Hoje, com a necessária correção ao poeta Gonçalves Dias, a paráfrase ao grande poema romântico “I Juca-Pirama” deveria ser: “Meninas, Meninos, Meninxs, eu vi!” Pouco importa, em verdade, para a História que vou contar: “…meu canto de morte/amigos ouvi!”. Mais uma vez estamos diante de um 31 de março, quase 60 anos depois daquele 31 de março de 1964.
Hoje, longe daquele ano de 1851, do “I Juca-Pirama” do poeta e ainda assim tão perto daquele 1964, faço um canto triste perante a necessidade de não esquecer, jamais apagar, as lutas daqueles que lutaram a justa guerra: “Contudo os olhos d’ignóbil prantos secos estão/ Mudos os lábios não descerram queixas/ Do coração”. Canto por ofício a morte, os sequestros, a tortura dos bravos da História. Meu canto ergue-se por pura necessidade de dizer “não” ao negacionismo, o revisionismo, ao apagamento. Necessidade imposta pelo charlatanismo, pelo desamor com a História. Durante os longos 21 anos de céu triste e choroso, de cinza e pó, não era preciso um canto de rememoração: isso era tarefa da própria ditadura, que mesmo velha e só pelancas, erguia toldos, palanques e alegorias votivas para glória própria. A ditadura festejava nas ruas a própria natureza do golpe: militar, desde sempre, empresarial na conjuração – como nos editoriais de Eugênio Gudin em O Globo -, civil pelos partidos, associações e coletivos comerciais; mediática, via o “Correio da Manhã” e do próprio O Globo, posto que sem o convencimento e a sedução não se arrastaria as massas que festejariam a morte da Constituição nas ruas de Copacabana. Pois sim, “…Meninos, eu vi!”, Copacabana não me engana, engalanou-se para pedir o Golpe e depois festejou como Réveillon seu desfecho. Triste Copacabana, de fascistas e reacionários! O Golpe foi também ecleseástico. Sim, em desafeto à Democracia, 1964 foi pedido com rosários e velas nas mãos. Todos estavam lá: empresários, latifundiários, comerciantes, padres ultramontanos. Sim, “ultramontanos” posto que não gostaria de adjetivar 1964 de um “Golpe Religioso”, mas somente “ecleseástico”. De uma hierarquia católica comprometida com as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” – “Liberdade”, palavra corrompida por todos os que planejam a tirania. Nos primeiros meses de 1964 marcharam mulheres, ditas “donas de casa”, de “prendas do lar”, os latifundiários, os empresários da Fiesp – ah, a Fiesp! Claro, nada aconteceria sem a Fiesp. Todos orando com rosários de prata, de ouro, de pérolas nas mãos. As ruas do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte encheram-se de mulheres piedosas, de véu e fitas, Filhas de Maria. Homens sisudos, batinas e pequenas cruzes de ouro na lapela. “ Olha lá vai passando a procissão/Se arrastando que nem cobra pelo chão/As pessoas que nela vão passando/Acreditam nas coisa lá do céu!”, advertiria Gil.
Não, nada daquilo era “religioso”, mas era clerical: a visita do Padre irlandês Patrick Peyton (1909-1992), uma “pessoa” da CIA, um investimento do empresário ultraconservador, católico J. Peter Grace, manipulador dos mercados mundiais de açúcar, bebidas e minérios, altamente interessado nos destinos da América Latina. Padre Peyton era uma arma tão valiosa contra a Democracia quanto a Operação Broither Sam, com a qual os Estados Unidos pretendiam garantir a vitória dos golpistas: havia cem toneladas de armas leves e munições e navios. Tinha com 50 unidades a bordo, tripulação e armamento completo, um porta-aviões, seis destróieres, um encouraçado, um navio de transporte de tropas e 25 aviões para transporte de material bélico. Kennedy, Peyton, Grace, e também Konrad Adenauer eram os nomes estrangeiros da conspiração contra a Democracia no Brasil. Todos olhavam para Cuba, a pequena ilha agrária, pobre e católica que, desde 1959, causava pânico em Washington por sua capacidade de mobilização e esperança, exemplo, para muitos, de futuro e, no entanto, para outros horror e pânico. Como a ilha dos cassinos, dos charutos, dos bordéis da máfia, do rum e do açúcar das refinarias americanas fora perdida? Impaciência e revolta. E ainda pior: aqueles revolucionários recebiam armas de Moscou. Pois é, “…meninos eu vi!” Nos sermões das igrejas se rezava pelo infeliz clero cubano levado ao exílio ou ao “Paredón”. Desde a invenção da “Cuba Libre” nenhuma palavra espanhola parecia tão popular no Brasil com “el paredón!”. Justo? Cruel? Necessário? Abominável – as opiniões eram diversas, mas o debate era comum, popular, fazia pensar. “Esse canto, meninos eu ouvi!”.
