General sem alma, Pazuello gerou crise que poderia ter dado a Bolsonaro ‘seu Exército

[RESUMO] Deboche, incompetência e indisciplina de Eduardo Pazuello —que ocupou o Ministério da Saúde durante o período mais agudo da pandemia, passeou sem máscara e subiu em palanque— uniu as Forças Armadas em torno da sua imediata punição e passagem para a reserva. Essa expectativa, porém, foi frustrada pelos custos e consequências de uma nova crise militar, que poderia permitir a Bolsonaro nomear “seu” general para comandar “seu” Exército.

As ações do general Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde e sua participação em um ato de apoio a Bolsonaro depois de deixar a pasta trouxeram para o julgamento da cidadania, mais uma vez, o papel dos militares na vida política do Brasil.

Depois de inúmeras intervenções no processo político e administrativo ao longo da história brasileira, desde a Constituição de 1988 considerávamos que o risco de militarização das instituições era baixo.

No entanto, após um período de “profissionalismo”, em que se dedicaram aos deveres da caserna, fizeram dezenas de MBAs especializados e foram contratados em fundações privadas, os militares acharam que havia chegado a hora de promover um retorno à política.

Bolsonaro participa de homenagem ao Exército em 2019

Buscando uma breve intervenção –em nome das boas práticas, embevecidos pela performance do juiz de Curitiba e horrorizados pelas “provas” do lavajatismo–, apenas repetiram a história, consolidando um habitus de “salvar” a República de seus vícios.

Isso já havia acontecido antes: no tenentismo dos anos 1920, na Revolução de 1930, no golpe do Estado Novo de 1937, na deposição de Vargas em 1945, nos constantes “pronunciamentos” do Clube Militar durante a Quarta República (1946-1964), culminando no regime civil-militar de 1964-1985 —em que tiveram uma República para dizer e fazer como imaginavam o Brasil. Os resultados todos conhecem.

A transição para democracia, o projeto Geisel-Golbery, foi o mais longo e tortuoso da história de qualquer República, se estendendo de 1977 a 1988.

Em 1979, foi dada anistia a torturadores e torturados; depois, calou-se sobre os terroristas que, em 1980 e 1981, lutaram contra a democracia de dentro do Estado, atacando com bombas a oposição. Os episódios do Riocentro, da OAB e da Câmara dos Vereadores do Rio —todos crimes de sangue, terroristas e pós-anistia— são bons exemplos dessa atuação, além dos crimes “continuados”, de sequestro e desaparição de cadáveres.

A Constituição de 1988 incorporou a Lei da Anistia de 1979 em nome da concórdia. No entanto, nem todos a aceitaram. O projeto Geisel-Golbery, superado pelas ruas, continuou a ser combatido pelo lado de dentro, pelos bolsões “radicais, porém sinceros” no seu desamor ao Estado de Direito, que nunca aceitaram se habituar com a democracia.

Esses setores se consideravam herdeiros do ex-ministro golpista general Sylvio Frota, que tinha como ajudante de ordens um certo capitão Augusto Heleno. Os setores terroristas, que planejavam ataques até contra companheiros de farda, continuaram pregando a não existência da ditadura, do golpe, de sequestros e avançaram até a negação da escravidão e do racismo no Brasil —chegando, por fim, à vacina.

A máquina da repressão da ditadura militar

Aos poucos, passou a ser possível perceber que a transição democrática, a abertura de Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, não havia acontecido para amplos setores das Forças Armadas. Entre os modelos de transição –na Argentina, com punições; na África do Sul, com o reconhecimento público do passado e a defesa da concórdia; na Espanha, com pactos de “esquecimento”, mas sem repetição— o Brasil escolheu um modelo especial: o esquecimento repetitivo.

O tuíte do então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, pressionando o Supremo Tribunal Federal a não conceder habeas corpus ao ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, em 2018, marcou definitivamente o retorno dos comandantes militares à política.

É verdade que esse processo já se desenrolava desde 2016, quando a cúpula das Forças Armadas participou ativamente –ao lado da “frente parlamentar” e da “frente empresarial”, constituindo a “frente militar”– da garantia do impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT) por motivos hoje sabidamente irrisórios.

O que os comandantes militares da época colocaram em jogo abusivamente, no seu retorno à política, foi a imagem permanente das Forças Armadas brasileiras, evidenciando que a instituição não realizou a transição democrática e a habituação à Nova República.

O mesmo pode ser dito das polícias brasileiras, em especial a PM, da diplomacia e de boa parte da alta administração nacional, incluindo aí a Justiça —que o diga como o sistema judiciário lida com casos de racismo estrutural e com as chacinas de negros e pardos no país.

Apesar dessa conjuntura, parte dos analistas considerava que a presença de alguns generais no governo de Jair Bolsonaro (sem partido) era bem-vinda, dado o caráter “ideológico” da nova gestão, podendo desempenhar a função de tutelar e conter os arroubos do presidente.

Os militares no início do governo Bolsonaro

Com as primeiras demissões de militares de alta patente do governo —como os generais Carlos Alberto dos Santos Cruz e Maynard Santa Rosa, ambos extremamente conservadores e defenestrados exatamente por acreditarem na “tutela” do presidente—, evidenciou-se que Bolsonaro era o único responsável por seu governo.

O avanço da pandemia —previsto e calculado dia a dia por cientistas e instituições— fez emergir o “lado oculto” do governo: não sua incapacidade de agir, mas sua capacidade de colocar em prática um governo paralelo, camuflado, impondo aos brasileiros uma política de contágio impositivo de Covid-19.

Sucederam-se ministros da Saúde até chegar ao “homem no posto”: o general Eduardo Pazuello, dito especialista em logística, grande estrategista, trazendo nos ombros a expertise do Exército. Aí começaria o desastre. Os números de doentes, mortos e sequelados transbordam. Bolsonaro debochou, Pazuello obedeceu.

