[RESUMO] Deboche, incompetência e indisciplina de Eduardo Pazuello —que ocupou o Ministério da Saúde durante o período mais agudo da pandemia, passeou sem máscara e subiu em palanque— uniu as Forças Armadas em torno da sua imediata punição e passagem para a reserva. Essa expectativa, porém, foi frustrada pelos custos e consequências de uma nova crise militar, que poderia permitir a Bolsonaro nomear “seu” general para comandar “seu” Exército.
As ações do general Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde e sua participação em um ato de apoio a Bolsonaro depois de deixar a pasta trouxeram para o julgamento da cidadania, mais uma vez, o papel dos militares na vida política do Brasil.
Depois de inúmeras intervenções no processo político e administrativo ao longo da história brasileira, desde a Constituição de 1988 considerávamos que o risco de militarização das instituições era baixo.
No entanto, após um período de “profissionalismo”, em que se dedicaram aos deveres da caserna, fizeram dezenas de MBAs especializados e foram contratados em fundações privadas, os militares acharam que havia chegado a hora de promover um retorno à política.
Bolsonaro participa de homenagem ao Exército em 2019
Buscando uma breve intervenção –em nome das boas práticas, embevecidos pela performance do juiz de Curitiba e horrorizados pelas “provas” do lavajatismo–, apenas repetiram a história, consolidando um habitus de “salvar” a República de seus vícios.
Isso já havia acontecido antes: no tenentismo dos anos 1920, na Revolução de 1930, no golpe do Estado Novo de 1937, na deposição de Vargas em 1945, nos constantes “pronunciamentos” do Clube Militar durante a Quarta República (1946-1964), culminando no regime civil-militar de 1964-1985 —em que tiveram uma República para dizer e fazer como imaginavam o Brasil. Os resultados todos conhecem.
A transição para democracia, o projeto Geisel-Golbery, foi o mais longo e tortuoso da história de qualquer República, se estendendo de 1977 a 1988.
Em 1979, foi dada anistia a torturadores e torturados; depois, calou-se sobre os terroristas que, em 1980 e 1981, lutaram contra a democracia de dentro do Estado, atacando com bombas a oposição. Os episódios do Riocentro, da OAB e da Câmara dos Vereadores do Rio —todos crimes de sangue, terroristas e pós-anistia— são bons exemplos dessa atuação, além dos crimes “continuados”, de sequestro e desaparição de cadáveres.
A Constituição de 1988 incorporou a Lei da Anistia de 1979 em nome da concórdia. No entanto, nem todos a aceitaram. O projeto Geisel-Golbery, superado pelas ruas, continuou a ser combatido pelo lado de dentro, pelos bolsões “radicais, porém sinceros” no seu desamor ao Estado de Direito, que nunca aceitaram se habituar com a democracia.
Esses setores se consideravam herdeiros do ex-ministro golpista general Sylvio Frota, que tinha como ajudante de ordens um certo capitão Augusto Heleno. Os setores terroristas, que planejavam ataques até contra companheiros de farda, continuaram pregando a não existência da ditadura, do golpe, de sequestros e avançaram até a negação da escravidão e do racismo no Brasil —chegando, por fim, à vacina.
A máquina da repressão da ditadura militar
Aos poucos, passou a ser possível perceber que a transição democrática, a abertura de Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, não havia acontecido para amplos setores das Forças Armadas. Entre os modelos de transição –na Argentina, com punições; na África do Sul, com o reconhecimento público do passado e a defesa da concórdia; na Espanha, com pactos de “esquecimento”, mas sem repetição— o Brasil escolheu um modelo especial: o esquecimento repetitivo.
O tuíte do então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, pressionando o Supremo Tribunal Federal a não conceder habeas corpus ao ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, em 2018, marcou definitivamente o retorno dos comandantes militares à política.
É verdade que esse processo já se desenrolava desde 2016, quando a cúpula das Forças Armadas participou ativamente –ao lado da “frente parlamentar” e da “frente empresarial”, constituindo a “frente militar”– da garantia do impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT) por motivos hoje sabidamente irrisórios.