Tinha, então, 10 anos, menino morava no bairro operário da Penha, entre a fábrica de couros e os sutiãs “De Millus”. Foi lá, num belo domingo de janeiro, na feira livre, que os asseclas das marchas de Deus reuniam doações e assinaturas contra a “infiltração comunista na Igreja e no estado”. Foram, contudo, vaiados, presenteados com tomates pobres, um par de ovos e por fim expulsos da feira. Em grande parte das periferias urbanas, como no Rio de Janeiro, o PTB era maioria, pobres e operários apoiavam Jango e seu governo, explicitando o apoio de 70% da população ao projeto de Reformas de Base de Goulart, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Abelardo Jurema…. E, nas ruas e nas rádios, exigidas por Leonel Brizola e Francisco Julião, o líder das Ligas Camponesas, que em escolas improvisadas estudavam pelo Método Paulo Freire. O Brasil fervia de ideias, de homens, na urgência do futuro. Antonio Callado, depois, narraria tudo em “Quarup”. Foi isso, “meninos que eu vi!”.
No entanto as marchas continuavam: a grana vinha de fora, vinha das associações ruralistas, empresariais e dos IPES que a face oculta, militar-empresarial, montava. Todos se lançavam às ruas contra o “temível comunismo” embutido nas Reformas de Base: Reforma Universitária, a extinguir as cátedras e aumentar as vagas, garantir o ensino para todos e matricular aqueles ditos “excedentes”, numa universidade gratuita e laica, o que revoltava as Igrejas, senhoras de um virtual monopólio sobre o Ensino de Qualidade no país. Cada escola, um santo, um coração sangrante, como as chagas do povo com fome. A Reforma Bancária, impedindo o monopólio dos financiamentos e a manipulação extorsiva dos juros contra os pobres e remediados – um Banco Central seria criado só em 31/12/1964 – bastião da continuidade empresarial e bancária, longe da vontade popular. A Reforma Constitucional que deveria democratizar o Estado e garantir mecanismos de supressão da pressão externa e os “Pronunciamentos” militares. A Reforma Administrativa, modernizando o Estado, tornando-o mais popular e democrático, leve e eficiente, afastando de vez o patrimonialismo de classes oligárquicas que usavam cargos e ofícios como prebendas e sinecuras, típicas de uma sociedade colonial. A Reforma Fiscal, com o estabelecimento de um imposto progressivo sobre grandes fortunas, heranças e sucessões, taxando o latifúndio e – pasmem! – as remessas de lucros para o exterior. Corrigia-se a secular injustiça dos impostos sobre o consumo popular. E, claro, a Reforma Agrária, horror dos latifundiários, que deveria corrigir a injustiça de uma Abolição sem indenização dos escravizados, prover milhões de brancos pobres, devolver a terra dos retirados das secas, da fome e do latifúndio. “Não é cova grande/é cova medida/é a terra que querias/ver dividida” dizia o poeta João Cabral de Mello Neto. A Reforma Agrária, libertando milhões de moradores, meeiros e simples ocupantes, além de pagar a dívida histórica, deveria garantir alimentos e matérias-primas baratas, abundantes, para o processo de industrialização sustentada, livre da dependência , como pregava Jango, Darcy e Furtado. O povo apoiava: “As setas da aflição já se esgotaram/Nem para novo golpe espaço intacto/ Em nossos corpos resta”.
