daesh. Assim, em especial na Europa, corre-se o risco de transformar  num processo de “israelização” da vida cotidiana, com uma securitização duvidosa das instituições e dos espaços públicos.

O Daesh não luta para vencer os seus adversários e negociar uma paz em melhores condições. Sua luta é pelo extermínio do adversário.  Neste sentido começamos a distinguir entre “segurança” e “securitização”. Não há como garantir em grandes espaços abertos a segurança de todas as pessoas. Por exemplo, em metros, parques de diversão, áreas de embarque antes do check-in, rodoviárias, universidades etc. Tais áreas são no máximo “securitizadas” com a presença de guardas de segurança e o treinamento de funcionários e avisos sobre “pacotes”, lixeiras e estranhos. Enquanto isso, serão “seguros” locais que passem por revistas e tenham detectores de metais e revistas, como embarques de aeronaves, áreas restritas de parlamentos, aeroportos etc. Assim, implantar, por exemplo, detector de metais ou revistas em metro ou supermercados é impraticável, seja pelo fluxo de pessoas, seja pelo custo. Assim, teremos de aceitar que são áreas “securitizados”, ao máximo, porém não são áreas completamente seguras.

Desta forma, a segurança deve ser feita de forma prévia, via Inteligência, de forma a não permitir a organização do grupo terrorista, evitando a necessidade da ação “just in time”.

 

A questão do “Lobo solitário”:

Os “Lobos Solitários” não fazem o juramento, não aceitam comandos ou reconhecem uma autoridade e tomam iniciativas sem nenhum incentivo externo necessário. Não estão perdidos em busca de um “lugar”, bem ao contrário, acreditam fortemente que sabem seu “lugar” na sociedade que, no mais das vezes, combatem.  São “lobos solitários” clássicos o terrorista Theodor Kaczynski (1942), um gênio matemático, formado na Universidade de Harvard e denominado de “Unabomber”, que agiu nos anos de 1990. Ou o responsável pelas cartas com antraz logo após o 11 de setembro de 2001 pelo também cientista Edward Bruce Ivins ou, mais próximo de nós, aparenta ser o caso do jovem Wellington Menezes de Oliveira, na Escola Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, em 2011, responsável pela morte de doze adolescentes.

Contudo, os casos clássicos de “Lobos Solitários” são de Timothy McVeigh (1968-2001), que explodiu o prédio da administração federal de Oklahoma, em 1995 (168 mortes, incluindo dezenas de crianças de uma creche), simpatizante de uma organização neonazista norte-americana, e Anders Breivik (nascido em 1975), que matou 77 pessoas, em 2011, na Noruega. Breivik também é um neonazista e afirmou, incluindo saudações hitleristas no tribunal quando de seu julgamento, que lutava por uma Europa branca e contra a islamização do continente. Por sinal o tiroteio organizado por David S., um adolescente de origem teuto-iraniana, num MacDonald de um centro comercial de Munique, em 22 de julho de 2016, se deu exatamente no dia do aniversário do ataque de Breivik, de quem ele colecionava material de jornal e livros. Assim, tanto McVeigh, Breivik e o adolescente David S. agiram sozinhos, com uma clara premeditação, sigilo e cuidados, enquanto Omar, Bouhlel e o jovem Ryiad, entre outros, fizeram questão de se dizer “combatentes” do Daesh, prestaram o juramento e atenderam ao mandamento: “…façam o que for o melhor! ” No caso de Kaczynski e Ivins é interessante notar que eram militâncias individuais, anti-civilização de consumo e antiguerra, sem manter quaisquer tipos de ligações, organizações ou discípulos – sempre contrários a qualquer forma de “sistema” -, enquanto McVeigh, Breivik e o jovem David S. pertencem a ala de extrema-direita da topológica política moderna. Estes são os “lobos solitários”. Compõe uma cena de atos “desconectados”, sem um incentivo externo, comando ou promessa de redenção. Da mesma forma, nenhum deles se apresenta como mártir dispostos a morrer: McVeigh empreendeu uma longa fuga, que fora previamente planejada; Breivik organizou também um recuo após ataque e sabia claramente que não haveria pena de morte e o jovem David S. remete a uma situação de “mass killer” diferenciada, de tipo repetitivo nas escolas americanas e se aproximaria da situação do jovem Wellington, da Escola Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro.

A “mouvance” terrorista global do Daesh comporta também uma situação específica. Trata-se da situação de “latência” – como o foram os Irmãos Tsarnaev, em Boston em 2013- , são como as “células adormecidas” como em San Bernadino e cada vez mais se encaixa no perfil de Bouhlel  – já estão no local de ação ou em suas proximidades –  esperam um comando ou uma ordem direta, que vem através do sítio eletrônico do ISIS, em especial a AMAQNews ou mesmo através de contatos diretos, via viagens aos seus países ancestrais (Arábia, Marrocos, Chechênia por exemplo) ou mesmo via a peregrinação do Hajj. Não são escolhidos, acolhem o chamado do Daesh “ bateremos no coração das cidades dos cruzados” e buscam agir da “melhor forma possível”. Ao contrário do que afirma a polícia e demais autoridades, e a imprensa repete apoiada pela contrainformação de familiares, não se trata de uma rápida e inesperada “radicalização”, quase um ato de loucura. Percebemos, com as novas investigações que apontam para sinais, indícios ou sintomas que veem se desenvolvendo desde longo tempo. Mais uma vez, Bouhlel, os irmãos Kuachi, Coulibaly, os Tsarnaev e Omar Seddiqq, bem como os “primos” e amigos em torno de Adel Kermiche – o degolador da Normandia – planejaram, se conectaram, receberam o aceite como “combatentes” e se puseram em marcha.

Os inquéritos em curso na França sobre o assassinato do Padre Jacques Hamel, na sua Igreja na Normandia, por Adel Kermiche e um cumplice dão um exemplo bastante bom da inadequação da denominação de “lobo solitário”. Não só o jovem Adel Kermiche havia feito ao menos duas viagens para a Síria, onde entrou em contato com o Daesh, como ainda recebeu apoio e fez contatos em vários pontos da França e no exterior, na Áustria mais especificamente, explicitando uma rede bastante ampla de planejamento. Assim, o ataque “solitário” de Kermiche se mostra, cada vez mais, um dos casos de “faça o que puder e da melhor forma ao seu alcance”, dentro da estratégia de atos isolados, cruéis e constantes visando espalhar o medo, a discórdia e ódio na “Zona Cinza” da sociedade francesa. Havia ali uma estratégia, nada que aponto para um ato solitário ou um surto momentâneo de loucura[4].

