A farda, o “Eu” e sua dupla negação
A farda, o “Eu” e sua dupla negação
Mauro Cid se propõe a arrastar esse “Eu-farda”, a parte visível de si mesmo, até o fim como os fragmentos de uma persona que aprisiona e liberta
Com a farda, na solidão, o TC Cid diz quem é, já que deu-se um engasgo da fala, da capacidade dialogal, e assunção do socioleto bolsonarista circuita toda capacidade de “dizer”, assim ele diz com o corpo vestido, couraça e farda, o que resta do que ele é . Ao mesmo tempo, ele se propõe a arrastar esse “Eu-farda”, a parte visível de si mesmo, até o fim como os fragmentos de uma persona que aprisiona e liberta.
Assim, sem ser ele próprio, carrega no seu corpo a instituição que o identifica e que ele identifica, numa dança de perda dupla para ele e a Instituição. É um “Eu” ao mesmo tempo autoritário e que vive no “Angst”, medo-angústia, que se auto aniquila para salvar-se de suas próprias ações oferecendo-se como um “Outro” , coletivo e institucional, que quer culpado em seu lugar. Simultânea, ao se calar, sobre um processo que foi parte, ator e autor -e no qual exerceu um papel no mínimo de “fala do Outro” – aniquila seu “Eu” como indivíduo em favor do “Eu-Outro” que é, agora, a sua única fala; o Outro-Eu que é o “chefe”, o “mito”, o “capitão”.
Assim, ele mesmo, deixa de existir como “Eu” num espiral dupla de negação-recalque que processa a aniquilação pública, instantânea e televisiva, do seu próprio “Eu” em face da Instituição/Estado/Exército com a qual procura preencher o vazio de um “nao-Eu”, que ele quer como farda-fachada no seu lugar de réu e, simultâneo, nega seu “Eu” enquanto ser desejante em favor do “Eu” maior, absoluto, pai-grande, o único que importa, o grande homem, único a restabelecer a “ordem” num mundo sem valores, onde ele se sente sem aderência, e do qual espera infantilizado que pegue sua mão.
O espetáculo de hoje, triste, espelha num indivíduo o processo geral de derrota civilizacional e individual das massas perante o fascismo: a regressão psicológica e histórica de alguém que renuncia a ser alguém e assume, como sua defesa, ser apenas parte de um “Outro” maior, através de/do qual evita o sofrimento e, enfim, se realiza na dissolução n’Outro como um falso “Eu”. Enfim, é todo o fenômeno, assustador.
Porque 2023 não é 2002 e não será 1964
Seria muito bom, mas ingênuo, imaginar que uma eleição – difícil, marcada pelo uso massivo da máquina de Estado – possa mudar uma polarização radicalizada entre Democracia e Fascismo, como existente hoje no Brasil. Infelizmente o núcleo político do Governo Lula da Silva não entendeu a atual situação no Brasil, a virada brutal que se deu na política brasileira depois de 2013/2014 – contemporânea a virada na Ucrânia e com o mesmo sentido. Isso mesmo: Dilma Rousseff foi vítima de uma “Revolução Colorida”. Em 2013 o fascismo, ainda desorganizado, fez sua aparição na cena política (para além de flor exótica de redoma museológica).
As pesquisas de Adriana Dias e do grupo de estudos de Dilton Maynard – o GTempo/UFS – comprovam isso. No entanto, o núcleo político-militar do governo (com o então Ministro chefe do GSI , Gal GDias, a Abin, os ministros Ruy Costa, Alexandre Padilha, José Múcio Monteiro e, por vício de estabilidade e de apego a imagem pública, o Ministro Mauro Vieira, do Itamaraty), apostaram na “Doutrina do Gradualismo” visando “apaziguar” o bolsofascismo – palavra que se tornou infame exatamente na História dos Fascismos – mas, isso os ministros não conhecem e nunca estudaram. Estabeleceu-se como “doutrina” que os ditos “acampamentos patrióticos” eram compostos de brasileiros democratas e pacíficos, posto que lá estavam até parentes do Ministro da Defesa, conforme afirmou em auto-declaracão em 2 de janeiro de 2023.