A imagem do Exército, e por antonomásia das Forças Armadas, se retraiu em pesquisas sobre a confiabilidade das instituições nacionais. A visibilidade não buscada trouxe, ainda, a publicidade sobre compras como de leite condensado, carnes e bebidas no momento em que brasileiros tinham que ser socorridos pelo auxílio emergencial e, ainda mais grave, de hospitais militares fechados —incluindo Manaus, epicentro da catástrofe– ao mesmo tempo que pessoas morriam e o general Pazuello, em visita à cidade, receitava cloroquina.

Mortes e mentiras se acumulavam. A ausência de prontidão, de estratégia ou de logística para salvar vidas ficou evidente.

O general mentiu, se portou de forma relaxada, descuidada e com grave incúria, assim como seus subordinados diretos, enquanto faltava oxigênio para os internados por Covid-19.

O drama em Manaus

A soma desses comportamentos se choca diretamente com os valores básicos que qualquer aluno deveria ter assimilado na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras): direção, comando, coragem moral, cumprimento da missão, criatividade, aprimoramento técnico, civismo, fé na missão, patriotismo. Pazuello faltou com todos esses valores básicos.

Alguns outros preciosos valores, de extrema sensibilidade exigidos na academia e na vida de qualquer um, também foram estranhos ao general Pazuello: sensibilidade moral: capacidade de se sentir moralmente afetado; julgamento moral: capacidade que permite refletir sobre situações que exigem interface com valores; empatia: capacidade que permite compreender ideais e valores dos demais; contextualização moral: capacidade que permite a reflexão moral.

Em resumo, no caso de Eduardo Pazuello, a Aman formou um general sem alma. Infelizmente, a história nos relata a trajetória de generais desse tipo, sem alma, sempre associadas a genocídios.

O caso Pazuello reforçou e estimulou o movimento do Exército em direção a um discreto distanciamento do governo Bolsonaro —tão discreto que muitos nem sequer o percebem. O afastamento, como tudo no Exército, deveria ser lento, seguro e gradual, sem dar razão e motivos aos críticos e sem despertar rancores.

No entanto, por sua própria lentidão e ausência de rumo, esse movimento despertou a desconfiança de todos os lados. Os militares encastelados no governo Bolsonaro temeram ficar isolados, denunciados na solidão do Planalto. Aqueles que queriam o afastamento, enojados com a indisciplina, a incompetência e o cabotinismo de Pazuello, queriam a punição imediata, como claro sinal do distanciamento em curso.

Jair Bolsonaro (esq.) e o general Eduardo Pazuello em cerimônia no Palácio do Planalto sobre a vacinação contra a Covid-19 – Ueslei Marcelino – 16.dez.20/Reuters

Fez-se o impasse. Eram os primeiros dias de junho, dois meses depois da exoneração dos generais Edson Pujol e Fernando Azevedo e Silva do Comando do Exército e do Ministério da Defesa, respectivamente –a segunda crise militar do governo dos generais.

Porém, havia mais. A crise desencadeada por Pazuello deixou escapar um nojo maior, uma escala de ressentimentos ainda mais profunda. Não eram apenas os cargos disputados em termos de “quem é o mais antigo? Agora é minha vez!”.

Eram os sinais evidentes de vaidade e arrogância. Era a compra de ternos caros, mochilas importadas, “pins” americanos “de Armas” para as gravatas, “cases” e, claro, computadores, visitas constantes ao eBay, corrida para vagas em embaixadas e missões diplomáticas. Por mais traumático e cruel que tenha sido 1964, havia um projeto: 2019 teve um ar de festa na província.

Ao longo de maio, Pazuello passeava leve e solto sem máscara em shoppings, participava de motociatas e subia em palanques. Tal atuação, que beirava o deboche, conseguiu uma façanha, na primeira semana de junho: uniu quase toda a Força ativa, boa parte da reserva –e eis aqui uma novidade– a Marinha e, bem ou mal, a Aeronáutica em torno de dois pontos: punição e imediata passagem para a reserva do general.

Bolsonaro faz passeio de moto no Rio e gera aglomeração

Não bastava passá-lo para a reserva, era necessária uma punição, escrita ou oral, e uma advertência, mais ou menos dura. Haveria uma punição.

Então, entrou em cena a tropa do presidente. Coube ao general Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Casa Civil, a defesa do ministro da Saúde responsável pela catástrofe, tendo no ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, o suporte fundamental, desde abril e maio, para a defesa da “exemplar” gestão de Pazuello na pasta.

Assim, o Comando do Exército foi paralisado pelo ministro da Defesa: uma punição do general entraria em choque direto com o ministro e, claro, com o presidente. Bolsonaro, como comandante em chefe, não aceitaria e faria reverter o ato. O recém nomeado comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, e o Alto-Comando do Exército tiveram que avaliar o preço, os custos e as consequências de uma terceira crise militar em tão pouco tempo.

Na última quarta-feira (23), Bolsonaro publicou um decreto que permite que oficiais das Forças não sejam obrigados a passar para a reserva depois de dois anos em cargos civis, podendo exercer funções administrativas sem restrição de tempo. A medida vai na contramão da expectativa dos comandantes do Exército e pode levar a um novo acirramento da relação dos militares com o Palácio do Planalto.

O presidente, ao exonerar os generais Edson Pujol e Fernando Azevedo e Silva no final de março, conseguiu uma meia vitória no seu processo de bolsonarização das instituições. O caso Pazuello, orientado pelo general Ramos e secundado pela tremenda ausência e abandono da tropa pelo general Braga Netto, deveria ser a ceifada final do bolsonarismo contra a tímida tentativa do Exército de se manter distante da catástrofe. Tudo culminaria na exoneração do general Paulo Sérgio de Oliveira.