Nada aponta para um repentino rompimento das regras sociais, um lapso momentâneo da razão ou uma síndrome dissociativa. Devemos lembrar ainda, que o continuo a agir violento prévio de tais perpetradores, pode estar, também, associado ao uso de drogas, cada vez mais comum nos combatentes do “califado islâmico”.

Nestes casos há uma conexão e esse conexão está diretamente vinculados aos episódios maiores da “guerra convencional” na frente de operações, como no caso a luta contra os Daesh e engloba uma estratégia global de guerra do Daesh.

E naquela semana dos ataques em Paris, com o Daesh sendo batido em Alepo, Raqqah e Mossul, deu-se a chamada para o ataque aos Estados Unidos e seus aliados.  Na semana da matança em Orlando o acompanhamento no AMAQ News avisava:  “. Ações nos Estados Unidos e seus aliados”, como uma senha. O Daesh não define, assim, alvos ou dia/local, apenas diz “façam” o que está ao alcance de vocês e confiem em Allah. Muito possivelmente não precisa de contato ou pertença direta, basta o “juramento” de submissão. Embora tenhamos que registrar que o odiador de Orlando fez o “Hajj” à Meca e ficado lá algum tempo, o que pode muito bem ter sido o tempo para os contatos. Mas, verdadeiramente não é preciso, a Internet, através dos sítios mantidos pelo Daesh, cuida disso[5].

Temos que reconhecer, desta forma, que o “Califado islâmico” recobre dois espaços simultâneos, agindo de forma global em ambas: de um lado, a passagem da condição de uma “organização islâmica” (“al-Jama´at”) para um Estado de tipo westfaliano (“al-Dawla”), territorial e dotado de meios modernos – sendo hoje batido fortemente pela coalização ocidental e pela frente russo-xiita. Por outro lado, o Daesh se expande em todo o mundo como uma rede global, controlada de forma frouxa, com uma grande variedade de fluxos materiais e imateriais. No primeiro caso, o experimento do Califado como Estado westfaliano, pode ser destruído pelas forças coligadas antiterroristas – o que ainda não aconteceu…  Contudo, a rede terrorista global não precisa, de forma alguma, de uma base territorial para agir e continuar sua luta terrorista.

Vemos, desta forma, uma ampla rede, frouxa, fragmentada, mas diretamente conectada a um forte sistema de comunicações do Daesh – com cerca de mil homens empregados, com recursos financeiros bastante adequados – utilizando-se de equipamento de ponto e de meios eletrônicos eficientes e com uma linguagem audiovisual muito próxima dos vídeos-games (de fácil conexão com os jovens adolescentes) suportando toda uma rede de predicadores, alistadores, suporte (“pessoal de escritório”), finanças, apoio e observação “militar” até os terroristas suicidas.

Em suma, o terrorismo do Daesh é uma rede de novo tipo, capilar, não hierárquica e não linear para a qual os serviços de inteligência do Ocidente ainda não dispõem de uma resposta eficaz.

O perfil do “odiador” de Orlando era racista, misógino, falocrata e agressivo conforme emerge de depoimentos e entrevistas realizados pelo FBI e, como vemos nas muitas fotos (“selfies”) apreendidas, profundamente narcisista, o que nos diz muito da dificuldade de falar com “outro” (e, ao mesmo tempo, emula muito a “firmeza”, “Mateen”, e vaidade exposta no calor da hora pelo pai e sua capacidade de exercitar a “taqiya”). Este, talvez, seja uma traço central entre todos estes perpetradores: a incapacidade de investimento afetivo no outro, com um forte déficit de relacionamentos. A personalidade narcísica de Omar Mateen ou Bouhlel, suas relações múltiplas e falhadas, se expressa claramente na “necessidade”, verdadeira hiância – este espaço vazio entre dois parênteses exigindo seu preenchimento – que retorna sob a forma de culpabilização do outro, do diferente – infiel, hipócrita, apóstata, gay, “cruzado” ou “sionista” – por seu próprio fracasso.

No caso de Omar, havia, no seu passado recente, como vimos, relacionamentos e “amizades” com “drag queens” e gays, incluindo a ida a espetáculos em locais LBGT e saídas para beber (álcool, um muçulmano praticante!), na própria boate “Pulse”. Depois que começa a frequentar a Mesquita de Port. Saint-Lucie, e muda o nome emulando o pai, em 2006 (ele se torna “forte”, “firme”, ou “Mateen”, como o pai) passa a odiar a cena gay de forma explicita, embora não cessem as visitas noturnas a “Pulse”, evidenciando os diversos níveis que compõe a “personalidade autoritária”, como apresentada por Adorno. E na sua capacidade de conter, revelar, negar, inclusive a si mesmo, o que cada um pode ou não aceitar, pensar e sentir abrindo um vasto leque de reações “potenciais”, já residentes na consciência de um indivíduo ou, nas palavras de Adorno “… precisamos reconhecer que o indivíduo pode ter pensamentos “secretos”, que ele não revelará a ninguém, em nenhuma circunstância, se puder evitar. Ele pode ter ideias que não admite nem para si mesmo “. A explicitação de seu horror homofóbico extremado – o beijo gay “público” – emerge como uma forma de perdão e de remissão de seu passado “takfir”. Muito possivelmente, este arrependimento se dá através de uma confissão-conversão feita à esposa, muçulmana praticante, que chega a acompanhá-lo numa visita à boate “Pulse” (e na compra de armas e munições que serão utilizadas na ação terrorista). E nesse processo o pai desempenha um papel central, em face da primeira esposa (que  enfrenta e denúncia ao pai) e ao próprio pai, muito possivelmente identificado pela primeira esposa como fonte dos distúrbios de Omar, ela mesmo vítima de agressões contínuas. Já a segunda esposa, aliada ao pai, emerge como complementação da vontade do pai em trazê-lo de volta ao mundo de Deus. O perfil bate diretamente com os atacantes do “Charlie Hebdo”, de Paris e de Bruxelas: ódio, pequenos delitos, álcool (e drogas), uma “vida oculta” em pecado (lembremos o caráter dos sítios de pedofilia dos Irmãos Kuachi) e, então, são atraídos para um centro islâmico para a “cura”, a “(re)conversão”.