Assim, não afastaram os bolsofascistas das áreas centrais, vitais, do Estado, que fora eficazmente colonizado por fascistas, reacionários e militares saudosos de 1964 durante os Governos Temer e Bolsonaro. Os bolsofascistas continuaram na Abin e no GSI, depois da posse de Lula da Silva e mesmo depois do golpe Estado falhado de 8 de janeiro de 2023. Lá estavam para conspirar e trair a ingenuidade política do próprio Gal GDias (e do ministro da Defesa e de seus parentes “Patrióticos”). Somente com o “estranho evento” de 19 de abril de 2023, quando a TV CNN mostra vídeos – vazados pelo próprio GSI – no qual o Gal GDias aparece atônito e paralisado no Palácio do Planalto em plena invasão dos depredadores fascistas.
No entanto, após a prisão do TC Mauro Cid, em 18 de maio de 2023, emergem planos reais, concretos, do golpe de Estado preparado para 30 de outubro de 2022, quando haveria uma intervenção no STE e no STF, com prisão de ministros e anulação do resultado eleitoral, declarando-se Jair Bolsonaro o único vencedor das eleições. Para isso reuniriam-se tropas do Comando Militar do Planalto, do Batalhão Duque de Caxias e mais 1500 homens trazidos do Rio de Janeiro, onde o submundo do crime e as origens do fascismo se confundem e se retro-alimentam -vide o Caso Marielle e Anderson. 0 responsável por essa conexão Rio/Militares/bolsonarista seria nada menos que o Coronel Elcio Franco, nomeado para Agência Nacional de Saúde, e conselheiro da camarilha bolsonarista, e que comandou a (des)Saúde Pública – braço direito do notório Gal Pazuello – brasileira enquanto os brasileiros morriam aos montes sufocados em Manaus e ou se realizava o genocídio Yanomami. Fracassado por total imobilidade das tropas, o golpe de 30/10/2022 foi transferido para 8/01/2023.
Todas as forças fascistas foram convocadas para a “Festa da Selma”, senha/código da Insurreição fascista ( emulando Roma, 1922; Munique, 1923; Kiev, 2014; La Paz, 2019 e o Capitólio em 2021). Assim erguiam-se os três pilares do golpe: 1. Os 20 mil depredadores fascistas reunidos com financiamento do agro-negocio e do capital financeiro; 2. A conspiração no âmbito do Governo do Distrito Federal, com Anderson Torres à frente, utilizando-se da PM do GDF e, finalmente, 3. A conspiração no âmbito dos órgãos federais, como o próprio GSI, Abin, Batalhão Duque de Caxias e o Comando Militar do Planalto.
As Forças Armadas, divididas, hostis ao PT e a Lula, mas sem qualquer consenso para um Golpe de Estado, só sairiam dos quartéis se a Insurreição fascista tomasse fôlego e se estendesse pelo país. O que quase aconteceu entre 6 e 9 de janeiro de 2023: torres de transmissão de energia foram dinamintadas em São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul; refinarias foram cercadas e ameaçadas de invasão em São Paulo e Rio de Janeiro e bloquearam-se estradas nos Estados do Sul. Aposta era no caos que imporia o “apelo” á ordem por parte das FFAAs. No entanto o Governo Federal reagiu rápido, ladeado pela Advocacia Geral da União, com o Ministro Jorge Messias, e o Ministério da Justiça, sob Flávio Dino. Recusaram a imposição de uma operação de GSI já engatilhada – que viria ser de fato a tal “Intervenção Militar Constitucional” , apoiada no escombro da ditadura inserido na Constituição de 1988, o debatido Artigo 142.
