O PÊNIS E A LEI

As instituições sociais numa sociedade minimamente civilizada deveriam ter, e tem mesmo entre nós e mesmo neste momento de crise, mediações e espaços de amparo. Entre a situação “prisão” – no Brasil terrível penalização para além da pena de privação da liberdade – e a vulnerabilidade da cidadania e da dignidade do outro – no caso especifico do chamado “Estuprador do Ônibus”, mulheres trabalhadoras, devemos pensar alternativas. A liberdade sempre vem acompanhada da responsabilidade, neste caso tanto do rapaz agressor quanto do juiz, este último claramente vagando entre o despreparado para tal caso ou, no mínimo, displicente perante o histórico do agressor. Não se trata aqui de discutir as tecnicidades do Direito e de suas operações – aliás, de grande flexibilidade hoje no país, conforme as cortes de primeira instância e o próprio STF, quando se fala da defesa de patrimônio, seja público ou privado. Também não se trata de defender a penalização com o aprisionamento de todo e qualquer comportamento delituoso, abarrotando prisões já abarrotadas. Por isso, falamos, desde as primeiras linhas em espaços, ações e atos de mediações e amparo.

É neste sentido que podemos, mesmo de longe, perceber que o rapaz agressor estava em sofrimento psíquico grave, estava pedindo ajuda – a repetição compulsiva do ato (o Wiederholung), é/era um pedido inconsciente de punição – uma repetição compulsiva, pública e sequencial de um ato que valeria, de uma forma qualquer, quando praticado em público, uma punição. A masturbação masculina, embora universal, merece no processo educativo-repressivo um imenso imaginário e uma grande gama de punições impostas de fora ou interiorizadas no processo de “educação” dos meninos, desde terna infância. Ser portador de pênis na nossa sociedade é um bônus, mas há um processo claro de domesticação punitiva do mesmo, que acarreta formas variadas punições caso o jovem macho não seja capaz de administrador o uso masturbatório do seu próprio pênis. D.F.N., o “estuprador do ônibus”, entre os 25 e os 26 anos de idade passou por um estranho processo em que “desaprendeu” a administração do seu pênis e do seu uso masturbatório. Por quê? Cabem duas respostas simples: fez porque podia e sabia que seria prazeroso e não seria punido por isso ou, bem ao contrário, fez porque sabia que era uma coisa ruim e buscava uma punição.
A repetição compulsiva, pública, em espaços onde não poderia esperar nenhuma “fuga” da cena – na contramão das trajetórias clássicas de estupradores em série – nos aponta um individuo que queria ser pego e, portanto, punido.

A punição viria, cedo ou tarde, via a prisão – e então a cessação do ato gozoso perverso, posto que o gozo masturbatório adulto em público seja perverso – ou através de um ritual de linchamento, ao qual o rapaz se expôs nos locais mais movimentados e públicos da Capital paulista. Na repetição do seu gozo havia uma irrefreável pulsão de morte.
O grito de ajuda, o pedido de punição imediata, visando a cessação do gozo perverso – masturbação de um homem adulto, em público, em uma situação adversa, contra a vontade do objeto de investimento libidinal e sob grave risco pessoal – não foi sequer considerado pelas instituições que deveriam reconhecer as condições de alto risco que envolviam todos os presentes na situação: as mulheres colocadas numa situação de objeto de investimento de um gozo perverso, agredidas de forma a mais vil possível para uma mulher; para os demais passageiros, incluindo crianças que podem ter na cena uma iniciação traumática a um debate por demais complexo e mal-dito na sociedade, aos passageiros em geral, em especial aos demais homens que poderiam correr o risco de assumir a postura de serem “chamados” à condição de “justiceiros” – numa sociedade que políticos e mídia incentivam o linchamento de “bandidos” – e para policiais, talvez impelidos a burlar as leis e ir além de suas funções.

Em fim, D.F.N., de 27 anos, trabalhador, pardo, com uma história traumática e nem por isso plausível e muito menos justificável, não foi em momento algum ouvido: e quando afirmamos que não foi ouvido não nos referimos a sua narrativa – do seu acidente e de seu coma – mas, não foi ouvido no seu pedido público de punição. As instituições que deveriam ouvir a estridência do grito de dor – uma, duas, três… ejaculações sobre mulheres surpreendidas, atônitas, chocadas e, com toda certeza, traumatizadas, não mereceu atenção de nenhuma instituição da sociedade, embora D.F.N. tenha sido levado perante tais instituições variadas vezes e tenha mesmo sido internado, por outras razões, por um longo tempo em um hospital. Mas ninguém o ouviu.
D.F.N. não nasceu andando de ônibus e ejaculando em pessoas: todo o processo perverso tem uma origem e essa origem reside numa dor que precisa ser aliviada através de um sintoma. O gozo perverso de D.F.N. é um sintoma. Há algo maior, oculto, mal-dito, que causa uma profunda dor, tamanha que o rapaz prefere o tremendo risco da prisão, do espancamento e mesmo do que pode acontecer com ele numa prisão.