Pelo menos um psicólogo, mas arguto e dedicado, pode fazer uma ligação muito firme sobre o papel da família como uma espécie de “agente recrutador”, ou ao menos um membro próximo – primo, cunhado, sogro e, claro, um pai – que faz a “(re)-conversão” do indivíduo “perdido”. Nem sempre se trata de uma conversão para o ato terrorista, mas um retorno ao âmbito da “mouvance” islâmica que acabará redundando no ato terrorista, dadas as condições de fragmentação/imaturidade narcísica do eu do indivíduo. Voltamos aqui aos diversos níveis “potenciais” de consciência, do grau de maturidade e de capacidade de formular opções razoáveis a um estado crítica, ou como afirma Adorno “… é a prontidão para conduta antes que a própria conduta”.

O terrorismo nas primeiras décadas do século XXI continua como uma arma, e uma forma de guerra, fundamental para se alcançar “fins políticos por outros meios”.  A sua “geografia” não é necessariamente “colada” a geopolítica de suas origens, na mesma razão de que o terrorismo, como afirmamos, precisa de “público”.  Cerca de  75% de todos os “ataques terroristas” registrados no mundo nas duas primeiras décadas do século XXI, se concentraram em dez países: Iraque, Afeganistão, Índia, Paquistão, Filipinas, Somália, Turquia, Nigéria, Iêmen e Síria. No entanto, países tão distantes como a Noruega, Alemanha e Bélgico podem vir a serem palcos de eventos terroristas em função do auditório buscado e baixa frequência, e mesmo do abandono, de tais países concentradores dos eventos terroristas pela mídia global.

Neste sentido, a convivência com os atos de terror parecemo-nos que será ainda uma constante.

 

Bibliografia:

CLAUSEWITZ, Karl von. A Arte da Guerra, Lisboa, Martins Fontes, 1999.

ADORNO, Theodor.    The authoritarian personality. Nova York, Harper and  Row        Frenkel-Brunswik, E., Levinson, D. J., & Sanford, R. N., 1950.

AMAQ News. Jihadists Disseminate Instructions for Starting Grassroots Operations around the World, consultado em 8 de junho de 2016.

EL PAÍS. La Guerra Opaca de Estados Unidos em Síria: 300 soldados de elite com Raqa como objetivo. In:http://internacional.elpais.com/internacional/2016/08/20/estados_unidos/1471718305_611728.html, 23/08/2016, consultado no mesmo dia.

GIRARD, René. Rematar Clausewitz além `Da Guerra`. São Paulo, Editora Realizações, 2007.

LAQUEUR, Walter. The Terrorism Reader: A Historical Anthology, editor, Philadelphia: Temple University Press, 1978.

LE FIGARO. Adel Kermiche, un ado perturbé devenu terroriste. In: http://www.lefigaro.fr/actualite-france/2016/07/27/01016- 20160727ARTFIG00342-adel-kerniche-ado-perturbe-devenu-terroriste.php27/07/2016, consultado no mesmo dia.

LE MONDE. Sommes-nous en guerre? 16 de novembro de 2015, http://www.liberation.fr/debats/2015/11/16/sommes-nous-en-guerre_1413889, consultado em 10 de dezembro de 2015.

ROSENTHAL, Franz. “Dawla”. The Encyclopedia of Islam, New Edition, Volume II: C–G. Leiden and New York, 1991.

SARTRE, Jean-Paul. « Comment faire face au terrorisme », entretien avec Gilles Martinet, France-Observateur, no contexto da Guerra da Argélia  ( 1954-1962),  18 mai de 1961.

The Khoran. Oxford, University Press, tradução do árabe por Arthur J. Arberry. 1998.

[1]  Grupo de Informação de Jane estimou que o armamento desativado em setembro de 2005 incluiu: Um AG-3, variante norueguês do Heckler & Koch G3 . Mais de 50 deles, de um lote de 100 roubados do Exército norueguês , acabaram no IRA. [209]RPG-7 , obtido pela primeira vez pelo IRA da Líbia em 1972 [210]

 

[2] Neste sentido assume grande importância o debate, aparentemente acadêmico, entre especialistas e políticos sobre a formula “Guerra ao Terror”, como inaugurada por George Bush depois do 11 de Setembro de 2001, e retomada, em 2015, pelos presidentes François Hollande, Vladimir Putin e mesmo Xi Xiping,  Nesse contexto, as posições de muitos juristas e, mesmo, humanistas de que não se pode declarar guerra a um “não-Estado” ficam presas ou a um formalismo juridicista já ultrapassado – o Japão em várias ocasiões atacou sem uma declaração de guerra, a Alemanha nazista igualmente e na Guerra do Vietnã nunca houve uma declaração formal de guerra entre as partes; outros autores acompanhando, um pacifismo no limite irresponsável, insiste num diálogo civilizacional, com quem não considera o “outro” uma civilização.. Assim, as posições de especialistas como Alain GARRIGOU, da Université Paris I, considerando a guerra uma fórmula jurídica ou de Giles Dorronsoro, do CNRS, que nos fala de uma “drole de guerre”, perdem a percepção dos novos contextos mundiais, do papel da mídia e do terror numa “sociedade do espetáculo”.  Bertrand BADIÉ, da Faculté de Sciences Politiques, armado de um vasto arsenal da Teoria Política clássica, portanto de viés etnocêntrico – desconhecendo os novos debates sobre a variedade e a polissemia que envolve o termo “guerra” –  recusa a noção de uma “declaração” de guerra ao Daesh. Por outro lado, o conhecido filosofo Étienne BALIBAR não recua diante deste passo decisivo: mesmo não aceitando a tese de “clash of civilization”, Balibar fala de um “proto-Estado” que de fato declara a guerra e caso não seja batido tornar-se-á um Estado de direito pleno, com o qual os adversários serão obrigados a negociar diplomaticamente em condições cada vez mais dificies. Ver: LE MONDE. Sommes-nous en guerre? 16 de novembro de 2015, http://www.liberation.fr/debats/2015/11/16/sommes-nous-en-guerre_1413889, consultado em 10 de dezembro de 2015.

[3] Clausewitz et la guerre populaire. Bruxelas, Aden, 2004, p.54 e ss e ver ainda: GIRARD, René. Rematar Clausewitz além `Da Guerra`. São Paulo, Editora Realizações, 2007.