Bolsonaro estaria, então, livre para nomear o “seu” general para comandar o “seu Exército”. Com isso, finalmente, o tenente expulso da Força por indisciplina e ausência de fé, que se tornou capitão por ato de graça, teria um Exército para chamar de seu.

No entanto, esse roteiro não se concretizou. Ainda.

O Ministro e o “Estado Paralelo”: um “Estado inimigo” ocupa o Território do Brasil

Após pouco mais de quatro semanas de inação – exceto pela “batalha de notas de imprensa” entre o Ministério da Defesa e a Secretária de Segurança do Rio de Janeiro – a situação da (in)segurança da Cidade chegou ao seu ponto mais baixo na última semana. O traficante “Nem” teria decidido resolver uma disputa na Rocinha. Uma comunidade numa situação privilegiada da Zona Sul/Zona Oeste do Rio de Janeiro, com cerca de 70 mil habitantes, dividida por luta interna entre dois membros “familiares” da facção ADA (“Amigos dos Amigos”), dividida entre a facção  da própria esposa do traficante, Danubia Rangel – foragida da polícia, mas influente no tráfico local – e seu preposto e “sucessor” Rogerio Avelino da Silva, o “Rogério 157”, que teria expulsado Danubia da comunidade e tentado assumir sozinho o controle da venda de drogas na região.

A disputada entre os “familiares” de “Nem” teria sido a causa do conflito atual no Rio.

Do interior da penitenciária de segurança máxima em Porto Velho (RO) “Nem” teria ordenado – inclusive por áudio de whatsapp  que circulou por todo o Rio de Janeiro – a invasão da Rocinha e a perseguição de “Rogério 157”. Este assumira um papel de “dono da comunidade”, cobrando taxa do comércio local, controlando a venda de água, gás, carvão, sinal de tv além de pedágio de mato táxi, táxi e vans e serviços de entrega na Rocinha – claro tudo isso além do “negócio” principal das drogas.

A comunidade da Rocinha mantinha até o dia 17 de setembro, quando se deu a invasão e começaram os intensos tiroteios, uma guarnição de 700 policiais com uma UPP funcionando desde 2012. Nessa madrugada cerca de 140 homens fortemente armados saíram do Morro de São Carlos, onde também há uma UPP, percorreram cerca de 14 quilômetros pelo Centro urbano da Cidade do Rio de Janeiro, e iniciaram a invasão da Rocinha. Os policiais de plantão, no São Carlos, em vários pontos do percurso e na Rocinha, viram  todo a mobilização e nada fizeram – fato admitindo pelo próprio Secretário de Segurança Roberto Sá, 48 horas após o início dos enfrentamentos, e confirmado pelo Governador “Pezão” na Globonews, em 22 de setembro de 2017 em cadeia nacional[1].  Não houve previsão, inteligência, contenção ou qualquer forma de proteção prévia da população de 70 mil pessoas da comunidade, reféns, sem luz, água e transporte, da luta entre as facções rivais da ADA.

Também o Departamento Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça, não foi capaz de informar como o traficante “Nem” conseguiu, do interior de uma prisão de “Segurança Máxima” fazer gravações e dar ordens para instalar o caos na cidade distante 3.4 mil quilômetros de distância. Também a direção da penitenciaria e o pessoal em serviço na data da ação de “Nem” no interior do presídio não  foram ouvidas ou aberto um inquérito para apurar responsabilidades[2].

Entre 17 e 22 de setembro de 2017 a cidade do Rio de Janeiro viveu sob intensa tensão e paralisia: escolas fechadas, transporte paralisado, moradias invadidas, população aterrorizada, sem luz ou transporte e uma completa inação das autoridades locais, ora afirmando serem necessário apenas recursos financeiros da União, ora solicitando o patrulhamento de 119 pontos da cidade![3]

Após o paroxismo de uma Cidade literalmente dividida ao meio – a Zona Sul desconectada da Zona Oeste – e a população aterrozida e um governo, assediado por processos por corrupção e por uma brutal falência financeira e de seus serviços básicos, incluindo salários e equipamentos e material de segurança – e um macabro recorde de assassinatos de policiais que já ultrapassa o número de cem pessoas! -, o Governo do Rio de Janeiro “demanda” auxílio ao Ministério da Defesa nos termos do Artigo 142 da Constituição Federal, denominado “GLO”, para a Garantia da Lei e da Ordem – aliás, em vigor na Cidade desde 28 de julho de 2017, logo com tempo suficiente para a organização de um planejamento e organização de uma ação de controle e repressão ao crime organizado no Rio de Janeiro[4].

Após uma manhã inteira de terror, por volta das 15h30minhs, 950 homens das FFAA entraram na Rocinha.