O governo optou pela intervenção federal civil, baseada no Artigo 136, que versa sobre o Estado de Defesa, escolhendo um civil, o jornalista Ricardo Capelli, como interventor. Mesmo assim houve reações: o Comandante do Exército, Gal Arruda, moveu blindados e desdobrou tropas para impedir a ação do Interventor Federal e do próprio Ministro da Justiça, dando tempo para a fuga de elementos de Operações Especiais infiltrados entre os depredadores no Palácio do Planalto, no STF e no Congresso Nacional. A mesma atitude deu-se com o Coronel Fernandez da Hora, Comandante Militar do Batalhão Duque de Caxias, a guarda presidencial do Palácio do Planalto. Ainda não se sabia, no entanto, que o Gal GDias participara dessa operação de fuga dos responsáveis e viria a ocultar do próprio Presidente da República as provas da “abertura das portas” do Palácio para os invasores, nas palavras do próprio Lula da Silva.
Assim, a lentidão na hora de assumir as responsabilidades do Estado e a incompreensão de que os inimigos hoje são os fascistas, não o PSDB como em 2002, paralisaram o governo – e em parte ainda está paralisado com bolsonaristas em cargos na Saúde, na Educação, no Incra, no Dataprev, na PF, na PRF, em órgãos da Cultura e da Gestão Pública.
O fascismo, histórico e contemporâneo, desde as análises de Nico Poulantzas e de Detlev Peukert, se distingue das ditaduras pessoais, como no Caso de Vargas e Perón e das ditaduras militares, como no Brasil ou Chile. Como “Estado de Exceção” destrói por dentro as regras institucionais da Democracia Liberal Representativa, toma em silêncio as instituições do Estado – como as polícias, a clínica, a Magistratura, a escola, etc. para então assestar seu golpe fatal. O primeiro levante fascista na Alemanha foi em 1923 e, no entanto, Hitler só chegaria ao poder – apoiado por outro “centrão”, o Partido do Zentrum e as forças conservadoras -, dez anos depois, em 1933.
O fascismo contemporâneo não fará um golpe como aqueles de 1964 ou 1973 na América do Sul e, tão pouco, são forças políticas do “arco constitucional”, como era em 2002 o PSDB. O bolsofascismo trabalha na putrefação do Estado de Direito, no mal-estar coletivo e com o ressentimento dos grupos sociais que imaginariamente se sentem roubados – a “perda” subjetivada – pela ampliação do “demos”, da Democracia, em direção aos grupos alternativos e diversos, e por isso tornam-se tão facilmente capturáveis pelo racismo, misoginia, falocracia e pelo machismo.
O Governo Lula deveria “afinar” seu núcleo político e entender que nenhum cargo ou ministério acalmará a fome fascista. A única saída da maré montante extremista é ampliar o diálogo com as forças vivas da população, abandonar o medo ao povo, promover novos interlocutores, muito além dos gabinetes de Brasília.
247 16 de junho de 2023, 16:55 h
A Reforma do Ensino Médio e o Futuro do Brasil
Pela primeira vez a maioria dos professores de História, Sociologia, Filosofia e os maiores especialistas em Educação estão em profundo desacordo com o Governo Lula. Claro, o fulcro da questão é o chamado “Novo Ensino Médio”, o NEM. Creditamos tal desacordo, profundo e de princípios, ao atual Ministro da Educação e sua equipe, incluindo os resgatados do Governo Bolsonaro, como o Secretário de Ensino Médio do MEC. Mas, não é só : como afirmar que o PT é o partido que abraçou Paulo Freire ou Anísio Teixeira como princípios quando a Educação é descaracterizada em seu aspecto maior de ação positiva de emancipação popular? Hoje, o ódio e o apagamento de nossa História são marcas do quotidiano. Nunca antes neste país precisamos tanto de História, de conhecer nossa própria História, para não repetir uma História feita na opressão de classe, de cor e de gênero. A escola tornou-se um campo de batalha real e simbólico. Mas, então, eis que um grupo autoritário de homens que armaram o Golpe de 2016 , a criminalização dos movimentos sociais e a injusta prisão de Lula, impõe durante o espasmo autoritário, fascistizante dos Governos Temer e Bolsonaro, um projeto de Educação