[4] LE FIGARO. Adel Kermiche, un ado perturbé devenu terroriste. In: http://www.lefigaro.fr/actualite-france/2016/07/27/01016-20160727ARTFIG00342-adel-kerniche-ado-perturbe-devenu-terroriste.php27/07/2016, consultado no mesmo dia.

[5] Ver: AMAQ News. Jihadists Disseminate Instructions for Starting Grassroots Operations around the World, consultado em 8 de junho de 2016.

ENSINANDO A ODIAR: os planos de aula da SS sobre o judaísmo (Alemanha, 1937)

1.               Introdução: notícia historiográfica e arquivística.

Esse breve artigo  é uma análise de um dos muitos planos de aula produzidos pelo SD-Hauptamt da SS ( Serviço de Segurança/ Escritório Central das SS) entre 1933 e 1939 visando à formação dos quadros das SS, através de um programa especifico de  “Formação da Polícia” (“Polizeischulung”), bem como  “esclarecer” a população – em especial os que chamaríamos de “multiplicadores” tais como professores, empresários, funcionários públicos, etc…  As  “Conferências de Formação” ( “Schulungsvorträge”) deveriam apresentar as  razões dos expurgos e prisões massivas de judeus depois da tomada do poder de 1933, bem como a sua exclusão da vida pública, incluindo o comércio, serviços profissionais, o funcionalismo e as atividades culturais – da Alemanha. O texto é de 1937, portanto, anterior a 9 de novembro de 1938, a chamada “Kristallnacht, a “Noite dos Cristais”, quando cerca de 7500 lojas e estabelecimentos judeus foram destruídos,  bem como 267 sinagogas, incluindo suas escolas e bibliotecas,  saqueadas e incendiadas”. Nesta noite 91 judeus foram mortos e cerca de 30 mil presos e levados para campos de concentração, além de ser imposta uma odiosa multa coletiva aos judeus de um bilhão de marcos “por depredação, tumulto e desordem pública” [1]. Assim, no momento em que o documento em pauta foi escrito e começa a ser utilizado, ainda não tínhamos chegado aos ataques massivos, abertos e sistemáticos aos judeus.  A famigerada “Wanseekonferenz”, a Conferência de Wansee, onde as linhas centrais do extermínio judeu são estabelecidos, se dá em 20 de janeiro de 1942 (e retomada em 6 de março e 27 de outubro de 1942, desta feita já no escritório de Adolf Eichmann, o “Referat IV B4, da Gestapo na Kufurstenstrasse   115/116, no Centro de Berlim”.). Em Wannsee, parque e área verde nas imediações de Berlim, na antiga Vila Marlier, transformada em hospedaria do comando da “Sicherheitspolizei”, onde seriam traçadas as linhas básicas da “Solução Final” da chamada “Judenfrage”, a “Questão Judaica” no “Reich alemão”, os quadros superiores do SD  organizaram o Holocausto[2].

Entre 1933 e 1938, e o documento ora em pauta é datado de 6 de fevereiro de 1937, escrito em Berlim na sede do SD – ou seja, pouco antes da “Kristallnacht”, já ocorriam frequentes ataques e abusos contra a população judaica da Alemanha. Neste momento,  mesmo que ainda não se tivessem estabelecidas as linhas centrais do extermínio judaico, o clima de terror já era claro – momentaneamente “apaziguado” pela realização das Olimpíadas de 1936 em Berlim. Sem dúvida as violências, a perseguição, a humilhação, a exclusão e  assassinatos de judeus já estavam em curso – até mesmo antes de 1933, por parte das tropas SA. Mas, ainda não se tinham as diretrizes, como nos diz Christopher Browning, que levariam a Auschwitz e seus campos similares espalhados por toda Europa conquistada pelo Terceiro Reich. Já com a ocupação da Polônia, em 1939, os judeus começaram a ser eliminados em seguidos eventos de fuzilamento em massa.  Foi, contudo, logo após a invasão da União Soviética pelos alemães, em 18 de dezembro de 1940, que as perseguições constantes transformar-se-iam no extermínio sistemático de judeus, o Holocausto. O ano de 1941, imediatamente anterior à realização da “Conferência de Wannsee”, é marcado pela decisão de Hitler pelo extermínio dos judeus e as diversas decisões e medidas administrativas que levariam ao Holocausto. Nos territórios do ocupados na Europa Oriental – na Polônia iniciar-se-iam os programas de deportação e extermínio já em 1941 -, o começo dos assassinatos brutais pelas “Einsatztruppen”, companhias das SS especializadas no extermínio em massa população hebraica começam a assumir um desenho coletivo, massivo e sistêmico. Também as Waffen SS tomaram a inciativa, incialmente, na Polônia,  de eliminação das lideranças culturais e de seus judeus, e, com a invasão da URSS, a por em prática um programa organizado  de exterminar judeus, ciganos e funcionários comunistas da União Soviética. Tais medidas foram premeditadas, organizadas, em especial através do chamado “Kommissarbehfel” (“Decreto dos Comissários”), de 6 de junho de 1941, assinado por Hitler, autorizando a execução sumária de “comissários comunistas” e outros “resistentes” sem julgamento prévio, dispensando o aprisionamento e ordenando a execução imediata dos mesmos[3].

Em Belzec, em novembro de 1941, já estavam acontecendo vagas de extermínio com uso de gás, ora em furgões, ora em salas construídas especialmente para assassinatos coletivos, e em Kulmhof, em dezembro de 1941, já estavam em funcionamento os furgões de extermínio a gás[4].

De qualquer forma, em 12 de dezembro de 1941, as decisões necessárias para os assassinatos em massa estavam tomadas, faltando apenas a sua organização administrativa, o que se daria em Wannsee através da reunião dos líderes do SD. Naquela data, numa reunião de “Gauleiter” do Partido Nazista, no Salão Privativo da Chancelaria do Reich, em Berlim, Hitler afirma para seus seguidores, que perante a “guerra mundial” em curso, a “Questão Judaica” deveria ser resolvida definitivamente: “…o  extermínio dos judeus era uma consequência necessária da guerra mundial” (“… Bezüglich der Judenfrage ist der Führer entschlossen, reinen Tisch zu machen. […] der Weltkrieg ist da, die Vernichtung des Judentums muss die notwendige Folge sein”) [5].