Na verdade 1964 era um ano mais avançado que 2023: ainda nos restam por fazer as reformas que perdemos na longa noite de 31 de março.
“Isso meninos, eu vi!”: em Magé, no fundão da Baía de Guanabara, onde meus avós moravam, os proprietários de terras, amaldiçoando Jango, derrubaram as matas e venderam a madeira para fazer carvão. Outros colocaram bois raros num pasto ralo, só para dizer que suas terras não eram latifúndios aptos para a Reforma Agrária. Muitos atearam fogo às matas: “Esse é meu canto de morte/guerreiros ouvi!”.
Então veio a tragédia: era uma terça-feira, aquele 31 de março de 1964, quando blindados rolaram de Minas Gerais sobre o Rio de Janeiro, de fato, ainda a capital federal. O Governador, do então, Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, se encastelava no Palácio com armas pesadas, tropas do CCC/Comando de Caça aos Comunistas e oficiais da Aeronáutica e da Polícia Militar. De lá, em discursos histéricos, de anticomunismo ensaiado – um comunismo que não amava Jango e que Jango não amava! – instigava as tropas todas, toda a força militar, a aderir ao Golpe em curso. Invadia-se a sede da UNE, os sindicatos, a Universidade: “São rudes, severos, sedentos de glória/já prélios, incitam, cantam a vitória”. Nas rádios hinos e rezas se sucediam, pedindo ao deus deles – mais do que nunca o deus dos exércitos – o sucesso da empreitada golpista. “Meninos, eu juro, eu vi!”. As avenidas e as ruas foram fechadas. A Avenida Brasil, chamada então pelos cariocas de “Variante”, foi fechada pelos militares, que param e inspecionam pessoas, documentos, ideias, apropriando-se das funções de polícia num terrível spoiler do amanhã. No outro extremo da cidade, ferroviários e portuários fechavam a Avenida Francisco Bicalho e Rodrigues Alves, enquanto a euforia tomava Copacabana. Mas, já era tarde: o tão propalado “Esquema sindical-militar” de Jango não conseguiu garantir a legalidade e o governo constitucional. As rádios que resistiram, num momento que a TV ainda era de minorias, foram invadidas. A Rádio Nacional, de tantas glórias, onde o radialista e showman César de Alencar acusava, na hora, colegas de comunistas. Homens como Mário Lago e Paulo Gracindo seriam punidos pela delação do animador de auditórios. “Meninos, eu vi!”.
Meu pai, um apaixonado pelo Rádio, que comprava grandes “discos” de 78 rpm, de Miltinho, Doris Monteiro, Nora Ney e Alaíde Costa, jamais perdoaria César de Alencar. Na “boca pequena”, muito receosa, o showman era tratado pelo nome de um recém lançado detergente líquido: ODD. A sigla serviria, doravante, para colar como piche, naqueles que se prontificavam para a delação: ODD/”O dedo duro!” Um nova realidade que tornaria o cotidiana irrespirável.
Mas, também, os militares foram vítimas de seus colegas de farda: 7.540 militares foram presos, torturados, humilhados, sequestrados e expulsos das Forças Militares. A maioria não sabia sequer o que era comunismo, apenas se declaravam nacionalistas, como Rui Moreira Lima. Lá estavam com a legalidade e a Constituição oficiais patriotas como Sergio Macaco, almirante Cândido Aragão, o Brigadeiro Francisco Teixeira e o General Euryale Zerbini.