Ou apenas, o amparo de um diálogo sobre o sofrimento.

A única resposta obtida foi a negação. Negaram qualquer ajuda, colocando o rapaz, o agressor responsável – sim, porque mesmo na dor você é responsável pelos atos que pratica para superar, “esquecer”, sublimar a própria dor, afinal o Outro não está disponível para sanar ou cessar involuntariamente, compulsoriamente, sua dor -, frente a frente com as mulheres, tornadas objetos indistintos, “ao acaso” disse ele, e inocentes da dor do outro. Em tal situação emergiu um grande risco para o conjunto de mulheres que viajam de ônibus – mulheres comuns, trabalhadoras, possíveis colegas de homens do mesmo grupo social que D.F.N. Risco inclusive de interiorizarem um horror, rejeição, e no limite de aversão ao sexo – uma das vítimas do agressor era uma adolescente. Tais mulheres também não mereceram quaisquer cuidados por parte das instituições, que ao contrário – como a “boa prática do saber jurídico” exige – só se interessam pelo “depoimento” da vítima, pelo relato dos detalhes mais escatológicos perante um público de gênero, classe, formação e, possivelmente cor, diferenciada que irão perscrutar no “dito” das mulheres o que é ou não, por elas, uma ofensa: são os donos do pênis, letrados, brancos, da elite social que possivelmente jamais foram constrangidos ao contato físico indesejado que decidiriam onde e até onde as ações de D.F.N. são ou não uma ofensa para uma mulher. Mesmo quando mulheres, quase sempre técnicas da Lei, nos explicam honestamente , no caso, os limites da Lei, não percebem que as Leis trazem em si o poder do pênis e reforçam sua dominação. Não se trata de um complô ou de uma trama contra outros grupos da sociedade: é simplesmente natural para homens poderosos que assim o seja, posto que interiorizam a fala de uma sociedade onde a dominância peniana se exerce por si só, pela ordem natural das coisas na própria educação diária de meninos e e meninas, mesmo no interior de suas famílias até as instancias máximas dos códigos da Lei – escritos por estes mesmos homens e suas circunstâncias e experiencias penidominantes. “Não quero” deve ser dito com todas as letras e a resistência deve ser provada com escoriações e sangue, caso contrário não há crime!

Não se trata, portanto, de prendê-lo num cadeia, em comum, e pronto, acalmar as consciências revoltadas – não é isso que se discute. Ainda mais agora, com a publicidade toda. Trata-se, neste momento, de uma prisão de alto risco e a vida e integridade desse rapaz é hoje um desafio lançado à nossa sociedade – como padrão mínimo de civilização. Desafia-se, em todo este caso, a nossa sociedade, a ser capaz de solucionar questões complexas de sofrimento na modernidade urbana e industrial, de manter-se, de manter-nos, um ponto além da barbárie. Ignorar um grito de dor, como fez o Estado na figura do Juiz, do Ministério Público – onde funcionava um grupo de estudos e de proteção aos crimes de gênero (!!!) – mesmo que sob a forma de gozo perverso, é de extrema crueldade. Insensibilidade imperdoável com todos os atores envolvidos na tragédia, como acima detalhamos, mas muito especialmente com as mulheres ofendidas e o público que não pediu para assistir o espetáculo: alguém já se perguntou se havia crianças nos ônibus em que viajava assiduamente D.F.N.?

O não reconhecimento de uma situação limítrofe existente no “habitat” criado em torno do rapaz agressor é claramente seletivo. Usar a letra da Lei para explicar isso é lançar mão do mundo cultural que informa a mente do legislador a partir do seu lugar cultural de fala e assim permitir a continuidade da dor num mundo desigual: e este mundo é um mundo masculino, falocrata e onde a noção de ofensa é inteiramente experiencial, de gênero, de cor e de classe. Ou estamos perante a crença cultural que entre “esse povo” as “coisas são assim mesmo”, e o comportamento lúgubre e a promiscuidade, “natural” nos chamados “grupos subalternos”, não é a ofensa mesma que ofende as elites bem-nascidas?