Assim, no período que antecedeu a tomada de decisão, em 1941, e o começo da execução sistemática do Holocausto, em 1942, dominou nos territórios do Reich a violência institucional e individual contra os judeus, sustentada e nutrida por uma propaganda sistêmica do antissemitismo, incluindo a imprensa, o cinema e, o que nos interesse aqui, através de “aulas”, “palestras” e “treinamento”. Neste período, em especial de 1933 até… , quando podemos falar de uma fase inicial do nazismo, a “Gleichhaltung” – ou seja, a uniformização da sociedade alemã pelos projetos nazistas e que alguns autores denominam de “processo de fascistização”[6] – a difusão e imposição do antissemitismo como política de Estado era fundamental. O documento em pauta – as recomendações para “aulas” de antissemitismo a serem ministradas pelo SD –  é um testemunho, brutal, do antissemitismo estatal, enquanto politica oficial do Reich alemão.

A autoria institucional do documento, composto de 26 páginas, originais, datilografadas e com várias anotações à mão, e autenticadas, no estilo corrente dos documentos alemães da época, é do SD.-Hauptamt Abteilgund II – ou seja, do Serviço de Segurança – Escritório Central, Divisão II. O Serviço de Segurança (doravante SD) pertencia às SS e foi organizado em 1931, como um órgão de controle do conjunto das SS. Sofreu várias “reorganizações”, em especial depois da “tomada do poder”,  entre 1935 e 1937.  Sua chefia, e o cérebro organizador, foi o SS-Gruppenfüher Reinhard Heydrich, braço direito de Heinrich Himmler, o chefe das SS. Estava organizado, até 1942, em três escritórios – “Amt”, plural “Ämter”, que por sua vez eram subdivididos em várias “Divisões”, “Abteilung”, plural “Abteilungen” – com funções especificas: o “Escritório I” era dedicado à administração e aos cuidados de gestão do  “pessoal” do conjunto do SD; o “Escritório II” era voltado para a “Segurança Interna”, possuía várias divisões e foi estabelecido pelo SS Standartenführer Hermann Behrends, substituído em 1937 pelo SS Sturmerbannführer Franz von Six, um dos mais importantes “ideólogos” do Holocausto; o “Escritório III” cuidava da “Segurança Externa”, ou seja, a espionagem, inteligência e contra inteligência.

Foi no âmbito do “Escritório II” que o documento em análise foi produzido, logo em seguida da organização das diversas “Divisões” do SD.  A “Divisão II/112” era dedicada exclusivamente a “Judenfrage” ou simplesmente “Juden” – outras divisões do mesmo “Escritório II” dedicavam-se aos maçons, marxistas, oposição, etc…  A organização da Divisão II/112 deve muito a Leopold von Mildstein, o “especialista” em questões judaicas da SS, na verdade um ideólogo do racismo,  e que dirige o serviço, no SD, em 1936.

A Divisão II/112 foi dirigida sucessivamente por vários oficiais superiores da SS. No momento da redação do documento estudado seu chefe era o SS Unterstürmerführer Dieter Wisliceny, não só um ideólogo do antissemitismo, como ainda um dos seus executores. Foi ele que indicou o colega SS Hauptscharführer Schröder (substituído em 1938 por Herbert Hagen, em 1940 por Hans Richter) para a função de “Referent”, algo como “Relator”, da organização da  documentação,   propaganda  e das orientações práticas ( “Rechtlinien”) do antissemitismo  no Reich alemão.

Dieter Wisliceny (1911-1948) com o começo da guerra foi transferido para a função de “Beauftragter für judische Angelegenheiten” ( “Responsável pelos Negócios Judaicos”), leia-se, a “Solução Final”, nos territórios da Eslováquia, Hungria e Grécia. Wisliceny, um antigo estudante de Teologia, que adere ao Partido Nazista em 1931, faz uma rápida carreira no interior do SD – em boa parte em virtude de suas relações pessoais com Adolf Eichmann, tornando-se um “especialista na Questão Judia”. Participou, como “Sonderkommando” na aniquilação direta  dos judeus de Solônica, além de organizar e informar o SD em ampla área da Europa central e do sul, sendo um dos organizadores da deportação dos judeus orientais para Auschwitz. Wisliceny compareceu ao Tribunal de Nuremberg, como testemunha, sendo deportado, então, para a Tchecoslováquia, onde foi julgado por crimes contra a Humanidade, condenado e enforcado em 1948 na cidade de Bratislava[7]. Já Herbert Hagen (1911-1999) era um jornalista, culto e falante de vários idiomas,  mas com sérias dificuldades financeiras, que se junta às SS somente em outubro de 1933, depois da tomada do poder.  Através de seus contatos com Franz von Six torna-se um espião a serviço de Heinrich Himmler, tendo desempenado um papel de monta nos assassinatos de membros da SA – incluindo aqueles mortos onde hoje funciona o Bundesarchiv Lichterfeld, onde o documento analisado foi encontrado – e outros oponentes do Regime Nazi na chamada “Nacht der langen Messer”.  A “Noite das Longas Facas”, em 30 de junho/1 de julho de 1934, deu-se  quando Hitler, apoiado pelas Forças Armadas alemães e pelo “establishment” político em torno do velho presidente Marechal Hidenburg, expurgou e assassinou  a oposição interna no Partido  Nazista – liderada por Ernst Röhm, chefe das AS. Coube as SS o papel central neste banho de sangue. Por seus “serviços”,  Hagen fez uma rápida carreira, sendo enviado, mais tarde, para França ocupada para chefiar o SD em várias cidades francesas, além de ações brutais contra judeus da Áustria e da Caríntia.

Em 1937 foi nomeado chefe da Divisão II/112 Judeus do SD, onde acumulou credenciais para as perseguições que colocaria em prática na França. Por isso foi acusado por um tribunal francês de organizar 70 comboios de deportação de judeus, com 70.790 judeus franceses ou refugiados na França, para campos de extermínio na Alemanha e na Europa Oriental.  Por tais ações foi condenado a prisão perpétua, mas as autoridades britânicas não o entregaram aos franceses. Preso na Alemanha acabou sendo libertado, morrendo num asilo em 1999.