que acaba com aulas de História. É a vitória do apagamento de uma memória necessária, indispensável, para a formação de adolescentes e jovens. Quem estudará mais a Revolução de 1930, o Integralismo e seus asseclas fascistas, quem falará “Nunca Mais!” para Auschwitz? Sem as aulas de História? Reinará o silêncio. No nosso ofício, no nosso campo, os homens de 2016 ainda estão no poder. Por quê? Por duas razões simples: de um lado a “economia” que os governadores farão com o menor número de professores e a incorporação de “curiosos” e fazedores de brigadeiro ao corpo docente das escolas; por outro lado, vence a pressão das Fundações do capital como Bradesco, “Todos pela Educação”, Fundação Ford e outros interesses invisíveis. Vemos um governo do PT , orientado por tecnocratas insensíveis, fazer o que a própria Ditadura Militar não conseguiu. Na luta contra a famigerada imposição, nos anos de 1970, da disciplina “Estudos Sociais” e Educação Moral e Cívica substituindo, com um currículo de “paz social” e da “ternura brasileira”, a heróica história de Zumbi, Tiradentes ou Luiz Gama. Lutamos contra esse estupro da História, com Sérgio Buarque de Holanda à frente. Então deram-se anos e anos de abandono, de miserabilidade de salários, de professores “de matrícula”, longe do convívio pleno com alunos, pais e colegas. Hoje, a escola foi invadida pela violência. Os meios de comunicação estão dominados; as Igrejas tornaram-se empresas de lucros fáceis e de fabricação do ódio; as famílias se dividiram. Restou o último espaço de lutas pela Educação emancipadora, capaz de combater o ódio de classe, o ódio de gênero e o ódio de cor: a escola pública, laica, gratuita e principalmente de Qualidade. Como combater o mal que se abate sobre crianças, adolescentes e jovens se os privamos de sua própria História. Por que o silêncio dos ministros dos Direitos Humanos, das Desigualdades e dos povos indígenas? Cada um no seu quadrado identitário com seus cargos e alheios ao objetivo maior – uma Educação Emancipadora. Todos são coniventes. “Quem cala sobre teu corpo consente na tua morte!” Não, não vamos nos calar. Como explicar o racismo, sem debater a Escravidão e o terrível Tráfico Negreiro? Como explicar o Massacre dos Yanomami sem debater a natureza da colonização ? Sem História o ódio vencerá! Por fim, no futuro como os adolescentes saberão a incrível e fabulosa vida de Lula da Silva sem História? Como combater o racismo e apologia ao nazismo sem História, Sociologia e Filosofia. Sem esse debate as nossas escolas serão viveiros de jovens neonazistas. É triste que sejam aqueles que sempre foram acusados do “crime” de seguir Paulo Freire sejam os primeiros a negar suas próprias ideias. Viva Sérgio Buarque de Holanda e todos os professores do Brasil.
O “Novo Ensino Médio”: discutir sem enrolação.
Creio que há , ao menos, quatro pontos cruciais muito nefastos no NEM: 1. A ideia que a garotada já vai escolher seu futuro entre os 15/17 anos, sem nenhuma realidade ou estágio prévio; 2. Nossas universidades estão com um nível de trancamento em torno de 25% dos matriculados a cada ano, discutimos agora, nas universidades, formas de retenção de estudantes com flexibilidade no momento da escolha de carreiras no vestibular; 3. a escolha prematura irá aumentar a desistência/trancamento/abandono, daqueles que possam chegar até ao Nível Universitária; 4. E, por fim, é fundamental restabelecer os conteúdos básicos formadores da cidadania e do entendimento do mundo pelos próprios jovens. Por outro lado, são pontos positivos do NEM: 1. O aumento da carga horária formadora; 2. A implantação de tempo integral. No entanto, ambas as condições não são sustentáveis em vários pontos do Brasil. Assim, o Governo, sendo democrático e popular, deve socorrer as Secretárias Estaduais com recursos institucionais e perenes; 2. Deve ser criado um sistema de incentivo tipo “Lugar de aluno é na Escola”, com bolsas que combinem desempenho com engajamento em atividades extra-classe. Esses são pontos para começar a conversa!