O que os comandantes militares da época colocaram em jogo abusivamente, no seu retorno à política, foi a imagem permanente das Forças Armadas brasileiras, evidenciando que a instituição não realizou a transição democrática e a habituação à Nova República.
O mesmo pode ser dito das polícias brasileiras, em especial a PM, da diplomacia e de boa parte da alta administração nacional, incluindo aí a Justiça —que o diga como o sistema judiciário lida com casos de racismo estrutural e com as chacinas de negros e pardos no país.
Apesar dessa conjuntura, parte dos analistas considerava que a presença de alguns generais no governo de Jair Bolsonaro (sem partido) era bem-vinda, dado o caráter “ideológico” da nova gestão, podendo desempenhar a função de tutelar e conter os arroubos do presidente.
Os militares no início do governo Bolsonaro
Com as primeiras demissões de militares de alta patente do governo —como os generais Carlos Alberto dos Santos Cruz e Maynard Santa Rosa, ambos extremamente conservadores e defenestrados exatamente por acreditarem na “tutela” do presidente—, evidenciou-se que Bolsonaro era o único responsável por seu governo.
O avanço da pandemia —previsto e calculado dia a dia por cientistas e instituições— fez emergir o “lado oculto” do governo: não sua incapacidade de agir, mas sua capacidade de colocar em prática um governo paralelo, camuflado, impondo aos brasileiros uma política de contágio impositivo de Covid-19.
Sucederam-se ministros da Saúde até chegar ao “homem no posto”: o general Eduardo Pazuello, dito especialista em logística, grande estrategista, trazendo nos ombros a expertise do Exército. Aí começaria o desastre. Os números de doentes, mortos e sequelados transbordam. Bolsonaro debochou, Pazuello obedeceu.
A imagem do Exército, e por antonomásia das Forças Armadas, se retraiu em pesquisas sobre a confiabilidade das instituições nacionais. A visibilidade não buscada trouxe, ainda, a publicidade sobre compras como de leite condensado, carnes e bebidas no momento em que brasileiros tinham que ser socorridos pelo auxílio emergencial e, ainda mais grave, de hospitais militares fechados —incluindo Manaus, epicentro da catástrofe– ao mesmo tempo que pessoas morriam e o general Pazuello, em visita à cidade, receitava cloroquina.
Mortes e mentiras se acumulavam. A ausência de prontidão, de estratégia ou de logística para salvar vidas ficou evidente.
O general mentiu, se portou de forma relaxada, descuidada e com grave incúria, assim como seus subordinados diretos, enquanto faltava oxigênio para os internados por Covid-19.
O drama em Manaus
A soma desses comportamentos se choca diretamente com os valores básicos que qualquer aluno deveria ter assimilado na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras): direção, comando, coragem moral, cumprimento da missão, criatividade, aprimoramento técnico, civismo, fé na missão, patriotismo. Pazuello faltou com todos esses valores básicos.
Alguns outros preciosos valores, de extrema sensibilidade exigidos na academia e na vida de qualquer um, também foram estranhos ao general Pazuello: sensibilidade moral: capacidade de se sentir moralmente afetado; julgamento moral: capacidade que permite refletir sobre situações que exigem interface com valores; empatia: capacidade que permite compreender ideais e valores dos demais; contextualização moral: capacidade que permite a reflexão moral.
Em resumo, no caso de Eduardo Pazuello, a Aman formou um general sem alma. Infelizmente, a história nos relata a trajetória de generais desse tipo, sem alma, sempre associadas a genocídios.
O caso Pazuello reforçou e estimulou o movimento do Exército em direção a um discreto distanciamento do governo Bolsonaro —tão discreto que muitos nem sequer o percebem. O afastamento, como tudo no Exército, deveria ser lento, seguro e gradual, sem dar razão e motivos aos críticos e sem despertar rancores.