Leopold von Mildenstein (1902-1968), engenheiro e jornalista, alista-se no Partido Nazista em desde 1929 e torna-se membro das SS desde 1931. Era considerado um “especialista na Questão Judia” , tendo feito inúmeras viagens para a Palestina britânica, e defendido a expulsão dos judeus para aquela região, mantido contatos constantes com o “Hagana”, em negociações – envolvendo grandes somas de dinheiro – para a autorização de migração para a Palestina. Em 1936 dirigiu a Divisão II/112 Judeus, tendo então entrado em atrito com Heydrich, voltando-se para Joseph Gobbels, com quem vai trabalhar no Ministério da Propaganda.  Tornou-se rapidamente próximo da “Gehlen Organization” (organização estabelecida em 1946 pelas autoridades americanas para alistar nazistas que seriam úteis para a Inteligência antissoviética)[8], não sendo acusado pelos aliados depois da guerra, indo trabalhar na empresa “Coca-Cola”, como cobertura para atividades de espionagem no Oriente Médio para a CIA[9].

Hans Richter (1903-1972), formado em Direito, com ambições artísticas – estudou música em Berlim – adere ao NSDAP em 1932, como uma alternativa ao desemprego e pobreza que o atingiu a crise de 1929, atuando como informante e depois de 1933 como responsável por presos e delações.  É contratado para a Divisão II/111, onde se torna responsável pela repressão dos maçons, passando rapidamente – e com a ajuda de Adolf Eichmann – para a Divisão II/112 Judeus, onde desenvolve intensa atividade, não sendo, entretanto, acusado depois da guerra[10].

Wilhelm Spengler (1907-1961) foi chefe, durante longo tempo do “Escritório III K”, do SD, responsável pelas questões culturais – daí uma íntima relação com Joseph Gobbels – e pela propaganda e censura no âmbito da vida cultural do Terceiro Reich, incluindo, claro, a propaganda antissemitismo.  Com uma profunda formação em engenharia e Germanística – história, literatura e arte alemã – distinhuia-se no SD como um guia cultural e ideológico da instituição de Himmler. Aderiu ao SD em 1933 e chegou a fazer parte do “Einsatzgruppen IV” (EGR) na Polônia, nos Bálcãs e na URSS, especializando-se no assassinato de funcionários públicos, professores, judeus e doentes.  Depois de um curto internamento, na zona de ocupação britânica, entre 1945 e 1947, Spengler une-se ao grupo “Stillen Hilfe”, de ajuda aos prisioneiros nazistas, atuando claramente como uma liderança nazista na República Federal Alemã[11].

Também parte do círculo restrito do SD voltado para a “Questão Judia” apontamos o SS  Brigadeführer Frans Six (1909-1975), talvez o mais influente de todos os funcionários do SD. Six adere ao NSDP em 1930, entrando para as SA em 1932, indo trabalhar diretamente no SD-Hauptamt, no setor de Jornalismo – era pós-graduado em jornalismo, lecionando na Friedrich-Wilhelm-Universität Berlin, trabalhando ativamente na “logística” da Solução Final, compondo, com os colegas acima, o dito “Eichmannreferat”.  Como membro do “Vorkommando Moscou” participou ativamente dos assassinatos do gueto de Smolenski, na URSS. No imediato pós-Guerra integrou-se a “Gehlen Organization”,  mas, mesmo  assim, acusado de crimes contra a Humanidade é condenado a 20 anos de prisão, em 1948, nos Nuremberg Einsatzgruppenprozess. Contudo, já em 1952 é posto em liberdade por intervenção direta do governo americano[12].

Já o autor direto, aquele que escreveu as primeiras “orientações” do  “plano de aula”, Kuno Schröder,  não temos informações claras depois de 1945, sendo citado, numa obra geral sobre as SS, como um “jovem dinâmico e dedicado” à Questão Judia[13].

O documento –  que objetivava ser um conjunto de  “orientações” para as SS, é decorrente de uma série de conferências de chefes de Divisões da SD realizada para “25-30” líderes, na sede do SD no Prinz-Albrecht Straβe, em Berlin, a partir de 6 de fevereiro de 1937  ( repetindo-se em 12 de março de 1937  devendo estar completas a proposta até 31 de setembro de 1937) – está depositado no Bundesarchiv, Abteilung Massenorganizationen ( na Finckensteinallee 63), sob a cifra, manual, de R 58/623, com as páginas numeradas de 42 até 63, sendo as paginas 62 e 63  um apenso, escrito em gótico cursivo com os pareceres de Wisliceny e do colega Schütt sobre a qualidade do material e a “pedagogia” a ser aplicada. O objetivo principal era a formação  do conjunto dos policiais da Divisão II/112 Judeus.

O documento é parte de um amplo acervo – o Fundo RSHA – depositado no Bundesarchiv/Lichterfelde/Berlim após os acordos de Reunificação Alemã, entre 1989 e 1991.  Haviam sido transferidos, em 1945, para Moscou, dados a riqueza de nomes e ações descritas nas fichas de milhares de militantes, informantes e simpatizantes do nazismo, e de lá para Berlim Oriental, na antiga República Democrática Alemã. Com a unificação os documentos vão para o prédio em que funcionava, entre 1873 e 1919, a Academia Militar alemã, extinta pelo Tratado de Versalhes, em 1919, passando ser uma escola depois dessa data. Em 1933 passa ser a sede do “Leibstandarte SS Adolf Hitler”. Em 1934 foi o local do assassinato de vários oponentes de Hitler durante a “Noite das Longas Facas”, em 1934.  Tomada pelas tropas aliadas em 1945, passando depois do ano de 1951, a abrigar o arquivo federal e para onde foram destinados os documentos tomados pelos soviéticos em 1945.

Todos estes, e mais alguns, foram muito corretamente denominados de “o Grupo de Eichmann”.

2.               O “Programa”:

Nas 11 páginas da “Disposition” do SD-Hauptamt sobre a “formação de policiais sobre a questão da Raça” tem-nos uma programação, num estilo comum de programas de disciplinas, estabelecendo os temas e a cronologia dos “estudos judaicos” necessários para a formação do público escolhido. Assim, já na página 69 do documento, as temáticas são claramente definidas em ordem cronológica:

  1. História dos judeus de 70 d.C., até 1933;
  2. A natureza (das Wesen) dos judeus;
  3. Livros Religiosos e as Leis Judaicas;
  4. O sionismo desde o começo (sic) até o presente;
  5. As organizações judaicas na Alemanha;
  6. A organização internacional dos judeus;
  7. As leis (anti)judaicas desde 1933.