1964: “Meninos, eu vi!”
Hoje, com a necessária correção ao poeta Gonçalves Dias, a paráfrase ao grande poema romântico “I Juca-Pirama” deveria ser: “Meninas, Meninos, Meninxs, eu vi!” Pouco importa, em verdade, para a História que vou contar: “…meu canto de morte/amigos ouvi!”. Mais uma vez estamos diante de um 31 de março, quase 60 anos depois daquele 31 de março de 1964.
Hoje, longe daquele ano de 1851, do “I Juca-Pirama” do poeta e ainda assim tão perto daquele 1964, faço um canto triste perante a necessidade de não esquecer, jamais apagar, as lutas daqueles que lutaram a justa guerra: “Contudo os olhos d’ignóbil prantos secos estão/ Mudos os lábios não descerram queixas/ Do coração”. Canto por ofício a morte, os sequestros, a tortura dos bravos da História. Meu canto ergue-se por pura necessidade de dizer “não” ao negacionismo, o revisionismo, ao apagamento. Necessidade imposta pelo charlatanismo, pelo desamor com a História. Durante os longos 21 anos de céu triste e choroso, de cinza e pó, não era preciso um canto de rememoração: isso era tarefa da própria ditadura, que mesmo velha e só pelancas, erguia toldos, palanques e alegorias votivas para glória própria. A ditadura festejava nas ruas a própria natureza do golpe: militar, desde sempre, empresarial na conjuração – como nos editoriais de Eugênio Gudin em O Globo -, civil pelos partidos, associações e coletivos comerciais; mediática, via o “Correio da Manhã” e do próprio O Globo, posto que sem o convencimento e a sedução não se arrastaria as massas que festejariam a morte da Constituição nas ruas de Copacabana. Pois sim, “…Meninos, eu vi!”, Copacabana não me engana, engalanou-se para pedir o Golpe e depois festejou como Réveillon seu desfecho. Triste Copacabana, de fascistas e reacionários! O Golpe foi também ecleseástico. Sim, em desafeto à Democracia, 1964 foi pedido com rosários e velas nas mãos. Todos estavam lá: empresários, latifundiários, comerciantes, padres ultramontanos. Sim, “ultramontanos” posto que não gostaria de adjetivar 1964 de um “Golpe Religioso”, mas somente “ecleseástico”. De uma hierarquia católica comprometida com as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” – “Liberdade”, palavra corrompida por todos os que planejam a tirania. Nos primeiros meses de 1964 marcharam mulheres, ditas “donas de casa”, de “prendas do lar”, os latifundiários, os empresários da Fiesp – ah, a Fiesp! Claro, nada aconteceria sem a Fiesp. Todos orando com rosários de prata, de ouro, de pérolas nas mãos. As ruas do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte encheram-se de mulheres piedosas, de véu e fitas, Filhas de Maria. Homens sisudos, batinas e pequenas cruzes de ouro na lapela. “ Olha lá vai passando a procissão/Se arrastando que nem cobra pelo chão/As pessoas que nela vão passando/Acreditam nas coisa lá do céu!”, advertiria Gil.