À noite, o Ministro da Defesa se dirige à Nação para explicar as operações em curso. Desde logo declara “a Rocinha pacificada”, o que será desmentido pelos tiroteios e vítimas fatais – incluindo crianças – em vários pontos da cidade, irradiando-se da Rocinha[5]. Não contente em fazer uma afirmação tão temerária e açodada, o Ministro parte para um balanço ou análise “político-sociológica” do crime organizado no Rio de Janeiro de forma superficial e totalmente equivocada. Na sua fala se refere ao crime organizado como “Estado Paralelo”, equiparando em grau de igualdade o Estado brasileiro – uma construção jurídico-constitucional emanada da vontade geral da Nação – com um bando organizado para delinquir, no mínimo, por si só tipificado como crime na Lei 12.850/13 – Art. 24 e no art. 288 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 do Código Penal. Ou seja, o Ministro não conseguiu perceber a diferença do longo percurso entre a construção do Estado de Direito – centrado em Locke, Montesquieu e Thomas Hobbes – e uma organização de bandidos montada para delinquir. Mais do que isso, de vontade própria, sem qualquer pressão, o Governo do Brasil, através do seu Ministro da Defesa, portanto um porta-voz bastante e autorizado, reconheceu a existência, em território nacional, de uma “ente” Estatal estranho à Soberania Nacional ocupando território nacional, portanto armas e obstaculizando a ação do Poder Público constituído conforme a “Vontade Geral” da Nação. Assim, ao contrário do Governo da Síria, que jamais reconheceu o “Califado islâmico” como “Estado” em plena guerra, ou Israel que se recusa a reconhecer a “Autoridade Palestina” como um “Estado” de pleno direito, o Ministro da Defesa do Brasil, do nada, sem qualquer necessidade, declarou em cadeia nacional, que um bando de criminosos – a saber, 140 homens armados – “um Estado Paralelo”. Além disso, na mesma fala, concluiu que estamos “em guerra”, criando uma situação “direito internacional”: um “Estado” com o qual “estamos em guerra” ocupando partes do território nacional.

Não ocorreu ao Ministro da Defesa denominar o crime organizado de “Poder Paralelo”, de “Poder usurpador” e a luta contra o crime de simplesmente “combate”. Talvez empolgado pelas metáforas do cargo lançou-nos numa guerra que transforma quadrilhas de criminosos numa “poder estatal”.

Essa seria exatamente uma grande vitória para as FARCS que o Governo da Colômbia sempre se recusou a reconhecer. Nós o fizemos em pouco mais de 8 horas de “de guerra”. Como se não bastasse o reconhecimento, na mais alta instância da República, de um “ente” estatal em guerra no território brasileiro – não ocorreu ao Ministro da Defesa que o narcotráfico possa ser um “Poder Paralelo” jamais um “Estado”, uma organização que usurpa poderes do Estado legal-racional, como estabelecido por Max Weber, e por isso mesmo uma organização criminosa que disputa o monopólio legal da violência com o único ente de Direito a exercer tal recurso em todo o território nacional, o Estado Soberano brasileiro – o Ministro avançou. Fez, “loquitur sine modo”, graves afirmações. Afirma estar preparado para dispor de todos os meios do Ministério  para enfrentar o “Estado Paralelo”, que então merece uma definição: [temos os meios] “… para enfrentar o estado paralelo, que é o estado que foi capturado pelo crime organizado” [6]. Ora, quais as “partes” ou “instituições” do Estado brasileiro que foram “capturadas” pelo crime organizado? Nenhuma explicação, nada. Apenas uma nuvem de desconfiança para o população: sua Polícia, sua Justiça, sua Administração ou seriam seus próprios dirigentes que teriam se unido ou sido capturados pelo crime organizado para formar o “Estado Paralelo”? Ou talvez o Ministério da Justiça que não consegue explicar como “Nem” numa Penitenciária de Segurança Máxima em Porto Velho comanda o tráfico no Rio de Janeiro?

Em suma, estaríamos, conforme a análise sócio-política do Ministro da Defesa vivendo no país a existência de dois Estados – como na teoria leninista de poder dual, onde o Estado revolucionário emerge e engloba o velho poder, aplaudiria Mao ou Marighella  – e as instituições já foram “capturadas” pelo “Estado narcotraficante”.

Uma simples consulta a ferramentas do curso de graduação em teoria politica, como o Dicionário de Ciência Política de Norberto Bobbio et alii pouparia o país e população de tamanha desilusão e desalento[7], além de conferir a criminosos comuns, decerto espertos e cruéis, mas claramente fruto do desmonte do Estado e deboche das autoridades, o status de um “ente” político.

Ou então, esperemos que o Ministro da Defesa demande ao Papa ou a ONU negociações imediatas de paz.

[1] Ver: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/nem-ordenou-invasao-da-rocinha-de-dentro-de-presidio-federal-em-rondonia.ghtml. .  Consulta em 23/09/2017.

[2] Ver: https://oglobo.globo.com/rio/apos-visita-presidio-advogado-de-nem-nega-que-traficante-tenha-ordenado-invasao-rocinha-21844878. .  Consulta em 23/09/2017.

[3] Ver: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/ministro-da-defesa-diz-que-falta-planejamento-da-secretaria-de-seguranca-para-atuacao-das-forcas-militares-no-rj.ghtml. .  Consulta em 23/09/2017.

[4] Ver:  https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/temer-assina-decreto-que-autoriza-forcas-armadas-a-atuarem-na-seguranca-publica-do-rio.ghtml. .  Consulta em 23/09/2017.

[5] Ver: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/09/23/rocinha-volta-a-ter-tiroteio-na-madrugada-deste-sabado.htm. .  Consulta em 23/09/2017.

[6] Ver: https://g1.globo.com/pernambuco/noticia/ministro-da-defesa-afirma-que-forcas-armadas-estao-a-disposicao-do-rio-de-janeiro.ghtml.  Consulta em 23/09/2017.

[7] Bobbio, Norberto et alii. Dicionário de Ciência Política. Brasília. Editora da UNB, Verbete “Estado Contemporâneo”, pp. 401 e ss., v.1,  1997.

E 1964 foi um Golpe?