Mais à frente, no apenso em gótico cursivo, surgem outras preocupações, notavelmente mais complexas que aquelas acima. Essas, muito possivelmente propostas por Kuno Schröder – de certa forma linear e bastante óbvias para a finalidade prevista, são fortalecidas ( em uma numeração falha ou completada por outro documento, no caso perdido) e claramente de autoria do SS Untersturmerführer Wisleceny, traduzindo seu pedantismo e uma formação universitária típica do “idealismo” vigente nas universidades alemães. Assim, Wisleceny propõe:

  1. A natureza ( das Wesen ) dos judeus em comparação com a natureza dos arianos.

Para este item propõe, de forma clara, o estudo do “Mein Kampf’, citando as páginas 329 e seguintes.  De certa forma traduzindo sua contrariedade com o caráter “escolar” do programa proposta, aponta a necessidade de uma temática introdutória sobre

  1. “A História dos Judeus como parasita ( “Parasit”) dos povos.

Nesse caso, o novo item do programa, que substituiria o Item 3 anterior ( “Livros Religiosos e as Leis Judaicas”), Wisleceny volta a propor o “Mein kampf” como fonte fundamental do “Programa”,  citando dessa vez as páginas 338 até 358 para caracterizar o  “parasitismo judaico”.

Assim, os Itens 1 e 3 do “Programa”, sobre a longa história dos judeus e seus Livros Sagrados, deveriam ser substituídos – aparentemente por sua obviedade – por dois outros itens que mais diretamente caracterizariam os judeus como “inimigos” não só do povo alemão, como também dos “povos” mundiais. Em seguida, introduz um complexo tema, como Item 2 do Programa:

  1. Considerações Racistas;
  2. Os judeus como força destrutivana vida dos povos desde a Antiguidade (Bíblia, Império Romano, a destruição do Templo);
  3. A infiltração do Judaísmo na Europa;
  4. O judeu por ocasião da Revolução Francesa( o “Aufklärung/Iluminismo”, a emancipação dos judeus);
  5. Os Rothschilds;
  6. Os judeus como dirigentes do Capitalismo e do Marxismo;
  7. A eficiência dos judeus durante a (Primeira) Guerra Mundial ( a formação do Lar Nacional judaico na Palestina);
  8. A Revolta judaica e [a natureza] da sua “sub-humanidade” ( “Untermenschentum”);

Aqui, no Item 11, voltamos a ter uma forte intervenção e uma chamada de atenção, sublinhando a forma na qual o item do “Programa” deveria ser redigido:

  1. Formas de aparência e meios de luta do judaísmo ( espiritual-terror-“objetivos” para outros povos, egoísmo para si. Imprensa; boicotes; maçonaria; marxismo; Protocolos);
  2. Os pontos centrais do judaísmo mundial (judaísmo religiosoortodoxo);
  3. O sionismo como força política no mundo;

Mais uma vez o SS  Untersturmerführer intervém, no Item 14, para reforçar uma temática que considera importante:

  1. Combate ao judaísmo desde sua mais antiga manifestação;

As reações de Schröder e Spengler face ás observações, de fundo críticas, de Wisleceny, traduzem irritação e uma clara disputada, não muito diferente daquelas que as universidades e outras instituições acadêmicas alemães viviam, então sobre a chamada “Questão Judaica”.  O debate sobre o Item 2 do “Programa”, já na página 62 do documento,  sobre a natureza – ou essência – do “ser judeu”, acrescido por Wisleceny de “…em comparação com a natureza dos arianos”, merece uma resposta irritadiça por parte dos autores: além da advertência de serem  os itens  somente “Indicação Preliminar” destacam especificamente este Item 2. Assim, afirmam que “a aula 2 pode ser ampliada  com diversos exemplos sobre a descendência racial dos judeus”.  Em seguida afirmam que a questão possui “pouco material do ponto de vista cientifico” e que só poderia ser remetido “após pesquisa da literatura especifica”.  Recepcionam a proposta de Wisleceny de comparar com a “natureza ariana”, propondo a utilização de diversos discursos e trechos literários de autores Dubnow ( de Simon Dubnow, 1860-1941, historiador); Graetz (Heinrich Graetz, 1817-1891, historiador); Buber (Martin Buber, 1878-1965, filósofo); Rathenau ( Walter Rathenau, 1867-1922, industrial e político); d´Israeli ( Benjamin Disraeli, 1804-1881, líder conservador e primeiro-ministro da Grã-Bretanha)… sem, contudo citar os Rothchilds.

O clima de intriga e querelas, muitas vezes em clara disputa de “erudição” em “assuntos judaicos”, o que representava ascensão na carreira e melhores condições de galgar as posições de liderança no interior do SD. As “ausências” assinaladas, de forma crítica, por Wisleceny são respondidas de forma direta, como decorrentes da “falta de tempo […] não é possível manda-los escrupulosamente”.

Por fim, os autores originais deixam claro, já na página 60 do documento, que precisavam, queriam em verdade, potencializar a “Divisão IV/112”, o que representava aumento de poder no interior do SD: “…caso deseje mais aulas sobre o posicionamento do cristianismo e do judaísmo  e o desenvolvimento do antissemitismo, podem ser remetidas desde que nos dê tempo e pessoal para estes trabalhos especiais”.

3. O “judeu” como objeto de aula:

Desde sua primeira página ( número 42) o documento do SD-Hauptamt seus autores estabelecem, com nitidez, o seu objetivo: “O Judaísmo como adversário mundial do Nacional-Socialismo”. Tendo isto em vista, fazem uma clara observação de tipo “militar”: para combater o adversário é preciso conhecer suas particularidades do “ponto de vista do NS”.  A naturalização da oposição judeu-ariano, um fato nem sempre claro para um país onde a presença judaica era, então, já multissecular. Assim, desde logo, a tarefa imediata é diferenciar a “condição” judaica e a natureza diferenciada dos arianos.

O documento aponta a existência, em 1933, de 16.5 milhões de judeus no mundo ( o Anuário Judaico Norte-Americano apontava, em 1933, cerca de 15.5 milhões de judeus), sendo que 6.5 milhões nos Estados Unidos; 2.3 milhões na “Rússia Europeia”; 6.8 milhões nos demais países europeus e 0.9 milhão nos demais continentes ( enquanto o Anuário Judaico fala, na sua edição de 1933, 5.5 milhões na Polônia e União Soviética)[14]. O documento afirma existir, ainda, em 1937  cerca de 390 mil judeus identificados na Alemanha, sendo que desde 1933 outros 105 mil já haviam emigrado. O Anuário Judaico, no entanto, fala em cerca de 500 mil judeus alemães. A maior concentração vivia nas grandes cidades como Berlim, com 160 mil judeus, Frankfurt com 26 mil e Hamburgo com  17 mil cidadãos de religião judaica ( na verdade era identificado pelos avós, conforme a nova legislação nazista)[15].