Não, nada daquilo era “religioso”, mas era clerical: a visita do Padre irlandês Patrick Peyton (1909-1992), uma “pessoa” da CIA, um investimento do empresário ultraconservador, católico J. Peter Grace, manipulador dos mercados mundiais de açúcar, bebidas e minérios, altamente interessado nos destinos da América Latina. Padre Peyton era uma arma tão valiosa contra a Democracia quanto a Operação Broither Sam, com a qual os Estados Unidos pretendiam garantir a vitória dos golpistas: havia cem toneladas de armas leves e munições e navios. Tinha com 50 unidades a bordo, tripulação e armamento completo, um porta-aviões, seis destróieres, um encouraçado, um navio de transporte de tropas e 25 aviões para transporte de material bélico. Kennedy, Peyton, Grace, e também Konrad Adenauer eram os nomes estrangeiros da conspiração contra a Democracia no Brasil. Todos olhavam para Cuba, a pequena ilha agrária, pobre e católica que, desde 1959, causava pânico em Washington por sua capacidade de mobilização e esperança, exemplo, para muitos, de futuro e, no entanto, para outros horror e pânico. Como a ilha dos cassinos, dos charutos, dos bordéis da máfia, do rum e do açúcar das refinarias americanas fora perdida? Impaciência e revolta. E ainda pior: aqueles revolucionários recebiam armas de Moscou. Pois é, “…meninos eu vi!” Nos sermões das igrejas se rezava pelo infeliz clero cubano levado ao exílio ou ao “Paredón”. Desde a invenção da “Cuba Libre” nenhuma palavra espanhola parecia tão popular no Brasil com “el paredón!”. Justo? Cruel? Necessário? Abominável – as opiniões eram diversas, mas o debate era comum, popular, fazia pensar. “Esse canto, meninos eu ouvi!”.
Tinha, então, 10 anos, menino morava no bairro operário da Penha, entre a fábrica de couros e os sutiãs “De Millus”. Foi lá, num belo domingo de janeiro, na feira livre, que os asseclas das marchas de Deus reuniam doações e assinaturas contra a “infiltração comunista na Igreja e no estado”. Foram, contudo, vaiados, presenteados com tomates pobres, um par de ovos e por fim expulsos da feira. Em grande parte das periferias urbanas, como no Rio de Janeiro, o PTB era maioria, pobres e operários apoiavam Jango e seu governo, explicitando o apoio de 70% da população ao projeto de Reformas de Base de Goulart, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Abelardo Jurema…. E, nas ruas e nas rádios, exigidas por Leonel Brizola e Francisco Julião, o líder das Ligas Camponesas, que em escolas improvisadas estudavam pelo Método Paulo Freire. O Brasil fervia de ideias, de homens, na urgência do futuro. Antonio Callado, depois, narraria tudo em “Quarup”. Foi isso, “meninos que eu vi!”.
No entanto as marchas continuavam: a grana vinha de fora, vinha das associações ruralistas, empresariais e dos IPES que a face oculta, militar-empresarial, montava. Todos se lançavam às ruas contra o “temível comunismo” embutido nas Reformas de Base: Reforma Universitária, a extinguir as cátedras e aumentar as vagas, garantir o ensino para todos e matricular aqueles ditos “excedentes”, numa universidade gratuita e laica, o que revoltava as Igrejas, senhoras de um virtual monopólio sobre o Ensino de Qualidade no país. Cada escola, um santo, um coração sangrante, como as chagas do povo com fome. A Reforma Bancária, impedindo o monopólio dos financiamentos e a manipulação extorsiva dos juros contra os pobres e remediados – um Banco Central seria criado só em 31/12/1964 – bastião da continuidade empresarial e bancária, longe da vontade popular. A Reforma Constitucional que deveria democratizar o Estado e garantir mecanismos de supressão da pressão externa e os “Pronunciamentos” militares. A Reforma Administrativa, modernizando o Estado, tornando-o mais popular e democrático, leve e eficiente, afastando de vez o patrimonialismo de classes oligárquicas que usavam cargos e ofícios como prebendas e sinecuras, típicas de uma sociedade colonial. A Reforma Fiscal, com o estabelecimento de um imposto progressivo sobre grandes fortunas, heranças e sucessões, taxando o latifúndio e – pasmem! – as remessas de lucros para o exterior. Corrigia-se a secular injustiça dos impostos sobre o consumo popular. E, claro, a Reforma Agrária, horror dos latifundiários, que deveria corrigir a injustiça de uma Abolição sem indenização dos escravizados, prover milhões de brancos pobres, devolver a terra dos retirados das secas, da fome e do latifúndio. “Não é cova grande/é cova medida/é a terra que querias/ver dividida” dizia o poeta João Cabral de Mello Neto. A Reforma Agrária, libertando milhões de moradores, meeiros e simples ocupantes, além de pagar a dívida histórica, deveria garantir alimentos e matérias-primas baratas, abundantes, para o processo de industrialização sustentada, livre da dependência , como pregava Jango, Darcy e Furtado. O povo apoiava: “As setas da aflição já se esgotaram/Nem para novo golpe espaço intacto/ Em nossos corpos resta”.
