O Brasil realizou reuniões sigilosas com a França para acelerar o processo de transferência de tecnologia para o submarino nuclear brasileiro.
O chefe de Estado-Maior da França, brigadeiro Fabien Mandon, se reuniu com o almirante de esquadra Petrônio Aguiar em Brasília em 22 de setembro. O brasileiro deve viajar à França em breve para dar prosseguimento às negociações, apurou a Folha de São Paulo.
As negociações têm como objetivo ampliar o acordo assinado em 2008, que prevê a construção de quatro submarinos convencionais da classe Scorpène e um submarino de propulsão nuclear.
“O acordo selado com a França em 2008 diz claramente que deve haver transferência de tecnologia, tanto para a construção dos submarinos convencionais, quanto para o de propulsão nuclear”, disse o almirante Antonio Ruy Silva, membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint) da USP, à Sputnik Brasil. “O que se espera é que esse novo acordo detalhe aspectos relacionados ao submarino nuclear, já que nos primeiros anos houve um foco maior na construção dos submarinos convencionais.”
Apesar dos avanços na construção do reator nuclear para o submarino, a Marinha brasileira ainda encontra dificuldades no processo de sua miniaturização e no desenvolvimento de peças e sistemas de acessórios.
“As questões centrais são o casco, ligas especiais resistentes a vazamento de resíduos nucleares, e a questão da miniaturização do reator”, disse o professor de história contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Francisco Carlos Teixeira, à Sputnik Brasil. “O Brasil já consegue construir qualquer reator nuclear. Mas a miniaturização, para que ele possa caber em uma nau e funcionar, ainda não foi concluída.”
França dá o troco
Os especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil estão otimistas quanto às negociações e acreditam que a França tem interesse em aprofundar a parceria para a construção do submarino nuclear Álvaro Alberto.
A indústria nuclear francesa será beneficiada pelos pedidos de compra realizados pelo Brasil, uma vez que recentemente perdeu uma importante cliente: a Austrália. Em 2011, a Austrália cancelou contratos estimados em US$ 66 bilhões com a França para a construção de seu submarino nuclear, em favor de uma parceria com EUA e Reino Unido, formalizada no âmbito da AUKUS.
“Os franceses se sentiram traídos pelos seus parceiros EUA e Reino Unido, uma vez que tinham tudo acertado com a Austrália”, relatou Ruy Silva. “Macron ficou enfurecido, e deixou isso bem claro publicamente.”
A negociação de novos contratos com o Brasil poderia compensar os prejuízos econômicos – e políticos – gerados pela AUKUS à indústria nuclear francesa.
“O acordo viabiliza a indústria nuclear e de armamentos da França, que não pode ter somente o Estado francês como cliente”, considerou o professor Teixeira. “A venda da tecnologia dos submarinos ao estrangeiro viabiliza o próprio complexo industrial militar francês.”
O almirante Ruy Silva concorda, e lembra que a França poderá prestar serviços de manutenção e assistência técnica para o Brasil durante toda a vida útil dos submarinos.
“Os contatos serão mantidos por décadas, gerando uma considerável aproximação entre as Marinhas da França e do Brasil”, notou o almirante.
A França ainda estaria carente de projetos bem-sucedidos de cooperação internacional, após uma série de revezes que sofreu na África, onde “países que eram tutelados por ela de maneira neocolonial sofreram golpes de Estado”, lembrou Teixeira.
“Macron está sem política externa. A França tomou um tombo na África e outro tombo no Pacífico, perdendo seu acordo com a Austrália”, disse o professor da UFRJ. “Nesse contexto, faz sentido para a França voltar-se para a América Latina e para a sua maior economia, o Brasil. A França precisa disso para poder continuar dizendo que é uma potência internacional.”
Estraga prazeres
Apesar de contexto favorável ao sucesso das negociações entre Paris e Brasília, as partes devem lidar com pressões dos EUA para que o acordo não prospere, disseram os especialistas à Sputnik Brasil.
“O maior obstáculo para a conclusão do acordo é a pressão dos EUA. Eles não querem que a indústria nuclear francesa avance, nem que o Brasil implante uma indústria nuclear viável”, considerou o Teixeira.
Além disso, Washington “não quer que o Brasil esteja dotado de uma arma tão eficaz, como o submarino de propulsão nuclear”.
De fato, o submarino nuclear seria um passo importante rumo à implementação da doutrina de negação do uso do Atlântico Sul ao inimigo, prevista na Política de Defesa Nacional Brasileira. Atualmente, o Reino Unido ainda mantém domínio colonial sobre ilhas no oceano Atlântico, enquanto a 4ª Frota Naval dos EUA realiza patrulhas nas proximidades da costa brasileira.
Por outro lado, a capacidade de Washington de obstaculizar o acordo entre Brasil e França pode estar enfraquecida, acredita o almirante Ruy Silva.
Para ele, o contexto internacional de transição hegemônica, na qual o poder dos EUA cede em favor de outras potências, garante maior margem de manobra aos países médios.
“A emergência de novos polos de poder confere mais liberdade de ação para a França e Brasil. Então as pressões contrárias a essa aproximação podem diminuir”, concluiu o especialista.
O acordo para a transferência de tecnologia de submarinos convencionais e nuclear entre Brasil e França assinado em 2008 tem valor estimado em R$ 40 bilhões. Dois dos quatro submarinos convencionais previstos já foram construídos. A expectativa atual da Marinha brasileira é que o reator nuclear naval fique pronto em 2027 e o submarino nuclear Álvaro Alberto em 2033.