Tanques em frente ao Congresso Nacional (1964 )
Foto Arquivo Público do DF

A Historia das ditaduras latinoamericanas guarda uma perfeita simetria com a política internacional e da dependência das oligarquías agrárias locais com os grandes centros mundiais do capitalismo, suas crises e, em seguida, a Guerra Fria. A crise da hegemonia britânica sobre o continente e o contínuo avanço da presença norteamericana, já largamente experimentados através de suas relações com o México e o Caribe, acabará por gerar uma larga crise da dependência e, mesmo, as possibilidades de intervenções diretas estrangeiras. O primeiro momento da presença norte-americana no continente sul-americano foi marcado pela necessidade de conter a influência germânica, a expansão do Terceiro Reich nos anos de 1930, face a uma Grã-Bretanha por demais envolvida na conservação do seu próprio império. Assim, Brasil, Argentina e Chile tornaram-se alvos principais dos interesses estratégicos e econômicos dos Estados Unidos. No caso brasileiro, o envio de um corpo expedicionário à Europa, em direta ligação com as forças armadas americanas, acaba por criar laços profundos, que frutificaram nos anos ´50 e ´60 longo proceso de americanização das Forças Armadas. Uma cultura militar, e uma mentalidade salvacionista imbuída da ideologia de missão e “tutela”, já se desenhara plenamente no continente, e no Brasil desde a Proclamação da República em 1889. Os riscos para a soberania, a pobreza considerada insuperável e a corrupção endémica e própria da vida pública serão os alvos iniciais das manifestações militares, como no tenentismo e na Revolução de 1930.

Da mesma forma, a crise de 1929 esbate profundamente as oligarquias tradicionais, com suas exportações agrícolas, e consequentemente seus arranjos políticos. Os militares, tanto no Brasil, na Argentina ou no Peru, já vinham denunciando as fraquezas atávicas dos regimes liberais-oligárquicos e, num momento de acirramento das disputas imperialistas, a incapacidade de tais regimes defenderem os interesses nacionais. A experiência do chamamento dos militares para as mais diversas tarefas e missões de “defesa da pátria” mostra que uma vez colocados no proscênio torna-se extremamente difícil fazê-los retornar aos quartéis. Assumiriam rápidamente um auréa de pureza e incorruptibilidade em fase aos políticos e funcionarios públicos, fazendo de si próprios o corpo profissional único capaz das regeneração patriótica.

Mesmo em países onde os conflitos externos não desempenharam um papel de monta na criação de uma “mítica” salvacionista, mas havia uma tensão externa crescente entre civis e militares, na véspera da Segunda Guerra Mundial (e, por exemplo, como no caso do Brasil e a Argentina, ou entre Chile e Argentina ), os militares, imbuídos de variada ideologia modernizante, sentiram-se portadores de uma missão salvadora e regeneradora da nação. Essa é a natureza do movimento tenentista no Brasil, com o qual facilmente pode-se traçar um paralelo com o movimento Jovem Turco. O tenentismo anuncia e fornece os ideais e quadros da Revolução de 1930 e da ditadura do Estado Novo (1937-1945) no Brasil.

O Integralismo, a versão fascista brasileira, também desempenhou um papel fundamental na modernização das Forças Armadas, em especial na Marinha de Guerra brasileira, mas com forte viés socialmente reacinário, formando uma visão de mundo autoritaria, nacionalista e golpista entre os, então, jovens oficiais, com  um legado pesadamente atuante na vida pública btrasileira, permanecendo ativo através da IV República – 1946-1964, para florecer no Regime de 1964 e no bolsonarismo.

No caso brasileiro, a maioria dos militares reatualizaram, depçois de 1946,  em contato com as forças americanas, e mais tarde na Escola das Américas e outros centros de treinamento – os “fortes” -, seus ideiais salvacionistas, agora diretamente vinculados ao clima de enfrentamente Ocidente/Oriente decorrente da Guerra Fria. O Retorno da FEB ao país, com a auréa antifascista culminaría na derrubada do Estado Novo.

O período pós-ditadura do Estado Novo, entre 1945 e 1964, denominado de democracia liberal ou IV República, foi marcado claramente, de um lado, por uma crescente tensão militar e, por outro, por forte continuidade da tutela militar sobre o poder civil, expressa em dezenas de pronunciamientos. Mesmo o desmonte da ditadura, procedido pela Assembléia Constituinte Nacional de 1945 – fim do DIP, extinção do TSN – foi parcial e comprometido com os interessses dos grupos políticos mais à Direita, convencidos de que os militares – que haviam derrubado Vargas – haviam adquirido um poder moderador sobre o Estado – a “Tutela”. Assim, enquanto os órgãos de propaganda do antigo regime eram desmantelados, os principais mecanismos de repressão – como a Delegacia de Ordem Política e Social, o temível DOPS, era poupado, e seus quadros de torturadores,  alguns meses depois da deposição de Getúlio Vargas, já trabalhava para o novo regime. A autonomia da policía civil, sua capacidade de realizar “visitas” em residências e escritórios sem qualquer apoio legal, os sequestros e a manutenção em cárcere, além da consolidada prática de espancamentos, a rotina de dissolver manifestações e meetings políticos, inclusive com armas de fogo, em nada a diferenciava da nefasta polícia da ditadura do Estado Novo e já prenunciava as práticas posteriores ao golpe de 1964.

Da mesma forma, o fracasso crescente dos partidos de Direita, em especial da UDN – União Democrática Nacional, em empolgar as massas, ao lado do crescente prestígio dos partidos de esquerda, o PCB e o PTB – Partido Trabalhista Brasileiro, e o movimento pendular do PSD, fomentava um grande mal-estar nas forças armadas brasileiras. Imbuídos da ideologia de missão salvadora da pátria, reforçada pela participação na Segunda Guerra Mundial e nos contatos diretos com as forças armadas americanas – em especial na Escola das Américas -, os militares brasileiros consideravam-se os verdadeiros herdeiros do movimento que derrubara Vargas em 1945.  Tudo isso começa a criar, no interior das forças armadas – em especial a Aeronáutica -, grupos radicalizados, incentivados por forças políticas, em especiasl pelo “lacerdismo” e sua verve cada vez mais radical, grupos interessados no rompimento da Ordem Constitucional.