No entanto, por sua própria lentidão e ausência de rumo, esse movimento despertou a desconfiança de todos os lados. Os militares encastelados no governo Bolsonaro temeram ficar isolados, denunciados na solidão do Planalto. Aqueles que queriam o afastamento, enojados com a indisciplina, a incompetência e o cabotinismo de Pazuello, queriam a punição imediata, como claro sinal do distanciamento em curso.
Jair Bolsonaro (esq.) e o general Eduardo Pazuello em cerimônia no Palácio do Planalto sobre a vacinação contra a Covid-19 – Ueslei Marcelino – 16.dez.20/Reuters
Fez-se o impasse. Eram os primeiros dias de junho, dois meses depois da exoneração dos generais Edson Pujol e Fernando Azevedo e Silva do Comando do Exército e do Ministério da Defesa, respectivamente –a segunda crise militar do governo dos generais.
Porém, havia mais. A crise desencadeada por Pazuello deixou escapar um nojo maior, uma escala de ressentimentos ainda mais profunda. Não eram apenas os cargos disputados em termos de “quem é o mais antigo? Agora é minha vez!”.
Eram os sinais evidentes de vaidade e arrogância. Era a compra de ternos caros, mochilas importadas, “pins” americanos “de Armas” para as gravatas, “cases” e, claro, computadores, visitas constantes ao eBay, corrida para vagas em embaixadas e missões diplomáticas. Por mais traumático e cruel que tenha sido 1964, havia um projeto: 2019 teve um ar de festa na província.
Ao longo de maio, Pazuello passeava leve e solto sem máscara em shoppings, participava de motociatas e subia em palanques. Tal atuação, que beirava o deboche, conseguiu uma façanha, na primeira semana de junho: uniu quase toda a Força ativa, boa parte da reserva –e eis aqui uma novidade– a Marinha e, bem ou mal, a Aeronáutica em torno de dois pontos: punição e imediata passagem para a reserva do general.
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Não bastava passá-lo para a reserva, era necessária uma punição, escrita ou oral, e uma advertência, mais ou menos dura. Haveria uma punição.
Então, entrou em cena a tropa do presidente. Coube ao general Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Casa Civil, a defesa do ministro da Saúde responsável pela catástrofe, tendo no ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, o suporte fundamental, desde abril e maio, para a defesa da “exemplar” gestão de Pazuello na pasta.
Assim, o Comando do Exército foi paralisado pelo ministro da Defesa: uma punição do general entraria em choque direto com o ministro e, claro, com o presidente. Bolsonaro, como comandante em chefe, não aceitaria e faria reverter o ato. O recém nomeado comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, e o Alto-Comando do Exército tiveram que avaliar o preço, os custos e as consequências de uma terceira crise militar em tão pouco tempo.
Na última quarta-feira (23), Bolsonaro publicou um decreto que permite que oficiais das Forças não sejam obrigados a passar para a reserva depois de dois anos em cargos civis, podendo exercer funções administrativas sem restrição de tempo. A medida vai na contramão da expectativa dos comandantes do Exército e pode levar a um novo acirramento da relação dos militares com o Palácio do Planalto.
O presidente, ao exonerar os generais Edson Pujol e Fernando Azevedo e Silva no final de março, conseguiu uma meia vitória no seu processo de bolsonarização das instituições. O caso Pazuello, orientado pelo general Ramos e secundado pela tremenda ausência e abandono da tropa pelo general Braga Netto, deveria ser a ceifada final do bolsonarismo contra a tímida tentativa do Exército de se manter distante da catástrofe. Tudo culminaria na exoneração do general Paulo Sérgio de Oliveira.
Bolsonaro estaria, então, livre para nomear o “seu” general para comandar o “seu Exército”. Com isso, finalmente, o tenente expulso da Força por indisciplina e ausência de fé, que se tornou capitão por ato de graça, teria um Exército para chamar de seu.
No entanto, esse roteiro não se concretizou. Ainda.