Na verdade 1964 era um ano mais avançado que 2023: ainda nos restam por fazer as reformas que perdemos na longa noite de 31 de março.
“Isso meninos, eu vi!”: em Magé, no fundão da Baía de Guanabara, onde meus avós moravam, os proprietários de terras, amaldiçoando Jango, derrubaram as matas e venderam a madeira para fazer carvão. Outros colocaram bois raros num pasto ralo, só para dizer que suas terras não eram latifúndios aptos para a Reforma Agrária. Muitos atearam fogo às matas: “Esse é meu canto de morte/guerreiros ouvi!”.
Então veio a tragédia: era uma terça-feira, aquele 31 de março de 1964, quando blindados rolaram de Minas Gerais sobre o Rio de Janeiro, de fato, ainda a capital federal. O Governador, do então, Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, se encastelava no Palácio com armas pesadas, tropas do CCC/Comando de Caça aos Comunistas e oficiais da Aeronáutica e da Polícia Militar. De lá, em discursos histéricos, de anticomunismo ensaiado – um comunismo que não amava Jango e que Jango não amava! – instigava as tropas todas, toda a força militar, a aderir ao Golpe em curso. Invadia-se a sede da UNE, os sindicatos, a Universidade: “São rudes, severos, sedentos de glória/já prélios, incitam, cantam a vitória”. Nas rádios hinos e rezas se sucediam, pedindo ao deus deles – mais do que nunca o deus dos exércitos – o sucesso da empreitada golpista. “Meninos, eu juro, eu vi!”. As avenidas e as ruas foram fechadas. A Avenida Brasil, chamada então pelos cariocas de “Variante”, foi fechada pelos militares, que param e inspecionam pessoas, documentos, ideias, apropriando-se das funções de polícia num terrível spoiler do amanhã. No outro extremo da cidade, ferroviários e portuários fechavam a Avenida Francisco Bicalho e Rodrigues Alves, enquanto a euforia tomava Copacabana. Mas, já era tarde: o tão propalado “Esquema sindical-militar” de Jango não conseguiu garantir a legalidade e o governo constitucional. As rádios que resistiram, num momento que a TV ainda era de minorias, foram invadidas. A Rádio Nacional, de tantas glórias, onde o radialista e showman César de Alencar acusava, na hora, colegas de comunistas. Homens como Mário Lago e Paulo Gracindo seriam punidos pela delação do animador de auditórios. “Meninos, eu vi!”.
Meu pai, um apaixonado pelo Rádio, que comprava grandes “discos” de 78 rpm, de Miltinho, Doris Monteiro, Nora Ney e Alaíde Costa, jamais perdoaria César de Alencar. Na “boca pequena”, muito receosa, o showman era tratado pelo nome de um recém lançado detergente líquido: ODD. A sigla serviria, doravante, para colar como piche, naqueles que se prontificavam para a delação: ODD/”O dedo duro!” Um nova realidade que tornaria o cotidiana irrespirável.
Mas, também, os militares foram vítimas de seus colegas de farda: 7.540 militares foram presos, torturados, humilhados, sequestrados e expulsos das Forças Militares. A maioria não sabia sequer o que era comunismo, apenas se declaravam nacionalistas, como Rui Moreira Lima. Lá estavam com a legalidade e a Constituição oficiais patriotas como Sergio Macaco, almirante Cândido Aragão, o Brigadeiro Francisco Teixeira e o General Euryale Zerbini.