O caráter de “rompimento” com a tradição anterior das Forças Armadas, de manifestações políticas pontuais e, contudo, retono imedioto à Ordem Constitcional, de 1964, fica, explicitado, já em 9 de abril de 1964, no Preâmbulo do Ato Institucional No. 1 – serão na verdade 17 atos institucionais, sendo o mais “famoso” o Ato Institucional No. 5, o chamado AI-5, de 13 de dezembro de 1968 – quando fica establecido que:

“É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução. A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação. A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória….”

 

A auto-atribuição do Poder Legislativo ao Alto Comando Militar, retirando do Congresso Nacional suas atribuições constitucionais e do povo seu poder de voto caracteriza claramente o “esbulho democrático” e caráter de “golpe” do chamado “Movimento” de 1964.  A UDN caracterizou-se como um recorrente apoio e incentivo de pronunciamientos e quarteladas. Nesse sentido, há um perfeito paralelismo entre a experiência argentina e brasileira, onde políticos, empresários e latifundiários fazem apelos constantes aos militares enquanto “salvadores” frente a ameaça populista ou comunista. Na América Larina entre 1945 e 1964 inúmeros golpes, deposições de presidentes, pronunciamientos e quarteladas são produzidos por uma baixa oficialidade altamente politizada e fortemente envolvida no clima de anticomunismo típico da Guerra Fria. Neste sentido desempenha um papel central a criação e a atuação da Escola Superior de Guerra, a ESG, centro de formulação e planejamento de um regime militar alternativo à democracia liberal-representativa,  capaz de regenerar a nação., sob a influencia direta do, então, Coronel Golbery do Couto e Silva. Daí emanam os princípios básicos que constituirão a Ideologia de Segurança Nacional, fundamental na constituição do regime de 1964 e de forte impacto sobre o continente. Da sua liderança surgirá, também, a criação de mecanismos e instituições que organizarão o Golpe Militar de 1964 no Brasil.  Na ESG formula-se uma doutrina de alinhamento automático aos Estados Unidos com a crença no liberalismo econômico e numa visão otimista da ação dos capitais estrangeiros, na ausencia de uma “burguesía nacional” e como alternativa a ação do Estado na economia. Da mesma forma, a autonomia sindical e a ação dos partidos políticos são consideradas impatrióticas e divisionistas. A visão de mundo, em plena Guerra Fria, assumida por seus membros é simplista, maniqueísta e forjada no mais duro anticomunismo. Em grande parte vigoram  decisões que emanam do National Security Act, de 1947, como proposta pelo presidente Harry Truman. O golpe militar deslanchado em 1 de abril de 1964 conta com o apoio dos partidos de Direita no Congresso Nacional, da Igreja Católica e de boa parte dos meios de comunicação. O processo de transformação pelo qual passava o país – as chamadas Reformas de Base formuladas por Darcy Ribeiro e Celso Furtado, inclusive a Reforma Agrária – era visto como o caos preparatório de um golpe comunista, ou ao menos a prévia da implantação de uma República Sindicalista (posto ser absolutamente impossível caracterizar o governo Goulart, e sua entourage, como comunista ). A ditadura que se implantava viu, logo após um período inicial de aceitação, um vertiginoso crescimento da oposição. Parte das classes médias que haviam apoiado o golpe, amedrontadas pela intensa propaganda da Igreja Católica – como na Marcha com Deus pela Família e a Propriedade -, afastam-se do governo. Os vultosos recursos enviados pelos Estados Unidos e pela Alemanha Ocidental para a propaganda anticomunista, antes e imediatamente  após o golpe, – através de inúmeros orgãos de ação, como o IPÊS, Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, fachada montada por militares e industriais, entre os quais Golbery do Couto e Silva, da Escola Superior de Guerra, e que associa grande número de empresários (mais tarde, sob a ditadura, dará origem ao SNI, Serviço de Nacional de Informações, donde surgiram inúmeros quadros da ditadura, inclusive dois generais-presidentes ) não conseguem melhorar a aceitação do desacreditado regime nomeado, conforme Daniel Aarão Reis,  “regime civil-militar” em virtude da forte presença de empresarios e membros das classes médias, causando especial mal-estar a dureza da política econômica. A constante ação da oposição, capaz de reunir estudantes, líderes trabalhadores e intelectuais, que ocupam as ruas do Rio de Janeiro e São Paulo entre 1966 e 1968, acentua a crise do regime militar – as camadas médias começam a se afastar do regime que gestaram, acentuando a “solidão” dos militares.

Dada a grande participação civil no golpe, os militares, em profunda concordância com os partidos políticos conservadores, procuraram a manutenção de um arremedo de regime representativo-liberal, com um rump-parliament, expurgado – face ao silêncio dos demais parlamentares – dos políticos considerados esquerdistas. Na verdade, o comando militar do putsch edita, em 9 de abril de 1964, o Ato Institucional no.1 ( o AI-1 ), medida jurídica desprovida de qualquer base constitucional, que dá plenos poderes ao general Castello Branco, líder militar do golpe, rompendo com os limites entre o poder executivo, legislativo e judiciário, caracterizando classicamente a condição de ditadura do novo regime. O AI-1, primeiro de uma série de 17  atos que culminarão no famigerado AI-5 (1968), suprime mandatos parlamentares, suspende a vigência dos direitos civis, a intocabilidade e vitalicidade da magistratura e a estabilidade dos funcionários públicos de carreira, atingindo até mesmo o Supremo Tribunal Federal/STF. Assim, os Atos Institucionais, como mais tarde na Argentina e no Chile, serão a base do terror, como o AI-5 – fantasía política do bolsonarismo – e sua ferramenta na repressão política.