De qualquer forma, além do número discutível de judeus na Alemanha em 1933, nunca foram mais de 1% da população alemã, então em torno de 67 milhões de pessoas. A própria compreensão destes números obrigava os autores do documento a duas análises complementares para comprovar o “perigo” judaico. De um lado, argumentava-se, já na página 42, sobre a desproporcional concentração de judeus em alguns setores da vida alemã, redundando num “Pensamento Orientador” a ser implementado em todo o país: “…Repressão da influencia judaica na Alemanha – restrições da possibilidade de existência”. Em  seguida são descritos os setores onde a desproporcionalidade fosse evidente na Alemanha, tais como “na vida política… no comércio e nas áreas artísticas”. O documento sugere ainda que sejamT apresentadas estatísticas da “…influencia judaica por grupos específicos… e a atividade arianas e judaicas”.  Por outro lado, mesmo sendo 1% da população total da Alemanha – estatística não apresentada pelos planos de aulas – a presença dos judeus seria perniciosa por si mesma dada sua natureza “destrutiva”.  O documento considera que “a invasão judaica na vida íntima popular de uma nação demonstra um efeito negativo”. Junta-se a isso a natureza “biológica” do judeu, considerado como “…em sua totalidade [é] um bastardo”. Neste sentido, e a novidade do antissemitismo nazista, os judeus seriam, conforme a página 47, biologicamente uma raça diferente, o que seria provado por pesquisas cientificas de conhecidos cientistas “higienistas”, tendo  uma origem mestiça, misturando “egípcios, babilônios, assírios, filisteus, cananeus,  moabita e, mais tarde também, kasares”[16].

4. A luta contra os judeus:

Coube a “Divisão V/112 Judeus” do SD-Hauptamt a construção de uma tese de combate ao “judaísmo” que anuncia claramente o que atualmente chamaríamos de “pós-verdade”. Para justificar a culpabilização dos judeus e seu caráter destrutivo como um problema mundial, os “intelectuais” da “Divisão”, em especial Six, utilizando-se do “Mein Kampf” como fonte, afirma o caráter “mundial” e “dissimulado” do judeu ( “Judentum”) que dominaria as grandes potencias: a União Soviética, através do bolchevismo; a Grã-Bretanha, através da infiltração na elite dirigente do país e nos Estados Unidos, através do controle das grandes finanças. Este era um tema comum dos fascismos. Mesmo Benito Mussolini já havia falado e criticado a improvável divisão do mundo entre a “Roma Negra”, o catolicismo, e a “Roma Negra”, o bolchevismo em Moscou. A lógica da argumentação – reunindo notórios rivais entre 1933 e 1941 como a Grã-Bretanha e a URSS, além, claro, dos Estados Unidos, não precisava ser comprovada. Bastava afirmar a sagacidade, o egoísmo e a dissimulação dos judeus. O aparente paradoxo da afirmação acima era explicada, já na páginas 47/48, pelo natureza do “Volkstum” ( a essência do povo) judeu: “…um povo diversificado que nem sempre precisa ser unificado. Ao contrário , pode-se  concluir que, durante os séculos, os judeus sempre tentaram assimilar seu “Volkstum” aos povos hospedeiros”.

[1] Ver para análise da “Kristallnacht”: Browning, Christopher . Collected memories: Holocaust history and postwar testimony. In: Mosse, Mosse Series in Modern European Cultural and Intellectual History, Madison,  University of Wisconsin Press, 2003,

[2]Mommsen, Hans. “Auschwitz, 17. Juli 1942”. In: Frei, Norbert e Henke, Klaus. Der Weg zur europäischen „Endlösung der Judenfrage“. In:  München, DTV, 2002.

[3] Martin Broszat:  “ Kommissarbefehl und Massenexekutionen sowjetischer Kriegsgefangener”. In: Anatomie des SS–Staates. Band 2. Org. Hans Buchheim, Broszat, Hans-Adolf JacobsenHelmut Krausnick. Freiburg 1965, S. 163–283 – e ainda  Dtv, München 2005. Para o texto original completo ver: https://de.wikisource.org/wiki/Kommissarbefehl.

[4]Mommsen, Hans. Op. Cit., pp. 113/150.

[5] Goldmann, Guido. Holokaust, Hamburgo, Goldmann, 2001.

[6] Poulantzas, Nicos. Ditadura e Fascismo. Lisboa, Editorial Estampa, 1970.

[7] Richard OveryInterrogations: The Nazi Elite in Allied Hands 1945 Allen Lane, The Penguin Press, London 2001

[8] Höhne, Heinz; Zolling, Hermann (1972). The General Was a Spy: The Truth about General Gehlen and his spy ring. Nova York: Coward, McCann & Geoghegan.

[9] Joseph Verbovszky: Leopold von Mildenstein and the Jewish Question. Case Western Reserve University, Cleveland/Ohio 2013,

[10] Ver: Michael WildtGeneration des Unbedingten. Das Führungskorps des Reichssicherheitshauptamtes, Hamburg, HIS Verlag, 2002.

 

[11] Para a atuação das autoridades norte-americanas no alistamento de nazistas para a CIA ver: Boghardt. Thomas. America’s Secret Vanguard: US Army Intelligence Operations in Germany, 1944–47. In: CIA Files: https://www.cia.gov/library/center-for-the-study-of-intelligence/csi-publications/csi-studies/studies/vol-57-no-2/pdfs/Boghardt-Secret%20Vanguard.pdf, consultado em 21/11/2016.

[12] Hachmeister, Lutz Der Gegnerforscher. Die Karriere des SS-Führers Franz Alfred Six, Munique, 1998

[13] Weale, Adrian. The SS: a new history. Londres, Abacus Ed., 2011.

[14] Ver em: https://www.ushmm.org/wlc/ptbr/media_nm.php?ModuleId=0&MediaId=270, consultado em 21/11/2016.

[15] Ver em: https://www.ushmm.org/outreach/ptbr/article.php?ModuleId=10007687.

[16] Ver Black, Edwin. A Guerra Contra os Fracos. São Paulo, Editora Girafa, 2003, em especial p. 449 e ss.