Naquele 1 de abril, uma quarta-feira, meu pai não foi trabalhar: saímos de carro para pescar. Todos os órgãos públicos estavam fechados, havia a Lei Marcial. No entanto, ao atravessar a ponte para a Ilha do Governador, postos pescarmos na Pedra da Onça, a Aeronáutica parou o pesado Chevrolet de 1959, examinou os documentos de meu pai e nos impediu de prosseguir. Todos deveriam permanecer em casa. Não haveria pescaria, mexilhões ou cocorocas. Foi isso que eu vi.
Claro, havia os inimigos de sempre: os professores. Sempre eles, comunistas, ateus, subversivos, inimigos da religião, da propriedade e da família. Os delatores eram homens como o catedrático de História Antiga da FnFi, hoje UFRJ, Eremildo Vianna, que organizava listas de colegas a serem presos, cassados, aposentados via os atos institucionais da duvidosa “Revolução” gloriosa. Em tais listas constavam o físico José Leite Lopez, as Historiadoras Eulália Lobo e Maria Yedda Linhares, o maestro José Siqueira, o antropólogo Darcy Ribeiro, o sociólogo Victor Nunes Leal, o historiador Caio Prado e o homem que denunciou a fome no Brasil, Josué de Castro, com sua “Geopolítica da Fome”. A “Inteligência” brasileira era decapitada num festival de besteiras e de brutalidades denunciado por Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta. Estudantes eram expulsos das universidades através do Decreto 477, que impedia qualquer ação política, crítica ou organização dos estudantes. Elio Gaspari, Vladimir Palmeira, Luis Travassos, Maria Augusta, Daniel Aarão Reis serão apenas alguns dos muitos punidos pela Ditadura. Alguns alçarão vôo nas asas da Aeronáutica num último vôo noturno, como Stuart Angel Jones, que deixará uma mãe em busca de um corpo: “Quem é essa mulher/Que canta sempre o mesmo estribilho/Só queria embalar meu filho/ Que mora na escuridão do mar” – na homenagem de Chico Buarque. Outros seriam mortos em praça pública, como o menino vindo do Norte Edson Luís do Nascimento.”Meninos, eu vi!”
Pela primeira vez desobedeci meu pai: não fui a aula naquela manhã e ainda com o uniforme do Pedro II fui à missa na Candelária. Te Deum. Te Deu laudamus Edson! A cavalaria da PM atacou na saída, rompendo o cordão de proteção de padres e freiras. Fumaça e gases invadiram a nave santa. Deu-se a reação: bolas de gude foram lançadas, os cavalos tremiam e o cavaleiro ia ao chão. Nas vielas da Rua do Rosário e Buenos Aires havia cavalos, cassetetes, bombas e fumaça e o uníssono “Abaixo a Ditadura!”. “Seus nomes voam lá na boca das gentes/ Condão de prodígios, de glórias e terror”.
E meu pai? Próximo assessor do Ministro Paulo de Tarso, da Educação, foi sumariamente afastado do serviço público. Uma das coisas que mais me impressionavam e meu pai era o aprumo: os ternos de linho branco, verde clarinho ou azul celeste, com prendedores de gravata. Jamais se recuperaria do baque, mesmo depois de retornado ao seu posto, no fim da ditadura, a vida lhe seria pesada.
Tudo isso, como no poema romântico, Senhores, eu vi – a bem da verdade, eu vivi! Um garoto que ficava acordado, no quarto, ouvindo as vozes graves na sala. Um tio, físico formado na Universidade Patrice Lumumba, diria entre sussurros: “…vivemos uma longa Noite de São Bartolomeu!”. Eu, então, não sabia o que era “uma Noite de São Bartolomeu”, o massacre, as violações e torturas que todavia já vivíamos. No dia seguinte, correndo para a vasta biblioteca do Colégio Pedro II, fui pesquisar “Noite de São Bartolomeu”, 23/24 de agosto de 1572. Sim, seria uma longa noite de medo e opressão, 21 anos pesados como chumbo. Ali no saguão da biblioteca do Pedro II descobri que seria historiador. Com o coração batendo do lado certo do peito. “Confesso – como o poeta morto num outro Golpe [que tudo isso] – eu vivi!”.