A derrota da linha defensora do retorno aos quartéis – defendida pelo general Castello Branco e os chamdos profissionais ou “castelista” – leva ao poder a ala mais radical – a chamada linha dura  – das forças armadas, sendo seu líder, o general Costa e Silva, indicado presidente. A reação e a resistência, civil e, mais tarde, armada via as chamadas “guerrilhas”, acabam por convencer os militares que o arremedo de democracia organizado desde o golpe de 1964 era inútil e mesmo contrário aos interesses da ordem. As grandes manifestações de rua no Rio de Janeiro ( a Passeata dos Cem Mil ), bem como as greves operárias nos centros industriais de São Paulo e Minas Gerais, abalam o consenso no interior das forças militares e a credibilidade da classe média na saída golpista para o desenvolvimento brasileiro. Uma ampla frente de artistas e intelectuais produz uma verdadeira cultura da resistência, onde o teatro, a música popular (a era a famosa canción de protesta latinoamericana, com nomes como Victor Jara, Mercedes Sosa, Inti Illimani, Chico Buarque de Hollanda, Pablo Milanés, Geraldo Vandré), a literatura e, somados a ação de professores e estudantes, isola a ditadura de seus apoios populares iniciais. Assim, em 1968, no bojo de uma profunda crise econômica e da perda de controle das ruas e avanço da guerrilla urbana – sequestro do embaixador dos Estados Unidos, por exemplo – produz-se o chamado golpe dentro do golpe, quando uma Junta Militar impede a posse do vice-presidente, no afastamento por motivos de saúde do general Costa e Silva, e impunha ao país uma dura série de medidas policiais, consolidadas, numa “Sexta-feira 13” (dezembro, 1968, início de uma longa noite política e cultural sobre o país ), no chamado Ato Institucional no.5, arcabouço durável da ditadura no Brasil.  A Junta Militar dá posse a um general desconhecido, Garrastazu Médici, saído da presidência do temível SNI, Serviço Nacional de Informações, que reúne em suas mãos a maior concentração de poderes já visto na história do país; inicia um amplo projeto econômico – a Segunda Revolução Industrial no país – acompanhada de violenta repressão. É editada uma Lei de Segurança Nacional – que será copiada por outras ditaduras latino-americanas – em 18 de setembro de 1969, com o estabelecimento da pena de morte e o banimento para crimes políticos, institutos recusados em todas as constituições republicanas do país. Da mesma forma é instituído o exílio interno, com os oponentes enviados para a selva, lembrando os mecanismos de banimento interno da, então, URSS. A polícia, civil e militar, os órgãos de informação e os mecanismos de punição das forças armadas – os famosos IPM, Inquéritos Policiais-Militares, adquirem autonomia e agem com desenvoltura, sequestrando, torturando opositores. Com apoio do empresariado e alguns meios de comunicação, que financiam os quadros da repressão, e treinamento militar americano – o famoso caso Dan Mitrione – surge a Operação Oban, responsável por um grande  número de sequestros e assassinatos. Por todo o país surgem os chamados “Destacamento de Operações e Informações” e os “Centros de Operações de Defesa Interna” ( os DOI-CODI ), em íntima associação entre empresariado e militares, e onde se pratica a tortura em larga escala. A vida pública também é atingida, desde 1969, com a militarização da polícia e a expansão da chamada Polícia (ou Brigada) Militar, polícia aquartelada e fardada, que passa a ser responsável pelo policiamento ostensivo. Em pouco tempo, a PM tornar-se-ia sinônimo de truculência, incopentência e corrupção, emergindo uma questão de segurança pública em larga escala nas cidacdes brasileiras. Em todos os órgãos públicos, tal como durante a ditadura do Estado Novo, são criadas DSI – Divisões de Segurança e Informações, dirigidas por oficiais das Forças Armadas diretamente ligados ao SNI. Candidatos a qualquer cargo do serviço público deveriam previamente apresentar um atestado de ideologia mediante exame de prontuário pelo DOPS- Delegacia de Ordem Social e Política.

Manipulando habilmente os meios de comunicação, criando a imagem do Brasil grande potência – o lema do governo é: Brasil, ame-o ou deixe-o! -, capitalizando a vitória do Brasil no campeonato mundial de futebol, de 1970, o governo atinge grande sucesso. Sem qualquer limite ou condicionamento trabalhista ou sindical, praticando violento arrocho salarial, o governo gere o chamado Milagre Brasileiro, um crescimento contínuo, ao longo do início da década de ´70, com taxas anuais em torno de 11%. O movimento sindical é inteiramente decapitado, e os sindicatos e federações do trabalho colocadas sob intervenção. Só são autorizados a funcionar dois partidos políticos, a ARENA – Aliança Renovadora Nacional, oficialista – e o MDB, Movimento Democrático Brasileiro, de oposição consentida. A ação partidária é, entretanto, severamente controlada, com censura prévia à imprensa, prisão e desaparecimento de parlamentares ( como no caso Rubens Paiva ) e cassação de mandatos.   A crise do petróleo, no rastro da Guerra do Yom Kippur, e a fuga dos capitais estrangeiros, leva ao estrangulamento do modelo. De posse de informações produzidas por seus próprios órgãos de espionagem, a Ditadura realiza eleições para o parlamento em 1974. As urnas, malgrado as limitações da censura, dão estrandosa vitória à oposição. O governo se cinde, e a ala radical acelera as prisões, torturas e violências, em especial em São Paulo (assassinato do jornalista Vladimir Herzog e do sindicalista Manuel Fiel Filho, num quartel do Exército) e no Rio de Janeiro, onde multiplicam-se atentados contra personalidades e instituições da resistência civil.