Para com as vítimas da perversão, sempre mulheres trabalhadoras cansadas, exaustas, usando transportes públicos horrendos, caros, inseguros e lentos, onde por vezes dormir 30 ou 40 minutos é um alívio, é uma crueldade repetitiva e explicitante do descaso da elite machista com as mulheres trabalhadoras. Na outra ponta, com o perpetrador do gozo perverso, explicita-se a incapacidade da sociedade em seu todo em socorrer um individuo em pleno processo de sofrimento repetitivo agudo a ponto de colocar em risco seus semelhantes e a si mesmo. Ou seja, é como se as regras que valem para um grupo social protegido e preservado, não tivessem qualquer valia para a maioria de uma sociedade pobre, trabalhadora, mestiça e em especial de sua parcela “mulher”.

No processo devemos destacar: 1. A reação tecnicista dos operadores do Direito é insensível e distante da compreensão opressiva que os indivíduos – no caso todos oriundos das classes trabalhadoras, perpetrador e suas vítimas – vivem e sofrem num contexto de crise social e depressão, onde o desamparo e a perda de expectativas é generalizada; 2. a ira mediática dos “heróis das redes sociais” beira ao fascismo, quando pedem: “cortem o bilau dele”, ou “coloquem na prisão para ser entregue aos demais presos” ou “boa surra resolve” ( repetindo o processo “educativo-repressivo-repetitivo” dos meninos punheteiros!) – tais manifestações em nada diferem dos programas de extermínio executados pelo Terceiro Reich e regimes afins, incluindo os linchamentos nos Estados Unidos ou mesmo no Rio de Janeiro, a partir de atos reais ou imaginários, diagnósticos médicos viciados ou não; a sociedade não se vinga em seus indivíduos, ou não deveria fazê-lo, e tal ação em nada resolve a questão colocada – a pulsão de morte vivida como dor intensa e, então, sublimada em gozo perverso compulsivo; 3. particularmente é revoltante o número de “posts” que propõem, como “pedagogia”, que alguém ejacule ( no condicional) na “cara” da filha ou esposa ( presuntiva) do juiz – neste caso a falocracia e a misoginia se reproduzem e o pênis se impõe como o justiceiro mor de toda a sociedade, resolução final de conflito, confirmando a inter-relação mental antiga entre pênis e Lei – tais pessoas são, na verdade, os verdadeiros “machistas”, de ambos os sexos, adoradores de pênis justiceiros. Ora, pênis foram feitos para o gozo, eventualmente para a reprodução, não para punir ou justiçar ninguém. O que precisamos é entender a existência de núcleos intensos de dor na sociedade contemporânea, gerando processos complexos de sofrimento numa sociedade massiva, industrial, urbana, em crise, e que tais processos levam as pessoas a comportamentos maldosos, perversos e cruéis. A maioria delas ocultam suas crueldades para com os outros ou os camuflam em vantagens sociais e em seus pretensos méritos e vitórias pessoais. D.F.N. não, expôs publicamente o que considerava o mal, feio e necessário de punição. Alguém disse isso em algum momento de sua vida e ele acreditou muito nisso.

Muito dos que sofrem não possuem recursos monetários ou intelectuais para recorrer a ajuda necessária e, no processo de sofrimento, afastaram-se do seu núcleo básico de amigos e familiares que poderiam servir de algum apoio – se não for o caso, mais que provável, do núcleo familiar ser a própria origem primária da afecção, tão claramente desviado para um comportamento masturbatório público, de caráter infantil, merecedor de punição.

Tais pessoas precisam de ajuda, não de punição, castigo, extermínio. O caso do “estuprador do ônibus” por sua compulsão, repetição, persistência e, principalmente, sua regressão personológica de tipo masturbatória, chega ao seu paroxismo com o conhecimento dos detalhes técnicos, por parte de D.F.N. do que podia ou não gerar sua prisão: aqui, na repetição, desta feita, “com constrangimento” – ou seja, com a consumação do estupro -, D.F.N. quis garantir ser ouvido. O grito – pronto, eu fiz desta feita como o Juiz disse que seria o mal completo.

Era/é um claro grito de socorro que usou, de forma abjeta, o corpo de Outros – mulheres inocentes, trabalhadoras, vivendo suas próprias trajetórias de dificuldades, superações e crises – como objeto de salvação de um Eu no limite da destruição. No mundo fechado de sua dor não há espaço para a dor de ninguém mais e suas vítimas são apenas os vocábulos do grito.

O terrível em todo esse processo é que desde o primeiro momento – a primeira prisão, a o primeiro fragrante e a primeira entrevista com um juiz, afinal um homem formado para ouvir o Outro, numa profissão de onde se originou o “paradigma da auscultação” do que está oculto, enterrado, sob as diversas camadas do corpo – nada se tenha percebido. Ou ao menos no segundo evento… Ou no quinto ou sexto evento. Na verdade, quem ouve hoje o sofrimento das pessoas? De todas essas pessoas envolvidas numa história tão miseravelmente humana.