Naquele 1 de abril, uma quarta-feira, meu pai não foi trabalhar: saímos de carro para pescar. Todos os órgãos públicos estavam fechados, havia a Lei Marcial. No entanto, ao atravessar a ponte para a Ilha do Governador, postos pescarmos na Pedra da Onça, a Aeronáutica parou o pesado Chevrolet de 1959, examinou os documentos de meu pai e nos impediu de prosseguir. Todos deveriam permanecer em casa. Não haveria pescaria, mexilhões ou cocorocas. Foi isso que eu vi.
Claro, havia os inimigos de sempre: os professores. Sempre eles, comunistas, ateus, subversivos, inimigos da religião, da propriedade e da família. Os delatores eram homens como o catedrático de História Antiga da FnFi, hoje UFRJ, Eremildo Vianna, que organizava listas de colegas a serem presos, cassados, aposentados via os atos institucionais da duvidosa “Revolução” gloriosa. Em tais listas constavam o físico José Leite Lopez, as Historiadoras Eulália Lobo e Maria Yedda Linhares, o maestro José Siqueira, o antropólogo Darcy Ribeiro, o sociólogo Victor Nunes Leal, o historiador Caio Prado e o homem que denunciou a fome no Brasil, Josué de Castro, com sua “Geopolítica da Fome”. A “Inteligência” brasileira era decapitada num festival de besteiras e de brutalidades denunciado por Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta. Estudantes eram expulsos das universidades através do Decreto 477, que impedia qualquer ação política, crítica ou organização dos estudantes. Elio Gaspari, Vladimir Palmeira, Luis Travassos, Maria Augusta, Daniel Aarão Reis serão apenas alguns dos muitos punidos pela Ditadura. Alguns alçarão vôo nas asas da Aeronáutica num último vôo noturno, como Stuart Angel Jones, que deixará uma mãe em busca de um corpo: “Quem é essa mulher/Que canta sempre o mesmo estribilho/Só queria embalar meu filho/ Que mora na escuridão do mar” – na homenagem de Chico Buarque. Outros seriam mortos em praça pública, como o menino vindo do Norte Edson Luís do Nascimento.”Meninos, eu vi!”
Pela primeira vez desobedeci meu pai: não fui a aula naquela manhã e ainda com o uniforme do Pedro II fui à missa na Candelária. Te Deum. Te Deu laudamus Edson! A cavalaria da PM atacou na saída, rompendo o cordão de proteção de padres e freiras. Fumaça e gases invadiram a nave santa. Deu-se a reação: bolas de gude foram lançadas, os cavalos tremiam e o cavaleiro ia ao chão. Nas vielas da Rua do Rosário e Buenos Aires havia cavalos, cassetetes, bombas e fumaça e o uníssono “Abaixo a Ditadura!”. “Seus nomes voam lá na boca das gentes/ Condão de prodígios, de glórias e terror”.
E meu pai? Próximo assessor do Ministro Paulo de Tarso, da Educação, foi sumariamente afastado do serviço público. Uma das coisas que mais me impressionavam e meu pai era o aprumo: os ternos de linho branco, verde clarinho ou azul celeste, com prendedores de gravata. Jamais se recuperaria do baque, mesmo depois de retornado ao seu posto, no fim da ditadura, a vida lhe seria pesada.
Tudo isso, como no poema romântico, Senhores, eu vi – a bem da verdade, eu vivi! Um garoto que ficava acordado, no quarto, ouvindo as vozes graves na sala. Um tio, físico formado na Universidade Patrice Lumumba, diria entre sussurros: “…vivemos uma longa Noite de São Bartolomeu!”. Eu, então, não sabia o que era “uma Noite de São Bartolomeu”, o massacre, as violações e torturas que todavia já vivíamos. No dia seguinte, correndo para a vasta biblioteca do Colégio Pedro II, fui pesquisar “Noite de São Bartolomeu”, 23/24 de agosto de 1572. Sim, seria uma longa noite de medo e opressão, 21 anos pesados como chumbo. Ali no saguão da biblioteca do Pedro II descobri que seria historiador. Com o coração batendo do lado certo do peito. “Confesso – como o poeta morto num outro Golpe [que tudo isso] – eu vivi!”.