As vitórias sucessivas da oposição, em 1976 e 1979, comprovam a recusa popular ao regime civil-militar. O general sucessor, Ernesto Geisel, batido pela oposição permanente, a crise econômica e a nova política dos direitos humanos do Presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter, compromete-se com a anunciada abertura lenta, gradual e segura. Toda a sua gestão é uma sucessão de idas e vindas, com o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal e, ao mesmo tempo, um duro enfrentamento com os militares radicais – crise com o Gal Silvio Frota, cujo o assessor é o, então, “capitão” Augusto Heleno, hoje General bolsonarista. Seu sucessor, indicado pelos meios militares,  já em crise e sob risco permanente de golpe dentro dos meios militares, o general João Figueiredo – um homem do sistema SNI -, promete continuar a abertura, mesmo prendendo e arrebentando, como ele próprio diria. Ante os sinais evidentes de saturação e decrepitude da ditadura, cadavez menos “civil” e isoladamente “militar”,  o movimento popular cresce e ocupa as ruas. Primeiro em torno da luta pela Anistia e o retorno dos exilados, depois em prol das eleições diretas ( o Movimento Diretas-Já!, em 1983). Oportunisticamente, a ditadura se apossa da luta pela Anistia e apresenta um projeto que concede anistia “dupla”, para as vítimas e seus algozes, evitando assim que, no futuro, qualquer ato de violação dos direitos humanos pudesse ser apreciado pela Justiça.

Desempenha um papel fundamental na percepção dos militares o desfecho, no início dos anos  de 1970, das ditaduras na Grécia e em Portugal, onde os regimes ditatoriais – em especial, os coronéis gregos – não foram capazes de preparar a  retirada do poder e acabaram por ser levados a julgamento e para a prisão. Ao contrário, a solução pactuada na Espanha oferecia um modelo que desde logo cativou os militares e a Direita latinoamericana. A desaparição de Franco, el caudilho, em 1975, permite a reorganização da Direita tradicional, não-fascista, em torno da monarquia e do partido Unión de Centro Democratico, tendo Adolfo Suárez como seu líder. Em torno do imperativo da reconstrução institucional do país, e sem uma derrota eleitoral da Direita (vitória da UCD nas eleições de 1976 ), criam-se as condições para a assinatura, por parte de todas as forças vivas da sociedade espanhola, do chamado Pacto de Mancloa, em 1978.  Entretanto, ao contrário das ditaduras latinoamericanas, a Direita – eleitoralmente forte – negocia a legalização de todos os partidos, inclusive o tradicional PC espanhol e, fundamental, a autonomia das nacionalidades históricas existentes na Espanha. Ou seja, numa situação confortável, o governo de transição de Suárez oferece mudanças estruturais profundas, algumas vezes avançando além das propostas da República de 1936. A Direita española negociou o Pacto, todo o tempo, com os militares espanhóis, objetivando não perder o controle do proceso e evitar qualquer tipo de julgamento dos crimes de guerra, tortura e sequestro durante o regime de Franco. Esse era o lado “sedutor” dos Pactos de Mancloa.

Na América Latina, em especial no Brasil, fala-se insistentemente em pactuar a transição, embora com um contexto inverso. Os partidos de Direita, inclusive de apoio à ditadura, como o PDS, Partido Democrático Social ( herdeiro da ARENA ) eram frágeis e, mesmo assim, não ofereciam garantias estáveis de funcionamento democrático. O que havia por tras era, sempre, a ameaça militar contra a Transição. O pacto na América Latina é apenas uma forma de deter as aberturas políticas e garantir uma “tutela” militar continuada sobre a sociedade, como é evidente no caso da longa transição chilena[1].

O governo do general João Figueiredo, último general presidente, é marcado pela inépcia econômica, com a declaração da moratória brasileira ( 1983 ) e a autonomia da chamada comunidade de informações ( conjunto de militares engajados nos órgãos de repressão e espionagem política ), que organiza inúmeros atentados contra personalidades e instituições da oposição.inclusive o atentado do RioCentro. Entretanto, face a uma intensa mobilização popular, o general é obrigado a conceder a Anistia – nos termos que já vimos – e permitir um amplo debate eleitoral. As ruas das principais capitais brasileiras são tomadas por multidões contrárias ao regime e no Rio de Janeiro, centro tradicional de oposição ao regime, um milhão de pessoas exigem eleições diretas já! Embora o movimento popular fosse derrotado no congresso – dominado por senadores eleitos indiretamente, os chamados biônicos, a oposição consegue armar uma ampla frente partidária, com o PFL, Partido da Frante Liberal – dissidência do partido do regime -, sob a denominação de AD, Aliança Democrática e elege um oposicionista, Tancredo Neves, em 15 de janeiro de 1985, presidente da república. O último general-presidente abandona o futurista palácio presidencial construído por Oscar Niemeyer, em Brasília, pela porta dos fundos.

Terminava, assim, a ditadura militar no Brasil.

 

KEYDER, Çaglar. ¨Vom osmanischen Reich zur Republik¨ In: SEVEN, Ömer. Türkei. Hamburg, VSA, 1984 ;

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TEMPO PRESENTE: “Um Tempo de viver e contar”

Sob o norte de Carlos Drummond de Andrade, em seu poema “Nosso Tempo”, voltamos a pensar a História do Tempo Presente como essa possibilidade de múltiplos enlaces que do presente explica o passado ou, nas palavras do poeta, que o historiador apropria, rouba e aplica: “E continuamos. É tempo de muletas.

Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam”.
E o poeta, como o historiador, insiste e prossegue:  “Contai!”, nunca podemos ceder e nem calar, temos o dever de contar todas as Histórias do nosso tempo, o tempo presente e seus enlaces.